Cultura

Hermeto Pascoal e a crueldade das navalhadas do governo

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

30 de março de 2025
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O músico Hermeto Pascoal. Foto Divulgação

Na quinta-feira, dia 27, uma postagem feita pelo músico Hermeto Pascoal nas redes sociais, denunciando que, desde o início do ano, sua aposentadoria havia sido bloqueada pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), causou espanto e uma onda de indignação, protestos e solidariedade ao genial multi-instrumentista que está com 88 anos.

Diante da enorme repercussão, inclusive internacional, até mesmo porque Hermeto é cultuado mundo afora, no final da tarde do dia seguinte, o INSS anunciou que o benefício de Hermeto havia sido reativado. Contudo, isto, de forma alguma ameniza o cruel absurdo desta história. Pelo contrário. Como o próprio Hermeto escreveu, a situação em que o governo federal o colocou deve “servir de alerta” sobre os (des)cuidados do Estado para com os idosos.

 

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Um ataque à cultura brasileira

Talvez, gente das gerações mais recentes não entenda o porquê da denúncia ter viralizado e causado tanto furor. Então, vale lembrar, por exemplo, que Hermeto também é conhecido como “O Bruxo”, dada sua capacidade e criatividade quase “sobrenaturais” na composição, arranjos e improvisação, usando instrumentos que vão do saxofone, piano, flauta e acordeão a bules, panelas, talheres, metais, madeiras ou objetos e materiais dos mais diversos (incluindo o próprio corpo).

A título de exemplo, eu próprio, em meados dos anos 1980, tive o enorme prazer de vê-lo “tocar” uma pequena cachoeira, enquanto estava acampado na região de Rio Grande da Serra, no ABC Paulista.

O fato é que o alagoano, depois de passagens pelo Recife (onde conheceu Sivuca, outro maluco genial), São Paulo e Rio de Janeiro, acumulando saberes e experiências – tocando, por exemplo, “Ponteio”, com Edu Lobo, em um dos festivais da época; ao lado de Geraldo Vandré, em “Canto Geral”; ou, ainda, com a cantora Flora Purim e o percussionista Airto Moreira –, ganhou o mundo, fazendo parcerias e se apresentando nos quatro cantos do planeta.

Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, depois de gravar com ninguém menos que o revolucionário Miles Davis, Hermeto compôs a fantástica “Slaves Mass” (“Missa dos escravos”) o que atraiu a atenção de músicos com Stan Getz e Chick Corea, dentre outras, e o levou para o Festival de Montreaux (na Suíça), um dos principais templos do jazz mundial.

De lá pra cá, “O Bruxo” nunca se aquietou e, mesmo com quase 90 anos, continua compondo, se apresentando e sendo reconhecido como uma das melhores expressões da música brasileira, basta lembrar que, em setembro passado, se apresentou no “The Town”, em São Paulo, e que um dos seus últimos trabalhos, “Hermeto Pascoal e sua visão original do forró”, de 2019, ganhou o incensado “Grammy Latino”, na categoria “Melhor álbum de música de raízes em Língua Portuguesa”.

Apesar de tudo isto, Hermeto sempre foi conhecido por se ver e se comportar como “gente do povo”, distante das bobagens que caracterizam aqueles e aquelas que, sob os holofotes, se veem como privilegiadas estrelas. Mesmíssima postura que ele adotou diante do cruel descaso do qual foi vítima:

“O problema é grave, afeta milhares de pessoas e não pode ser tratado com normalidade. Estatuto do Idoso garante prioridade e respeito no atendimento público — mas isso está longe de acontecer na prática (…). Esse caso não é um pedido por privilégio. É um alerta sobre como o sistema trata nossos idosos, inclusive aqueles que dedicaram suas vidas à cultura brasileira”, escreveu o músico, no Instagram, citando, também, dois outros exemplos bisonhos, o de Fernanda Montenegro e o de Martinho da Vila, que também tiveram suas aposentadorias suspensas (no caso da atriz, porque o sistema a registrava como “morta”!!!).

Longe de ser um caso excepcional

A única coisa de “excepcional” neste episódio lamentável é a rapidez com a qual o INSS reverteu a suspensão do pagamento, que, na verdade, se deu em dois momentos distintos.

A primeira suspensão foi causada por “falta de vida presencial” em Curitiba, onde “O Bruxo” não reside há 10 anos, algo que só foi resolvido através de um processo longo e burocrático. E, mesmo assim, depois disto, a aposentadoria voltou a ser bloqueada por “falta de saque”; ou seja, quando o pagamento não é retirado dentro do prazo, e o INSS estorna o valor e interrompe os depósitos.

Ambos os casos são extremamente frequentes nos benefícios relativos a idosos, como também foi denunciado pelo músico, muitas vezes em função da maior dificuldade que pessoas acima de 60 anos têm para lidar com informática e particularmente os “callcenters” e aplicativos exigidos, tanto para o acesso aos valores quanto para resolver os frequentes problemas, como atrasos, bloqueios e suspensões.

No caso de Hermeto, ao regularizar a situação, no final do dia 28, o INSS, além de tentar deslegitimar Hermeto (afirmando que ele não fazia saques há anos), alegou que e bloqueio é a única forma para evitar fraudes e fez questão de destacar que os valores se referiam ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), auxílio destinado a pessoas de baixa renda com mais de 65 anos e pessoas com deficiência de qualquer idade, em situação de vulnerabilidade, que, hoje, garante a sobrevivência de 5,7 milhões de pessoas (3,12 milhões de idosos que não puderam contribuir ao INSS e 2,68 milhões de pessoas com deficiência).

Desculpas esfarrapadas à parte, o fato é que só podemos entender o que aconteceu com Hermeto como como parte das políticas de “ajustes” e cortes nas verbas e serviços públicos que o governo Lula tem promovido para satisfazer as exigências do “mercado” e dos banqueiros, através do enquadramento no arcabouço fiscal e do pagamento da dívida, e se transformam em ataques exatamente contra estes setores mais vulneráveis.

Não é um acaso, por exemplo, que, ano passado, o Ministro da Fazenda Fernando Haddad tenha escolhido um evento realizado pelo banco BTG Pactual para anunciar sua proposta inicial de cortes no BPC: “Estamos fazendo ajuste no BPC agora de corrigir distorções. Isso não pode ser chamado de corte”, disse, abusando da hipocrisia, ao afirmar que o propósito era colocar “o dedo na ferida para corrigir essas distorções”.

Na época ficou mais do que evidente que os únicos que teriam suas feridas abertas, expostas e cutucadas seriam as pessoas com deficiências (PcD), idosas, pobres e vulneráveis, a enorme maioria delas em situações ainda piores do que a de Hermeto, já que a proposta Haddad e Lula, seus aliados “de esquerda” e seus “companheiros” do Centrão, era fazer cortes que poderiam chegar a R$ 6,5 bilhões. Somente o Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome, por exemplo, anunciou que iria realizar um “pente-fino” que poderia atingir até 1,2 milhão de beneficiários (ou seja, eliminar 11 a cada 100 benefícios já concedidos).

Depois disso, no final de 2024, o que já seria um ferimento grave, quase se transformou num tumor, quando, como parte “dos ajustes” apresentado para sustentar o arcabouço fiscal, Haddad apresentou medidas cuja perversidade ultrapassavam todos os limites, ao, por exemplo, incluir no cálculo da renda per capta familiar do beneficiados a renda de irmãos, filhos e enteados solteiros, casados, ou viúvos, ou seja, praticamente todos que dividissem um mesmo teto e até mesmo o ex-cônjuge separado (mas que não estivesse divorciado no papel), mesmo que não morasse na mesma residência.

E, se não bastasse, ainda retirava da dedução da renda familiar qualquer outro benefício que um outro residente pudesse ter (por exemplo, uma família composta por um idoso e uma pessoa PcD em que ambos recebessem o benefício, perderia metade da renda). E, absurdo ainda mais cruel, o governo Lula quis excluir o benefício a pessoas PcD’s de grau 3, considerado “leve”, termo, aliás, amplamente problematizado, já que qualquer grau de deficiência requer algum nível de suporte.

O escândalo foi enorme, mobilizando as redes sociais e familiares, principalmente mães de filhos PcD’s, e até mesmo o influencer Ivan Baron, que sofre de paralisia cerebral e que representou os PcD’s na subida da rampa na posse de Lula, o que acabou fazendo com que o governo, como parte das negociações para aprovar o resto do “pacote de maldades” – leia o artigo “Governo Lula fecha o ano sancionando ataques ao salário mínimo, abono salarial e BPC. Entenda” – , retirasse a proposta, mantendo “apenas” sua intenção de passar um “pente-fino” no sistema.

Exatamente por isso, o “alerta” de Hermeto Pascoal é importante muitíssimo importante, pois é evidente que idosos mais vulneráveis e com menos visibilidade do que ele a esta altura devem estar passando por situação semelhante ou pior.

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