Cultura

Filhos do Dragão: quem controla o império bilionário da China?

Luciana Candido

27 de maio de 2025
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Cena de “China’s Rich Girls” (Meninas ricas da China, em tradução livre)

Três jovens mulheres, na casa dos vinte anos, vestidas com as maiores grifes do mundo, embarcam em um iate. Elas abrem um espumante caro e brindam. Ao avistar um edifício suntuoso às margens do curso por onde navegam, uma delas diz: “Aquela é minha casa”.

A cena é parte do documentário China’s Rich Girls (Garotas ricas da China), de 2016, produzido pela Al Jazeera e apresentado pelo jornalista Steve Chao. Ele acompanha a vida de três herdeiras bilionárias chinesas – Chelsea (26), Diana (24) e Pam (26) – que representam a nova elite da China, com um estilo de vida extremamente luxuoso e caro.

Infelizmente, o documentário não revela os sobrenomes ou as famílias exatas das três jovens, provavelmente para proteger suas identidades (ou por escolha delas). No entanto, dá pistas sobre seus backgrounds.

Chelsea é apresentada como uma socialite de Shenzhen, filha de um magnata do setor imobiliário. Mostra seu dia a dia em festas, compras de alto luxo (como bolsas Hermès) e viagens de jato particular.

Diana é filha de um importante empresário de Xangai, de um setor não especificado, possivelmente financeiro ou de tecnologia. Ela estuda em uma universidade de elite nos Estados Unidos e tenta provar que é mais do que “apenas uma herdeira”. Sente-se pressionada pelo pai para assumir os negócios da família, mas diz: “Meus pais são muito claros sobre a questão do dinheiro. Eles dizem: ‘até você se formar na universidade, o que você quiser gastar, nós queremos pagar, por tudo o que você quiser fazer’”.

Pam é herdeira de uma fortuna ligada ao setor industrial, provavelmente de manufatura ou exportação. É mostrada como a mais desprendida, usando sua riqueza para curtir a vida sem responsabilidades. Ela diz que gosta de Chanel, Dior e outras marcas famosas. Faz comentários polêmicos (e repulsivos), como “dinheiro não é problema, é só uma ferramenta” e “é caro para pessoas normais, mas nós estamos comprando sua arte”.

O fato de as famílias não serem reveladas está relacionado à privacidade, mas não só. Como o documentário critica o consumismo e a desigualdade social na China, poderia sofrer retaliações por parte da ditadura de Xi Jinping. Além do mais, como em qualquer país capitalista, ostentar riqueza na China pode atrair sequestros e investigações fiscais.

O documentário está disponível no YouTube (legendas disponíveis em inglês)

Quem são? Onde vivem? O que fazem?

Os herdeiros notáveis da China têm perfis variados: alguns assumem os negócios da família, outros seguem carreiras independentes e há os que levam um estilo de vida mais discreto (ou luxuoso). Costumam frequentar círculos de elite em Shenzhen, Hong Kong, Estados Unidos e Europa. Eles praticam filantropia com doações para universidades (há generosas doações de famílias chinesas a Harvard, por exemplo). Alguns perdem fortunas em investimentos arriscados, como criptomoedas – sem por isso ficarem pobres.

Shenzhen (Foto Ben Cheung)

Entre os que trabalham nos negócios da família, está Yang Huiyan, da Country Garden, que herdou a maior construtora da China de seu pai. Ela foi, por anos, a mulher mais rica da Ásia. Já He Jianfeng, filho do fundador do Midea Group, He Xiangjian, atua na administração e se prepara para suceder o pai na maior fabricante de eletrodomésticos do mundo. Liu Qing, da Lenovo, é filha do fundador da empresa, Liu Chuanzhi. Ela ocupou cargos executivos na Lenovo e hoje investe em startups.

Alguns herdeiros criaram seus próprios negócios. Wang Sicong, filho de Wang Jianlin, dono do conglomerado Wanda, é famoso por investir em e-sports, streaming (fundou a Panda TV) e por ter um estilo de vida extravagante. É famoso por festas e polêmicas. Teve altos e baixos, incluindo falências de negócios e listas de inadimplência. Pobre, no entanto, jamais. Zhang Kangyang, também conhecido como Steven Zhang, é filho de Zhang Jindong, fundador do grupo Suning (varejo, esportes etc.) e dono do clube Inter de Milão. Steven foi presidente do clube de 2018 a 2024, quando o controle do clube passou para a empresa estadunidense Oaktree Capital Management.

Os herdeiros socialites são os que vivem uma vida de luxo e viagens. Brenda Li, herdeira do setor imobiliário, é uma das mais notáveis. É conhecida por posts em redes sociais com jatos privados, bolsas Hermès e festas em Dubai e Mônaco. Assim como ela, o casal Huo Qigang e Guo Jingjing, da família do “Rei do Esporte” de Hong Kong, une herança bilionária e fama (ela é medalhista olímpica de mergulho). Vivem entre negócios e eventos da alta sociedade. Paris Wei, herdeira de uma fortuna de mineração, é conhecida como a “Paris Hilton chinesa”. Exemplos de gente rica ostentando fortuna não faltam.

Dragão de Ouro (Foto: Coppertist Wu)

Uma moda que tem pegado entre os sinobilionários é mandar os filhos para estudar no exterior, apesar de a China ter uma educação de altíssimo nível. Muitos filhos da elite chinesa estudam em Universidades da Ivy League (Harvard, Stanford, Yale, Princeton, Columbia etc.) ou no Reino Unido (Oxford, Cambridge). Os cursos preferidos são MBAs, finanças ou tecnologia, para depois assumir negócios da família ou fundar startups. Os filhos de Jack Ma e Pony Ma, do Alibaba, por exemplo, estudaram nos Estados Unidos antes de voltar para cargos em suas empresas.

Por fim, existem os herdeiros fantoches, que têm presença só no papel. Alguns são formalmente donos de ações, mas não trabalham ativamente, como os filhos de magnatas estatais (executivos de petróleo, bancos públicos). Estes são chamados de herdeiros invisíveis. Corre um boato de que empresas estatais chinesas como PetroChina, Bank of China etc. teriam executivos que transferem riqueza para familiares por meio de contratos obscuros. Este não é um fato confirmado, embora seja realista.

Freepik (IA)

O Estado chinês e o direito de herança

Existe um debate sobre o caráter do Estado chinês. Para castrochavistas e neostalinistas, defensores do capitalismo chinês e de sua ditadura, a China é o epicentro socialista da atualidade. Para alguns intelectuais que se reivindicam marxistas, simplesmente não houve restauração capitalista no país asiático. Existem muitas facetas neste debate, e não há um só argumento neostalinista ou reformista que resista à prova do marxismo. Aqui, queremos discutir o direito de herança.

A China, incluindo Hong Kong, já é o segundo país com o maior número de bilionários (516), perdendo apenas para os Estados Unidos (902). Esses indivíduos acumulam uma fortuna de US$ 2,035 trilhões, correspondentes a 12,64% do patrimônio total dos bilionários do mundo, estimado em US$ 16,1 trilhões. Grande parte desse montante irá direto para as mãos dos descendentes destes sujeitos.

Na China, as regras de herança seguem o Código Civil da República Popular da China de 2021. A herança legal (sem testamento) segue a ordem de prioridade: 1ª classe (cônjuge, pais e filhos) e 2ª classe (irmãos e avós). Há a modalidade de testamento também, que pode ser escrito, oral ou gravado, para o qual se exigem testemunhas.

A China não tem imposto sobre herança, embora existam taxas sobre transferências de propriedade. Com relação às empresas familiares, é comum os herdeiros assumirem os negócios, ainda que haja disputas judiciais frequentes por falta de planejamento na sucessão.

Outro fato bastante notável é que, devido à antiga política do filho único, muitos herdeiros recebem fortunas concentradas absurdas.

Em bom português: algumas centenas de parasitas, entre os 1,4 bilhão de habitantes da China, vão botar a mão numa riqueza para a qual não contribuíram nem desempenharam um papel produtivo minimamente relevante. Enquanto isso, no chão das fábricas e nos escritórios, a maioria da população vive extenuada, com baixos salários e jornadas desumanas.

Xangai Foto Wolfram K

O que dizia Marx?

A crítica marxista ao direito de herança adquire novos contornos no contexto chinês. Ela parte da premissa de que este é um instrumento jurídico fundamental para a reprodução da desigualdade social: a acumulação privada não apenas persiste ao longo da vida de um indivíduo, mas se perpetua por gerações, consolidando a dominação de classe.

Marx e Engels defendiam, portanto, a abolição do direito de herança ou sua restrição como medida transitória rumo a uma sociedade comunista. Essa ideia está celebrada no segundo capítulo do Manifesto Comunista, “Proletários e comunistas”, como a terceira de dez medidas imediatas a serem propostas pelos comunistas ao tomar o poder, com o fim de interromper a transmissão intergeracional da propriedade.

Na Crítica ao Programa de Gotha (1875), Marx critica o programa do Partido Operário Alemão e reafirma a centralidade da luta contra a propriedade privada dos meios de produção, o que inclui o direito de herança, que, para ele, é apenas uma das formas jurídicas da propriedade privada. Desse modo, combater a propriedade privada significa necessariamente combater a herança.

Ao criticar o pensamento idealista, Marx e Engels discutem como a família patriarcal e o direito de herança são pilares do sistema de dominação material da burguesia. A herança é vista como uma forma de reprodução social da classe dominante. Isso é notado em A ideologia alemã e em inúmeras cartas e artigos, nos quais Marx ironiza o “direito natural” da herança e critica os socialistas burgueses que querem manter a herança enquanto fingem combater a desigualdade, e isso se aplica muito bem à China.

O crescimento acelerado da economia chinesa gerou um núcleo emergente de grandes fortunas familiares, em especial entre empresários do setor tecnológico e imobiliário. Segundo o China Family Office Report 2023, a China possui hoje mais de dois mil indivíduos com patrimônio superior a 1 bilhão de yuans (cerca de US$ 139 milhões), e a transmissão intergeracional dessas fortunas se tornou uma preocupação central das chamadas primeiras gerações de ricos pós-reforma.

Apesar de o Partido Comunista Chinês manter oficialmente o socialismo no discurso, a prática estatal tolera e protege o acúmulo familiar de capital, refletindo uma tensão entre os princípios do marxismo e a realidade de um capitalismo imperialista. Xi Jinping tem lançado campanhas que evocam a “prosperidade comum”, defendendo um reequilíbrio na distribuição de renda, sem, no entanto, abolir os mecanismos de herança. Ou seja, é só retórica.

A questão também ganha relevância demográfica: com o envelhecimento da população e o fim da política do filho único, cresce o número de jovens herdeiros com acesso a imóveis, empresas e ativos financeiros, acentuando as desigualdades estruturais. Assim, a crítica marxista à herança oferece um referencial teórico potente para problematizar os limites da justiça social na China atual, onde a transição ao socialismo é uma fantasia contrarrevolucionária, profundamente desmentida por dinâmicas familiares próprias do capitalismo.

Marx e Engels defendiam a abolição do direito de herança como parte do processo revolucionário. Na China atual, o acúmulo e a transmissão intergeracional de grandes fortunas refletem uma contradição entre a retórica pseudossocialista do Partido Comunista Chinês e a prática econômica baseada na concentração de riqueza.

Assim, a herança é um vetor de enorme relevância na China capitalista atual para reprodução das desigualdades e da superexploração.

O desenvolvimento econômico chinês desde as reformas de Deng Xiaoping deu origem a uma nova classe de bilionários, especialmente nos setores imobiliário, financeiro e de tecnologia, cuja preocupação central é agora garantir a continuidade patrimonial por meio de sucessões familiares organizadas. Essa tendência se intensifica num cenário de envelhecimento populacional, urbanização e aumento dos ativos privados.

Retomar a crítica à herança não é apenas uma evocação doutrinária, mas uma chave para compreender o caráter de classe do Estado chinês.

Fontes

Forbes Real-Time Billionaires: https://www.forbes.com

Hurun Report: https://www.hurun.net

Bloomberg Billionaires Index: https://www.bloomberg.com

South China Morning Post: https://www.scmp.com

Filmes e séries sobre herança e fortuna para entender a China

Filmes

Eu não sou Madame Bovary (2016) – Dirigido por Feng Xiaogang

Sinopse: Uma mulher luta contra o sistema e sua própria família após um divórcio que a deixa sem direitos sobre propriedades. Tema: herança indireta e desigualdade de gênero na China rural.

O funeral do chefão (2001) – Comédia de Feng Xiaogang

Sinopse: Um cineasta pobre se envolve no testamento absurdo de um magnata. Tema: capitalismo, ostentação e herança.

Balas em Fúria (2010) – Filme de ação com Jiang Wen

Sinopse: Um falso herdeiro de fortuna se envolve em uma trama de poder e corrupção.

Séries

All Is Well (2019) – Drama familiar

Sinopse: Uma filha é excluída da herança da família, enquanto os irmãos homens brigam por propriedades. É uma crítica à preferência por filhos homens na sucessão familiar.

Ode to Joy (2016-2017) – Novela moderna

Sinopse: Cinco mulheres com diferentes origens sociais, incluindo herdeiras ricas, enfrentam conflitos em Xangai.

Nada além dos trinta (2020) – Drama urbano

Sinopse: Uma das protagonistas é uma esposa rica que luta para manter seu status após divórcio e perda de herança.

The Heirs (2017) – Série jurídica

Sinopse: Advogados especializados em disputas de herança enfrentam casos reais na China.

Adivinhe quem eu sou (2024) – Drama dirigido por Zhong Qing

Sinopse: Um vigarista se passa por herdeiro de um poderoso grupo empresarial e acaba se envolvendo numa trama de crime e ganância.

Novelas de Hong Kong e Taiwan

Heart of Greed (2007-2017) – Saga familiar

Sinopse: Brigas épicas por herança em uma família dona de uma cadeia de lojas.

The Gem of Life (2008) – Novela de luxo

Sinopse: Três irmãs disputam fortuna e poder no mundo dos negócios e da alta sociedade.

Reality shows sobre ricos e herdeiros

Dear Inn – Reality show com celebridades e herdeiros administrando negócios.

Rich kids of China – Documentários e virais mostram a vida de herdeiros em Ferraris e festas.

Onde Assistir?

YouTube (canais oficiais de dramas chineses, como Youku)

Viki (com legendas em português) – https://www.viki.com

WeTV (Tencent) ou iQIYI (plataformas chinesas com alguns conteúdos internacionais)

Mercado Play (filmes)

Amazon Prime (filmes)

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