Isenção do Imposto de Renda do governo Lula é limitada e não toca nos verdadeiros super-ricos

Em meio a um forte declínio de popularidade, o governo Lula enviou ao Congresso Nacional seu prometido projeto de isenção do Imposto de Renda a quem recebe até R$ 5 mil. O discurso do governo dá conta de que 10 milhões de assalariados seriam beneficiados pela medida, cuja compensação se daria com a tributação do que se chama de “super-ricos”: os que recebem mais de R$ 50 mil por mês, ou R$ 600 mil anuais, e englobaria 141.400 pessoas.
Essa medida, porém, além de ser extremamente limitada, não resolve a brutal desigualdade de renda, muito menos o caráter regressivo do sistema tributário e a acumulação de capital pelos bilionários. Para começar, o governo não propõe atualizar a tabela do IR. O projeto visa isentar por fora da tabela a faixa de renda até os R$ 5 mil, estabelecendo um desconto desta faixa até os R$ 7 mil, e, a partir daí, segue a tabela tal qual é hoje.

Imposto de Renda hoje e com o “desconto especial”
Se por um lado essa isenção confere certo respiro a uma parte da classe trabalhadora (que hoje está fora da isenção de até dois salários mínimos), por outro, ao não significar uma atualização da tabela de conjunto, tende a, com o tempo, beneficiar um número cada vez menor de trabalhadores. Ou seja, ao fixar um valor de isenção por fora da tabela e sem atualizá-la, com a inflação, os que forem isentos a partir da aprovação da medida tendem a ultrapassar essa faixa com o passar dos anos. Não por coincidência, esse alívio momentâneo só viria em 2026, ano eleitoral.
É bom lembrar que a defasagem da tabela do Imposto de Renda chega a 167% desde 1996 (segundo cálculos da Unafisco). E aqui entra uma pegadinha: o governo, ao contrário do prometido, não está elevando a faixa de isenção do IR, mas simplesmente estabelecendo uma faixa fixa, que, assim como aconteceu com a tabela do IR nas últimas três décadas, tende a se defasar e perder o seu efeito já limitado.
Além disso, ao manter os impostos concentrados sobre o consumo, os mais pobres continuarão arcando com o maior peso dos tributos. Assim, simplesmente não é verdade que quem ganha até R$ 5 mil não vai pagar imposto. Continuará pagando, e muito, toda vez que vai ao supermercado ou compra um pingado com pão e manteiga na padaria. Assim como os 40 milhões de trabalhadores informais (segundo números do próprio IBGE), cuja renda média é inferior à dos trabalhadores com carteira e pagam o mesmo imposto sobre o consumo que o bilionário Carlos Alberto Sicupira, um dos que fraudaram as Americanas – ele embolsou bilhões e continua impune, livre, leve e solto.
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E os super-ricos?
Ao contrário do que vem sendo divulgado, os super-ricos que seriam sobretaxados, essencialmente a faixa que vai de R$ 600 mil a R$ 1,2 milhão anuais, estão muito longe de abarcar os bilionários que concentram grande parte da renda no país. Os que vão entrar no alvo do leão, apesar de não comporem mais de 1% da população, fazem parte de uma classe média mais endinheirada que está muito longe do topo da pirâmide social. É o profissional liberal, o executivo de uma empresa, um trabalhador mais qualificado, enfim, grande parte que, embora usufrua de uma renda maior que grande parte da população, ainda vive, em sua maioria, de seu trabalho.
Mais do que isso, o projeto impõe uma alíquota inicial de 2,5% a quem ganha mais de R$ 600 mil por ano, progredindo até atingir 10%. Porém, como, em geral, parte de quem ganha essa renda já é tributada hoje (ainda que pouco, perto dos 27,5% que paga quem ganha acima de R$ 4,6 mil), na prática, esse pessoal já estará isento de qualquer aumento de imposto. Só vai começar a pagar um pouco a mais quem ganha acima de R$ 1,2 milhão.
Como isso ocorre? Segundo levantamento do economista Sergio Wulff Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados da Receita Federal, esses milionários já pagam atualmente uma alíquota média que vai de 5% a 8,5%. Para atingirem os 10%, portanto, terão que desembolsar uma porcentagem de apenas 1,5% a 5% a mais. O governo afirma que quer taxar os dividendos (parte dos lucros de uma empresa garantidos por uma ação ou título), mas o projeto impõe um imposto de 10% dos dividendos só para quem recebe mais de R$ 50 mil ao mês. Aqui tem outra pegadinha. Como já vai haver o teto de 10% sobre a renda total desses milionários (e, quanto mais rico, mais os dividendos compõem essa renda), na prática eles continuarão isentos ou pagando muito pouco, pois a parte dos dividendos que faria exceder esse limite dos 10% será devolvida.
O ministro Fernando Haddad defende que o projeto taxe os dividendos de forma indireta ao taxar a renda total dos super-ricos (o Brasil é um dos poucos países que não taxa dividendo, ao lado da Estônia). Mas a realidade é que quem vive de dividendos só vai desembolsar um valor ínfimo a mais. O projeto enviado pelo governo Lula ao Congresso Nacional é ainda mais limitado do que defendia o próprio Paulo Guedes, o ultraliberal ministro da Economia de Bolsonaro, que fez um projeto taxando em 20% os dividendos (que o próprio já considerava “modesto”). O projeto do governo Bolsonaro chegou a ser aprovado na Câmara, mas foi engavetado e está mofando no Senado.
Além disso, pelo atual projeto do governo Lula, títulos financeiros como LCA e LCI (Letra de Crédito Imobiliário e Letra de Crédito do Agronegócio) continuarão completamente fora de qualquer taxação, independentemente da renda de seus detentores. Ou seja, de antemão, antes mesmo de qualquer negociação no Congresso Nacional, o governo Lula já protege o agronegócio e o setor imobiliário.
Taxar fortemente os verdadeiros super-ricos, mas não só
Segundo levantamento do banco suíço UBS divulgado em 2024, o Brasil possui 60 bilionários (em dólares). Um conjunto de pessoas que caberia num ônibus e que carrega uma fortuna equivalente a R$ 943 bilhões, quase 10% do PIB do país.
Um estudo divulgado pela ONG Oxfam em 2022, quando o Brasil contava com 55 bilionários, revela que, juntos, esses verdadeiros super-ricos (e não o que o governo chama de super-rico) concentravam o equivalente às riquezas de 60% da população. Enquanto isso, 90% do povo ganha até R$ 3.500 por mês.
Se quem ganha até R$ 1,2 milhão por ano vai passar a pagar um valor ínfimo de imposto, pelo projeto do governo, os bilionários ficarão praticamente intocados, assim como seu lucro e patrimônio. É impossível realizar uma verdadeira reforma tributária, que ao menos minimize um dos mecanismos mais regressivos do mundo, seguido de uma desigualdade social que só perde a países como África do Sul, Namíbia, Colômbia e Zâmbia, sem mexer nas fortunas, nos lucros e nos patrimônios dessa fatia de seis dezenas de bilionários e sem desonerar completamente o consumo.
A vergonhosa estrutura tributária brasileira taxa os trabalhadores na fonte e tem certa progressividade até atingir os mais endinheirados. A partir disso, ela se torna drasticamente regressiva, como mostra o gráfico acima.
O atual projeto do governo garante um alívio efêmero a uma reduzida parte da classe trabalhadora. Para quem vai deixar de pagar absurdos R$ 200 de IR, isso não é nada desprezível, ainda mais numa conjuntura de inflação galopante dos alimentos. A questão é que, além de ter um efeito momentâneo, não resolve o problema da regressividade do sistema tributário, continua taxando de modo pesado a classe trabalhadora e não atinge os bilionários. Por isso o anúncio do projeto foi bem recebido pelo mercado e até pelo Congresso Nacional.
É necessário taxar e expropriar os bilionários e os monopólios
É preciso isentar na íntegra pelo menos os trabalhadores assalariados que ganhem até R$ 10 mil. Depois, impor um Imposto de Renda fortemente progressivo que reduza o peso da classe média e ataque os verdadeiros donos das riquezas, os bilionários sentados sobre fortunas acumuladas a partir da apropriação do fruto do trabalho da grande maioria da população. Seria o mínimo do mínimo para se falar em reforma tributária.
A política do governo Lula, porém, vai no sentido contrário. Um exemplo: ao mesmo tempo em que Haddad anunciou seu projeto de isenção, o Banco Central, já sob a gestão do governo Lula, aumentou ainda mais as taxas de juros. Só para comparar, a isenção do IR custaria algo em torno de R$ 25 bilhões; já a cada 1% de juros que o BC aumenta, são mais de R$ 50 bilhões que são transferidos a banqueiros e especuladores por meio da dívida pública. E, como numa roda infernal, a dívida aumenta, e o governo corta verbas e aperta o arcabouço fiscal para garantir seu pagamento. Isso é distribuição de renda? É transferência pura e simples das riquezas produzidas pelos trabalhadores para grandes monopólios capitalistas e internacionais.
A desigualdade social, porém, só será combatida de forma consequente ao se expropriar as fortunas dos bilionários, assim como os monopólios capitalistas que dominam, por meio das 200 maiores empresas, a maior parte da economia do Brasil, impondo a escala 6×1 e salários de fome, remetendo seus lucros para fora e aprofundando seu caráter colonial, suspendendo e auditando a dívida pública e, enfim, fazendo com que a classe trabalhadora e a classe média deixem de pagar pelas isenções e pelos lucros dos grandes bilionários.