Entrevista: “Declarações de Lula à imprensa fortalece a campanha pela privatização dos Correios”
Entrevista com Alexandre Nunes, secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios do Rio Grande do Sul
Na última quinta-feira (dia 19), durante um café da manhã com jornalistas no Palácio do Planalto, o presidente Lula deu uma série de declarações deixando mais nítido qual é o projeto do governo para “reinvenção” dos Correios . Esta declaração se dá no meio de uma greve nacional dos trabalhadores dos Correios, que lutam pela manutenção dos seus direitos e pela defesa da empresa pública e estatal. Entrevistamos Alexandre Nunes, secretário geral do Sindicato dos Correios do Rio Grande do Sul , um dos sindicatos que está na vanguarda desta greve.
Lula declarou que “não podemos ter uma empresa pública que dê prejuízo, por mais importante que ela seja”. Como você vê encara essa fala do Lula. Foi uma nova “Carta aos brasileiros”?
Com certeza, foi uma fala para agradar o mercado e fortalecer a campanha privatista feroz que está todos os dias nas manchetes e editoriais da Folha de S. Paulo, O Globo e de toda grande imprensa. Gostaria de que o Lula nos respondesse – desde quando o que determina a necessidade de ter uma empresa pública é o lucro ?
Eu sou socialista e defendo uma forma completamente distinta de organizar a sociedade porque as leis do mercado se revelam cada vez mais irracionais e destrutivas. Esta aí o colapso ambiental na nossa porta. Mas, mesmo sob a lógica deste capitalismo nefasto muitas empresas estatais não foram criadas para gerar lucro financeiro direto, mas sim para preencher lacunas que a iniciativa privada não atende devido ao alto risco ou longo prazo de retorno. Economias como a dos Estados Unidos, China, Japão e Coreia do Sul se desenvolveram através de fortes investimentos estatais em infraestrutura, ciência e tecnologia.
E quem diz isso não sou eu. O próprio José Kobori, um dos papas em finanças, numa entrevista em que analisa o déficit das estatais deste ano, faz críticas contundentes a campanha da “ineficiência das estatais” . Porque, investimentos de longo prazo, quem faz é o Estado. E os países fazem isso através das suas estatais. As empresa privadas trabalham seus projetos a partir do “que vai me dar o maior retorno no menor tempo”.
Para nós trabalhadores, o que determina a necessidade de uma estatal é o papel que ela precisa desempenhar, garantir uma infraestrutura necessária à sociedade, para o seu funcionamento. No caso dos Correios, nenhuma empresa privada vai cumprir funções como distribuição de vacinas, medicamentos, urnas eletrônicas, provas, incluindo áreas remotas de difícil acesso. É só ver quem cumpriu um papel essencial em momentos de crise como na pandemia e durante a enchente do Rio Grande do Sul, distribuindo mantimentos e roupas. Não foi a iniciativa privada.
O maior pais imperialista do mundo, os EUA, mantém o seu serviço postal público que opera com déficits bilionários (chegando a 37 bilhões de dólares). E nem por isso é fechado ou privatizado, devido à sua importância logística e social
Outra prova de que esta campanha contra as estatais é hipócrita. Uma das estatais que constam no rol do “rombo das estatais” desde o ano passado, é a Embrapa – empresa estatal que é responsável por desenvolver pesquisas que são utilizadas pelo agronegócio. Ou seja, seus estudos garantem um aumento da produtividade do agronegócio. Pois bem – alguém está pedindo para fechá-la ou privatizá-la por que dá prejuízo ? Ao contrário, o agronegócio, a grande imprensa e o próprio governo Lula estão defendendo mais investimento na Embrapa para que ela possa ampliar o lucro do agronegócio.
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E sobre o fato do Lula afirmar que “há cidades em que não compensa manter agência dos Correios porque são muito deficitárias”?
Gostaria, mais uma vez, de devolver a pergunta ao Lula. Quem vai cumprir o papel dos Correios nestas regiões? No governo fazem um jogo de morde assopra. O ministro Guilherme Boulos (PSOL) declara que não pode privatizar porque, sem empresa pública, pelo menos 3.000 municípios pequenos ficariam sem serviço postal. E Lula diz que tem que fechar. Nessas pequenas cidades e bairros periféricos, os Correios frequentemente são o único elo de acesso a serviços como a entrega e postagem de correspondências e encomendas, o pagamento de contas e boletos, o recebimento de benefícios sociais (Bolsa Família, INSS, etc.) e serviços bancários em parceria com o Banco do Brasil ou Caixa Econômica Federal.
Os Correios são uma empresa essencial para a coesão territorial, a circulação de informações e mercadorias, e garante acesso a direitos básicos, como vacinas e serviços sociais. Um Correio público, estatal e sob controle dos trabalhadores representa não apenas eficiência logística, mas também democratização do acesso à comunicação e fortalecimento da soberania nacional.
E sobre a origem da crise dos Correios? Lula afirmou que o problema dos Correios é ineficiência.
Todos os últimos governos têm responsabilidade no aprofundamento da crise, inclusive o de Lula. Tem sim muita má gestão e apadrinhamento. Tem privilégios para o andar de cima. O salário do presidente dos Correios é 28 vezes maior do que de um carteiro. Os demais diretores recebem 24 vezes mais. Isso é uma discrepância brutal. E são esses gestores também, responsáveis pela atual crise da empresa, que estão propondo políticas para retirar direitos e incentivar demissões de trabalhadores da empresa, tudo isso mantendo seus privilégios.
Medidas recentes do atual governo como a “Taxa das Blusinhas” causou sim perda de receita e lucro das operações da empresa. Mas, a principal causa é o fato de que grandes transportadoras de encomendas e big techs entraram com força no comércio de varejo. Após a pandemia, as grandes empresas de capital internacional e nacional vieram com mais força para disputar esse mercado, em particular nos grandes centros. As empresas privadas ficaram com a parte lucrativa (entrega de encomendas em grandes centros), enquanto os Correios, pelo papel social, mantem operações deficitárias. Não tem mais monopólio. O mercado monopolizado representa apenas 20% do faturamento dos Correios. E estas empresas só se expandem a partir da superexploração do trabalho precarizado. É uma concorrência desleal.
E sobre o novo presidente dos Correios? Lula declarou que colocou “alguém com muita expertise”.
O Emmanuel Schmidt Rondon é um tecnocrata, um jovem executivo de banco, que está utilizando todo receituário liberal de mercado dentro da uma empresa pública. Quer demissão de 10 mil trabalhadores, fechamento de mais de 700 agências e venda de ativos. Demissão é lucro na veia, no primeiro momento. Depois é destruição da empresa.
Já está sendo impossível fazer a empresa funcionar com o quadro atual, pois houve uma diminuição de 45 mil pessoas, equivalente a 36,11% do número de trabalhadores dos Correios entre 2013 e 2025.
Sobre a expertise de Rondon, temos acompanhado uma série de medidas administrativas que estão aprofundando a crise. Um grande exemplo é o tema do empréstimo de R$ 12 bilhões que ele estruturou. A proposta inicial, apresentada por Rondon, era que os Correios pagassem 130% do Certificado de Depósito Interbancário (CDI) aos bancos, com risco zero já que o Tesouro é que será a garantia . Ou seja, um bom negócio para os bancos.
E não se trata de trocar seis por meia dúzia. Quem tem condições de apontar uma saída para atual crise são os próprios trabalhadores. Defendemos eleições diretas para a diretoria dos Correios e acabar com regalias, altos salários e privilégios indevidos dos gestores. Controle da empresa pelos trabalhadores e usuários.
Lula afirmou que o projeto de saída para a atuaa crise “é a construção de parcerias com empresas privadas”. Falou, inclusive de que há uma empresa italiana interessada.
Lula , há poucos meses, fazia uma campanha que o Brasil é dos brasileiros, por conta da polêmica com Trump e a extrema direita. Ou seja, totalmente contraditório com defender agora a desnacionalização de uma empresa pública que, sim, traz consigo riscos à soberania. Os Correios não é apenas prestadora de serviços postais, mas um instrumento de soberania nacional e de integração territorial.
Já tínhamos conhecimento da proposta de parceria com empresas chinesas como a Alibaba, especialmente na modalidade de investimento estrangeiro direto. A Alibaba é uma das empresas mais associadas ao chamado sistema “996” — jornada das 9h às 21h, seis dias por semana, totalizando 72 horas semanais.
A Mercado livre, outra multinacional, recebeu a visita de Lula em seu centro de distribuição em Cajamar, na Grande São Paulo, no começo de abril. Lula chegou a dizer que os investimentos da empresa são símbolo da vitalidade econômica . Pois bem. Os trabalhadores da Mercado Livre denunciam metas desumanas — até 120 entregas por hora —, calor sufocante, assédio moral e o esgotamento físico e psíquico como rotina.
Para nós trabalhadores, o primeiro passo para saída da crise é a reafirmação do monopólio estatal sobre serviços postais, mas também expandir o monopólio para os logísticos e de encomendas. Só assim vamos impedir que áreas lucrativas sejam apropriadas por empresas privadas e ainda menos por multinacionais que ganham dinheiro aqui e mandam para o exterior.
A concorrência privada domina os nichos mais rentáveis (entregas expressas, logística corporativa e e-commerce), enquanto multinacionais controlam fluxos internacionais e tecnologia logística. A soberania postal e logística brasileira depende da retomada de investimentos públicos e da defesa do monopólio estatal nas áreas estratégicas
E sobre a hipótese que Lula afirmou de transformar os Correios em uma empresa de economia mista?
A campanha dos petroleiros que estão em greve neste momento é “Mais ACT, menos acionista”. É isto porque fizeram uma experiência concreta do que é ser uma S/A (Sociedade Anônima). Significa ter como centro rentabilizar os acionistas. A União manteria o controle formal da empresa e abriria até 50% das ações da empresa ao capital privado. O fato da União ser acionista majoritária na Petrobrás, por exemplo, não foi uma barreira absoluta à captura pelo mercado dos rumos da empresa, como mostrou a alta de preço dos combustíveis alguns anos atrás. Os acionistas nacionais e estrangeiros entram para sugar o lucro da empresa para seus outros investimentos e não para reinvestir no país ou na própria empresa.
Lula, na prática, também defende a privatização. A burguesia quer uma privatização de forma aberta. Lula quer de forma disfarçada.
Por que o governo não investe nos Correios ?
Vários dirigentes sindicais dizem que o governo não pode investir nos Correios porque a grande mídia está contra, que o governo é refém do Congresso Nacional, … Mas o que está impedindo o aporte de recursos, neste momento, é o arcabouço fiscal. E este novo teto de gastos não foi uma herança dos governos anteriores. Foi elaborado pelo Ministério da Fazenda, logo no início do governo Lula. A compressão dos gastos públicos não deixa margem para uma estratégia de recuperação diferente da privatizadora.
Por outro lado, o que a gente acompanha é que não falta dinheiro publico para salvar várias grandes empresas privadas. Foi assim na enchente do Rio Grande do Sul ressarcindo a Fraport, que administra o aeroporto de Porto Alegre. Foi assim no auxilio aos exportadores, depois do tarifaço de Trump. Há várias linhas de crédito subsidiado para permitir os investimentos de empresas privadas, enquanto uma empresa pública tem que pegar empréstimo a 115% do CDI.
O governo Lula só diverge na forma e no ritmo. Se o modelo é a pura e simples venda direta, ou venda parcelada, é necessário reconhecer que no fim desta estrada vê-se o mesmo ponto de chegada: a entrega do patrimônio nacional, construído pela classe trabalhadora brasileira, ao setor privado, inclusive multinacionais.
Qual é a saída para a crise dos Correios?
A única forma de permitir que os Correios mantenha sua função social e ocupe o mercado de entregas é se houver medidas concretas, do governo que proteja a empresa diante dos grandes concorrentes capitalistas, que superexploram a mão de obra no nosso país. Lula, ao invés de entrar na lógica do mercado, deveria criar um Plano Nacional de Investimentos Logísticos sob gestão estatal. Um plano que articulasse transporte terrestre, aéreo e fluvial, integrando os Correios a uma política mais ampla de desenvolvimento territorial e infraestrutura pública. Mantendo presença nas regiões periféricas e interioranas, onde o mercado privado não tem interesse em atuar.
Se houver expansão do monopólio, o Correios pode e deve ser ponta de lança no mercado de e-commerce, aprimorando a plataforma “Mais Correios” com preços populares e mais acessíveis que os praticados pelas multinacionais.