Entrevista: Greve da Uespi ensina sobre luta de classes e o papel cumprido pelo governo do PT
O portal Opinião Socialista entrevistou Daniel Solon, professor da Uespi e membro do comando de greve
Professores (as) da Universidade Estadual do Piauí (Uespi) estão em greve desde 2 de janeiro de 2024. Com perdas salariais que ultrapassam 70% em mais de uma década, e enfrentando graves problemas estruturais e ataques à autonomia universitária, a categoria docente enfrenta a truculência do governo Rafael Fonteles (PT), o maior empresário do ensino privado no Estado.
O portal Opinião Socialista entrevistou Daniel Solon, professor da Uespi, membro do comando de greve. Militante do PSTU, Daniel foi dirigente do Sindicato Nacional de Docentes de Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e da Secção Sindical do Andes-SN na Uespi, a Adcesp, tendo participado ativamente de diversas mobilizações da comunidade universitária como greves e o movimento #SOSUESPI.
OPINIÃO SOCIALISTA — Nas duas últimas décadas houve grandes enfrentamentos da comunidade universitária em defesa da Uespi, por melhores condições de trabalho e estudo. Foram diferentes governos, mas todos eles parecem manter uma linha de continuidade. Não por acaso, um período quase totalmente governado pelo PT. O que têm representado estes governos para a Uespi?
DANIEL SOLON — São governos que sempre mostraram desprezo, em menor ou maior grau, para com a Uespi, a maior universidade pública no Piauí. Mas me permita tentar uma síntese sobre o período. Até o início dos anos 2000, ou seja, antes da era petista, a Uespi havia passado por uma expansão desordenada, altamente precarizada, chegando a ter cursos até mesmo em estados vizinhos. Era um momento de grande demanda por formação em nível superior, a partir da Lei de Diretrizes de Bases, que exigiu diploma universitário para os trabalhadores e trabalhadoras do magistério do ensino fundamental. A chegada do PT ao poder no Piauí em 2003 coincidiu com o momento de decadência do momento expansionista da Uespi, que tinha o financiamento do governo federal, oferecendo formação em condições precaríssimas, em cursos acelerados. Outra coincidência: era a primeira vez com que o PT passou a governar o país, com a eleição de Lula, tendo como vice José Alencar, um grande industrial, do PL. Wellington Dias, destacado dirigente sindical petista que havia chegado ao cargo de deputado federal a partir de uma aliança eleitoral com o PSDB em 1997, soube aproveitar a “onda Lula” da campanha de 2002 e uma grave crise política que envolvia a disputa de poder entre o antigo PFL e o PMDB no Piauí. Aproveitando a insatisfação popular com os políticos tradicionais de direita, ele tornou-se governador fazendo o mesmo tipo de aliança, ainda que informal, que Lula fez com os mais ricos, com os grandes empresários, latifundiários, e setores da oligarquia estadual. Um dos aliados foi Mão Santa (PMDB), que havia sido cassado do cargo de governador por corrupção eleitoral em campanha de reeleição, e que foi sucedido por governo tampão do segundo mais votado, Hugo Napoleão, do PFL.
Já era então um PT adaptado à ordem, e da confiança dos grandes grupos empresariais no Piauí?
Sem dúvidas. A própria disputa eleitoral que resultou na reeleição de Mão Santa ajuda a ilustrar isso. Como disse, em 1997, o PT do Piauí se coligou aos tucanos e aceitou ser vice na chapa do candidato do PSDB ao governo estadual. Os tucanos administravam a prefeitura da capital, Teresina, há algum tempo, favorecendo principalmente os grandes empresários, a exemplo das empresas de coleta de lixo e do transporte urbano de passageiros, além de especuladores fundiários, sobrando apenas o tratamento truculento aos servidores e servidoras municipais que lutavam por direitos. A partir desta composição com o PSDB, que tinha FHC disputando contra Lula em nível nacional, o PT continuou costurando acordos com a burguesia do Piauí, até aproveitar a crise política entre os “de cima”. Neste processo, chegou a ganhar até quadros do PSDB para o PT, como Fábio Novo, ligado desde cedo ao agronegócio na região dos cerrados e que hoje aparece como pré-candidato a prefeito de Teresina.
Havia grandes expectativas de mudanças sociais e políticas com a chegada do PT ao poder no Piauí em 2003?
Assim como em nível nacional, com a eleição de Lula, Wellington chegou ao poder através de um projeto de conciliação de classes, e com um programa que era praticamente continuidade dos governos anteriores, mas com uma característica de governo de “frente popular”. Wellington gerou ilusões de que os serviços públicos seriam tratados de forma diferente, seriam valorizados e que o funcionalismo público seria respeitado e conquistasse melhorias salariais. Contou, nesse sentido, não só com o apoio eleitoral da maioria das direções sindicais, movimentos populares e estudantil, dirigidos pelo PT e PCdoB. Vários dirigentes sindicais acabaram assumindo cargos públicos no governo Wellington, praticamente neutralizando as lutas sindicais, luta por terra, e outros direitos. O governo Wellington realizou reforma administrativa que extinguiu órgãos públicos, demitiu servidores não-estáveis, tentou criminalizar greves que eram realizadas pela base. Tais movimentos grevistas aconteceram praticamente a contragosto de direções sindicais que sabotavam as mobilizações de trabalhadores e trabalhadoras, como as greves da educação básica, dirigidas pelo Sinte, o maior sindicato cutista do Piauí.
Mas como explicar o ascenso das lutas da Uespi neste período?
Assim como outros setores do funcionalismo, a categoria docente da Uespi percebeu os limites do governo Wellington, que governava para os grandes empresários, principalmente para o agronegócio, sobrando migalhas para os serviços públicos, quando sobravam. Estas relações políticas e econômicas com o grande empresariado rendiam não só grandes financiamentos de campanha para a máquina eleitoral durante as eleições que aconteciam de dois em dois anos, pelo calendário da Justiça Eleitoral, para prefeito, vereador, deputado, senador. Até as disputas internas do PT tinham financiamento empresarial. Em uma das disputas internas mais ruidosas pelo diretório estadual do PT na década de 2000, o candidato a presidente e deputado estadual Fábio Novo contou na campanha até com um jatinho da empresa JB Carbon, que detonava o meio ambiente transformando os cerrados em carvoaria, e explorando até o trabalho escravo, segundo fiscalização do ministério do trabalho à época. Foi com este tipo de relação com o empresariado que o ex-tucano Fábio Novo chegou à presidência do PT.
Mesmo assim, foi possível arrancar conquistas para o funcionalismo no período?
Na verdade, em geral, foi um momento de grandes derrotas para os servidores estaduais. Na educação básica, por exemplo, a carreira do magistério foi praticamente esfacelada, com a perda de uma série de direitos que até hoje a categoria tenta recuperar, como a regência de classe. De certa forma, um ponto fora da curva foi a situação da Uespi. A universidade foi um espaço de resistência ao governo Wellington, que teve que fazer diversas concessões ao movimento docente, exatamente pelo PT não ter o controle sobre o sindicato dos docentes, a Adcesp, num momento importante da reorganização do movimento sindical no Brasil. Lembremos que se deu nessa época a ruptura de alguns setores com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), cada vez mais governista, e a construção de uma nova ferramenta da classe trabalhadora brasileira, a Conlutas, que viria a se tornar mais tarde em Central Sindical Popular – CSP Conlutas, a qual ainda hoje somos filiados. A independência do sindicato frente ao governo foi fundamental para que as lutas da categoria docente não fossem desmoralizadas pelo governo. É óbvio que nem toda luta que travamos, desde então, foi vitoriosa. Mas estaríamos em uma situação muito pior se não tivéssemos um sindicato que soube se manter blindado do governismo e da conciliação de classe. Foi através da luta independente que conseguimos acabar com as taxas e mensalidades que eram cobradas na Uespi, fazer vários concursos públicos para docentes e técnicos efetivos. Ainda hoje é problemático o número de docentes com contratos precários na Uespi, mas imagine o que era ter cerca de 70% do quadro de professores e professoras como “substitutos”, como acontecia até meados dos anos 2000. Também foi através da luta que conquistamos melhorias no nosso Plano de Cargos, Carreiras e Salários. Uma greve de 62 dias em 2008 nos garantiu a maior recomposição de perdas entre todas as categorias do funcionalismo estadual e algumas conquistas no Plano de Cargos que hoje vem sendo atacado pelo governo Rafael Fonteles, através do Projeto de Lei Complementar 09/2023, que praticamente transformará a Uespi em um escolão, sem pesquisa e sem extensão. Por isso, nossa denúncia também é de afirmar que a Uespi não é o iCEV, que é a empresa de Rafael Fonteles no ensino superior.
Então já são mais de 20 anos de PT no governo estadual?
Praticamente, sim. Wellington Dias teve dois mandatos, de 2003 a 2010, e elegeu o sucessor, Wilson Martins (2010- 2013), do PSB. Wilson e o PT, na sucessão estadual de 2014 passaram por breve ruptura, por desacordo meramente eleitoreiros. E mais uma vez a Uespi foi a “pedra no sapato” do então governo, a partir do movimento SOS UESPI. Apesar do nome, que poderia parecer um pedido de socorro desesperado, o SOS UESPI foi um dos momentos mais politizados da Universidade em torno de melhorias estruturais, novos concursos, e por autonomia universitária, por orçamento público decente. Não temos a pretensão de dizer que foi a luta da Uespi que foi a pá de cal na trajetória político-eleitoral de Wilson Martins ao senado, e do vice dele, que concorreu à reeleição. O fato é que, em 2013, foi a primeira vez que um governador não conseguiu se eleger ao senado. Outra coisa inédita: o candidato de Wilson à sucessão governamental também foi derrotado eleitoralmente. Mas sem dúvida, os principais enfrentamentos dos movimentos sociais contra Wilson Martins tiveram como estopim o movimento SOS UESPI, que foi às ruas e fez diversos bloqueios de avenidas, ao mesmo tempo em que teve forte presença nas mídias sociais, método inclusive que foi retomado nas poderosas lutas contra o aumento das passagens de ônibus em Teresina, em 2011 e 2012. Outra coisa importantíssima nas lutas da Uespi foi a unidade com o movimento estudantil. Sem essa luta conjunta, seria muito difícil obtermos avanços em defesa da Universidade.
E mais uma vez o PT voltou ao governo estadual com a derrota do grupo de Wilson Martins?
Sim. Houve o retorno de Wellington Dias ao poder em 2014, e que conseguiria nova reeleição na disputa de 2017, mais uma vez com grande apoio do empresariado e com as direções da grande maioria dos movimentos sociais. Tais governos de Wellington, no entanto, foram cada vez mais à direita, totalmente comprometido com os interesses do agronegócio, das mineradoras e dos grandes projetos de energia dita “verde”, atraindo empresas estrangeiras de captação de energia solar e eólica, acirrando os graves problemas de disputas por terra, e com a expulsão de populações tradicionais do campo. Em 2022, Wellington voltou a vencer eleição ao senado e conseguiu eleger Rafael Tajra Fonteles ao governo. Rafael foi secretário de fazenda durante o governo petista. Ele é filho de Nazareno Fonteles, um dos quadros da ala direita do PT no Piauí, conhecido por sua arrogância e truculência contra as correntes petistas minoritárias e mais à esquerda. A mãe de Rafael é de uma das famílias mais poderosas do empresariado local. Os Tajra controlam grande parte dos meios de comunicação no Piauí e de grandes empresas do comércio local, de artigos de variedades, a concessionárias de veículos. Rafael e família construíram nos últimos anos um dos maiores grupos de ensino privado, desde o infantil à pós-graduação, o grupo iCEV. Foi este grande empresário que chegou ao governo do Piauí, através do PT. Mas seria superficial dizer que o PT é dirigido por empresários somente pelo papel que Rafael cumpre hoje. Há várias eleições para o parlamento, desde vereadores a deputados federais, os candidatos mais ligados aos movimentos sociais servem apenas como figurantes nas campanhas. Os eleitos, em geral, são empresários e os ditos profissionais liberais, afastados do cotidiano das lutas populares e da classe trabalhadora.
Finalmente chegamos ao governo Rafael Fonteles. Há diferença entre este e os outros governos do PT no Piauí quanto à relação com os movimentos sociais?
Em geral, há muita continuidade na forma de governar. Mas este é um governo diferente das primeiras experiências de “frente populares”, dos primeiros mandatos de Wellington Dias. Sem dúvidas, o governo continua tendo controle da maioria das direções dos sindicatos e movimentos sociais, a partir do PT e do PCdoB. A participação de dirigentes sindicais e de movimentos populares em cargos do governo estadual é ainda uma realidade, embora em nível menor. A novidade no jogo de ilusões para que o governo Rafael tente um verniz de “governo popular” foi a instalação de uma Mesa Estadual de Negociação Permanente (MENP), vinculada à Secretaria Estadual de Relações Sociais (Seres), a pasta que o governo criou para buscar domesticar os movimentos sociais. Quem dirige a Seres é ninguém menos que Núbia Lopes, ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Educação Básica (Sinte) à época do primeiro mandato de Wellington Dias, nos anos 2000, odiada em sua categoria que a identifica como a pessoa que acabou com a carreira do magistério. Como assessor de Núbia, há um dos mais conhecidos quadros do MST no Piauí. Esta MENP foi baseada na mesa criada pelo governo Lula, envolvendo entidades dos movimentos sindicais do funcionalismo. Tal como aconteceu no caso federal, a MENP é um espaço de enrolação, para não dizer imposição. O governo vem dizendo que quer propor um reajuste em torno de 5% ao funcionalismo em maio de 2024, o que seria um pouco maior que o índice oficial da inflação de 2023, que foi de 4,62%. Rafael tem dito que perdas anteriores a 2023 não serão negociadas. Se a vontade do governo prevalecer, e levando-se em consideração as perdas inflacionárias nos primeiros cinco meses de 2024, os salários do funcionalismo continuaram em decomposição de inflação. Há categorias que estão amargando perdas de cerca de 70%, e este é o caso dos docentes da Uespi. Como proposta unitária do funcionalismo, os sindicatos levaram à MENP o índice de 22% para 2024 e o parcelamento do restante para os anos seguintes. Mas a cara de pau do governo Rafael em não reconhecer as perdas durantes os governos do PT e aliados é enorme. Basta ver que o próprio Rafael, enquanto secretário de fazenda durante o governo Wellington, comandou a política de arrocho ao funcionalismo.
Como entender esta política de arrocho implementada contra o funcionalismo estadual? Qual a relação disso com o histórico que você apresentou de adaptação do PT à ordem burguesa e sua relação com a burguesia?
Obviamente, o PT no Piauí apenas seguiu a mesma trajetória do que houve com o PT em nível nacional, de abandono completo das ideias que pregavam mudança social e independência de classe, no início dos anos 1980, para um projeto de gerenciar o estado em favor da burguesia, através da ideia de conciliação de classes. Pode-se dizer até que o PT no Piauí foi um dos primeiros ensaios da política de frente ampla, ainda nos anos 1990, como falei há pouco, a respeito da coligação com o PSDB na eleição de 1997. Se em 2022, a frente ampla em nível nacional resultou na chapa Lula/Alckmin, em termos locais, formou-se a chapa Rafael/Themístocles. Rafael foi vendido como produto publicitário que representava o “novo” na política. Não à toa, a campanha eleitoral de Rafael escondeu Themístocles Filho da propaganda. Oriundo de uma das mais fortes oligarquias rurais da região norte do Piauí e do MDB, Themístocles presidiu a Assembleia Legislativa por quase 20 anos. O pai dele também foi conhecida figura política do Piauí. Nos anos 1990, quando o PT ainda era oposição, o Themístocles “pai” foi o maior alvo do então deputado estadual Welligton Dias, que o acusava de corrupção no Detran. Enfim, as profundas diferenças entre o PT e Themístocles desapareceram em nome da necessidade de formar uma chapa mais confiável ao grande capital, ao mesmo tempo em que cinicamente falavam em combater a extrema direita. A frente ampla na eleição de 2022 no Piauí seguiu o modelo da realizada por Lula-Alckimin, e o resultado na forma de governar não poderia ser diferente: são governos que atendem aos interesses da burguesia, e contra os interesses da classe trabalhadora. Para exemplificar o quanto o governo do PT está atrelado ao agronegócio, por exemplo, basta ver Rafael em suas redes sociais. Nas últimas semanas, ele fez vídeos relatando a felicidade em o governo investir nos grandes projetos produtores de grãos para exportação, como a soja. Em suas visitas de campo à região do cerrado, ele não sentiu qualquer constrangimento em elogiar os “reis do agro” que aparecem na lista de maiores financiadores de campanha de Bolsonaro, inclusive os que aparecem em listas de escravocratas modernos, divulgadas pelo Ministério do Trabalho.
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É possível dizer que a greve tem causado estragos na “imagem” pública do governo Rafael Fonteles?
Sim. E isso quem afirma são os que estudam sobre pesquisas de opinião e se atém ao debate político no Piaui. Em termos locais, é visível o desgaste do PT entre a comunidade universitária, e isso tem alcançado outros setores da sociedade que notam a indisposição de Rafael em negociar com os grevistas da Uespi. Já se vê com certa frequência, nas mídias sociais, frases como: “eu não voto em candidato que apoia ou é apoiado por quem corta salário de professor”. É um claro recado à candidatura petista de Fábio Novo, em Teresina, e de outros municípios, como Parnaíba. Por outro lado, ainda há um setor que enxerga em Lula e no PT nacional uma possibilidade de apoio, para “sensibilizar” Rafael a negociar. Aos poucos, no entanto, a ilusão se desfaz. Na Conferência Nacional de Educação (Conae), recentemente, um grupo de docentes entregou carta pessoalmente a Lula e a presidente nacional do PT, pedindo intermediação com o governo Rafael, e denunciando o autoritarismo do governo petista no Piauí que cortou salários de grevistas. No entanto, nem Lula, nem PT nacional, e nem o PT local, se pronunciaram, e nem vão intervir a favor de quem faz a greve. Exatamente porque Lula também impõe uma política de arrocho ao funcionalismo federal, ajustando o orçamento da União para atender aos interesses dos grandes empresários e banqueiros a partir do tal “Arcabouço Fiscal” aprovado no Congresso.
De que que forma a greve na Uespi ajuda a entender sobre como funciona o Estado e para quem ele serve?
São muitos os aprendizados numa greve como a da Uespi. Aprendemos, por exemplo, que se trata de um momento importante da luta de classes no Piauí. Quando docentes da Uespi se levantam na luta por melhores salários, na prática, o que os trabalhadores e trabalhadoras estão fazendo é disputando para onde vão os recursos do Estado. No capitalismo, como nos ensinaram Marx e Engels, os governos modernos nada mais são do que gerentes dos negócios da burguesia. O dinheiro é limitado e a disputa por ele é feroz, inclusive entre a própria burguesia, em diferentes setores. A vontade do governo Rafael, portanto, é diminuir cada vez mais os recursos e financiamentos públicos nas áreas sociais como educação e saúde públicas, por exemplo, para sobrar dinheiro para os chamados “investimentos” em obras que atendam ao agronegócio, à mineração e outros grandes projetos privados, além de destinarem mais dinheiro para os banqueiros, no pagamento da dívida pública. Há ainda outro tipo de beneficiamento feito pelo governo ao grande capital, via dispensa de cobrança de impostos. São bilhões de reais que o agronegócio, mineração e energia dita “verde” deixam de pagar ao estado, sob a falácia de que estes setores geram empregos. E é aí que entra a luta de classes, embora ela não seja tão visível assim para a grande maioria da população. Quando a categoria docente da Uespi entra em greve, juntamente com estudantes, em defesa da autonomia universitária, melhores salários, melhores condições de trabalho e estudo, o que a comunidade universitária está fazendo é o enfrentamento contra os interesses do grande capital, na disputa orçamentária. Na prática, o que estamos dizendo é: “o dinheiro que o governo dá para os ricos, para as grandes empresas e banqueiros nacionais e internacionais deve ter um outro destino. Este dinheiro deve servir para garantir o direito à educação pública, gratuita e de boa qualidade”. Na verdade, este pensamento serve para o conjunto das lutas realizadas pelos trabalhadores e trabalhadoras em defesa do serviço público em geral, e nossa esperança é que outras categorias venham a se somar à luta e construamos uma greve geral, para que possamos gritar mais forte ainda que queremos não só melhores salários, mas direitos sociais que beneficiem a toda a sociedade.
Mas para a maioria da população, a luta da Uespi hoje não é entendida como uma reivindicação meramente econômica?
Não duvido. Até porque os meios de comunicação social estão, em geral, ao lado do governo, e não têm interesse em mostrar o problema da falta de autonomia universitária, e a miséria que é o orçamento anual da Uespi, e como as riquezas e estrutura do estado funcionam para manter o enriquecimento de poucos e a pobreza de milhões. Ainda sobre a questão orçamentária, não é demais lembrar uma situação gritante que é escondida do debate midiático: a Uespi tem campus espalhado em várias regiões do Piauí e envolve diretamente cerca de 20 mil estudantes, docentes e técnicos administrativos. Mesmo com todo este tamanho, a Uespi tem orçamento anual menor que o da Assembleia Legislativa, para bancar os privilégios de 30 deputados estaduais, como Geraldo Carvalho, nosso candidato do PSTU a governador em 2022 tão bem denunciou na campanha eleitoral. Ele também alertou que um governo Rafael Fonteles seria de ataques e precarização da educação pública, em favor da expansão do ensino privado. O desafio do movimento grevista, portanto, é explicar o que eu disse há pouco, nos meios em que tivermos oportunidade: que o movimento é justo e se trata de uma pauta que deve ser abraçada pelo conjunto da classe trabalhadora e juventude. Isso o comando de greve tem feito. Particularmente, a militância do PSTU tem feito o esforço de sempre dialogar com a categoria docente, estudantes e sociedade em geral, afirmando que a luta da Uespi não está separada da luta de classes em geral, e que os problemas que enfrentamos na universidade, o sucateamento dos serviços públicos e a pauperização do funcionalismo não estão dissociados da realidade que vemos atingir a classe trabalhadora em nível internacional, como resultado da crise do capitalismo. Em um dos momentos em praça pública, por exemplo, às vésperas da greve geral na Argentina, usei o microfone para falar do papel que o Piauí cumpre na divisão internacional do trabalho, as justificativas de tantas viagens de Rafael Fonteles ao exterior para “vender” o Piauí e suas riquezas à União Europeia, e como nossa realidade local tem a ver com a luta do povo argentino contra o governo Milei, e o genocídio praticado por Israel contra os palestinos. Também afirmamos sobre os limites da greve e da democracia que temos hoje. E que no capitalismo, nenhum direito está protegido, e até uma conquista econômica se perde rapidamente com a inflação. Por isso, a partir do tratamento que nos têm dado tanto os governos de direita como os do reformismo do PT, dizemos que é preciso construir uma outra sociedade, socialista, mesmo que isso possa parecer agora um assunto distante para a grande maioria.