Julho das Pretas: Basta de recorte! Feminicídio das mulheres negras, transsexuais e travestis
Gabi Assunção, de Rio Grande (RS) e Raiane Assunção, de Santo André (SP)*
É preciso iniciar denunciando que a maioria das organizações de esquerda, o que inclui algumas organizações de mulheres, não falam especificamente do feminicídio das mulheres negras, transexuais e travestis. Falam apenas do feminicídio da mulher branca e fazem um recorte para os outros grupos de mulheres. E nós, mulheres negras, transexuais e travestis, estamos cansadas de ser “recorte”!
O Estado e a maioria dos movimentos de mulheres, incluindo os de mulheres negras, consideram feminicídio como ato praticado pelos homens contra as mulheres, que envolva violência doméstica, familiar, menosprezo ou discriminação à condição da mulher. Entretanto, cabe destacar que essa é uma visão limitada, de que o lar é o principal espaço desses acontecimentos. Não podemos isentar o Estado burguês que exerce um papel fundamental nessa barbárie e é por isso que defendemos a destruição do mesmo. A precarização de serviços como saúde, educação e a falta de emprego digno têm custado a vida de centenas de mulheres pretas e trans.
Um retrato da decadência do capitalismo
As condições de vida das mulheres pretas escancaram a decadência do sistema capitalista, visto que são superexploradas em épocas de crescimento econômico e são as primeiras a ficarem desempregadas em épocas de crise. Prova disso é que, em 2019, a taxa de desemprego era de 10,6% para mulheres não negras (a soma de mulheres que se autodeclaram brancas, amarelas e indígenas) e 16,6% entre mulheres negras. Com o aprofundamento da crise econômica brasileira somada à crise de saúde, uma parcela expressiva de mulheres perdeu seu emprego durante a pandemia. No primeiro ano da pandemia (2020), a taxa de desocupação de mulheres não negras subiu para 13,5% enquanto a taxa de desemprego de mulheres negras foi para 19,8%. [1] Dados da pesquisa: “Pandemia na Favela – A realidade de 14 milhões de favelados no combate ao novo Coronavírus”, mostraram que o número de mulheres negras desempregadas durante a pandemia passou a ser o dobro em relação ao de homens brancos.
A fome como uma contradição do sistema capitalista
Apesar da taxa de mortalidade da COVID-19 ser maior entre os homens, o impacto socioeconômico da pandemia tem sido devastador para as mulheres. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 63% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres negras e estão abaixo da linha da pobreza, em oposição, para os lares comandados por mulheres brancas, 39,6% deles estão abaixo da linha da pobreza [2].
Conforme pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, durante a pandemia, 10,7% dos lares chefiados por mulheres negras se encaixam no quadro da fome [3]. Se de um lado da balança a pandemia aprofundou o cenário da fome e da miséria no país, do outro, fez com que o país se consolidasse como o maior exportador líquido de produtos agropecuários do mundo. [4] Isso significa que, enquanto o país teve um aumento quatro vezes maior no cenário da fome durante a pandemia, o agronegócio bateu recordes, isto é, o país passou a produzir mais alimentos durante este período. Só no primeiro ano de pandemia (2020), esse setor aumentou o seu PIB em 23%, chegando a quase dois trilhões de reais. [5] E por isso, essa conta não fecha! O país que passou a ser um dos maiores produtores mundiais de alimento é o mesmo que a fome passou a marca de 60 milhões de pessoas, atingindo 1 em cada 3 brasileiros. Além disso, pela primeira vez, a insegurança alimentar da população brasileira superou a média mundial. Sendo que a insegurança alimentar feminina chega a ser seis vezes maior que a média da população. A estatística é contraditória, mas para nós marxistas fica nítido que a fome no país aumenta na mesma proporção que a fortuna dos grandes empresários.
O feminicídio tem cor e classe no país
A Lei Maria da Penha foi fruto de muita luta do movimento de mulheres, mas infelizmente nem com sua aprovação, em 2006 pelo governo Lula, o número de vítimas de violência doméstica deixou de ser alarmante, pelo contrário, no total, a quantidade de mulheres que havia sido morta em 2013 era 12,5% a mais do que em 2006. Além disso, em 2006 o número de vítimas caiu 2,1% entre as mulheres brancas e aumentou 35,0% entre as negras. A Lei do Feminicídio foi aprovada em 2015 pelo governo Dilma e em 2016 houve aumento de 38,3% no número de vítimas e novamente a maior parte delas eram mulheres negras.
Isso evidencia duas coisas, a primeira é que o racismo é um fator que intensifica essa violência. A segunda é que lutar por leis é importante e urgente para garantir condições dignas a toda população dentro do sistema capitalista, mas que elas sozinhas são insuficientes. As estatísticas comprovam que a legislação não consegue extinguir um problema mesmo quando há um maior investimento. Então, lutar por leis e políticas públicas são importantes, mas não é a solução.
Mais uma evidência disso é o Brasil ocupar a 5ª posição no ranking mundial de feminicídio. Segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2 em cada 3 mulheres vítimas de feminicídio em 2020 são negras, o que representa 62% das vítimas de feminicídio no Brasil. Das demais vítimas 36,5% são brancas, 0,9% amarelas e 0,9% indígenas. Ser mulher e negra no Brasil significa trabalhar mais, ganhar menos, estar mais expostas a violência e viver limitadas as oportunidades em um mercado de trabalho. Por isso, a nossa solução não está nas urnas e não está dentro do sistema capitalista.
Feminicídio contra as mulheres transsexuais e travestis
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, em 2018 foram mortas 163 pessoas trans no país, sendo que 97% delas são mulheres transsexuais e travestis.[6] Essas vítimas têm raça e classe, pois 82% delas são pretas e 65% dos assassinatos são direcionados aquelas que são prostitutas. Em 2020, o país seguiu liderando o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans no mundo, foram pelo menos 175 assassinatos de pessoas trans, sendo todas travestis e mulheres transexuais. Não foram encontradas informações de assassinatos de homens trans ou pessoas transmasculinas na pesquisa realizada pelo ANTRA.[7] O que reafirma o ponto de vista de que o gênero é um fator determinante para essas mortes.
O processo de exclusão dessas pessoas começa bem cedo e dentro de casa. Segundo a ANTRA, travestis e mulheres transexuais costumam ser expulsas de casa aos 13 anos de idade. Estudos mais recentes apontam que essa rejeição pode ter um impacto devastador sobre a vida dessas pessoas, isolando-as dos espaços sociais essenciais ao seu bem-estar, além de provocar um aumento das dificuldades de acesso e continuidade na formação escolar. [7] Por consequência, pela falta de suporte, de apoio, a qualificação profissional se torna inviável, impondo-lhes uma interrupção do processo de acesso à cidadania e empurrando para subalternidade e para prostituição. Assim, essas mulheres passam a ser superexploradas pelo capitalismo, pois 90% da população de travestis e mulheres transsexuais utilizam a prostituição como fonte de renda e devido à baixa escolaridade provocada pelo processo de exclusão escolar, apenas 0,02% do grupo estão nas universidades, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental. Esse conjunto de violências causa enormes impactos na saúde mental dessas mulheres, altos níveis de isolamento e suicídio. Tudo isso se reflete nos altos número de feminicídio da juventude trans no país, de acordo com o Mapa dos Assassinatos 2020, 56% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos.
Nós mulheres transsexuais e travestis queremos condições de vida dignas!
Basta de defender a profissionalização da prostituição como uma saída para melhorar as condições de vida das mulheres transsexuais e travestis! Nossos corpos não estão à venda e nós não somos mercadorias! Precisamos ficar atentas e entender a quem realmente essa pauta favorece.
Além do fato do machismo e da transfobia serem ideologias que cumprem o papel de precarizar a vida dessas mulheres, aparenta que empregabilidade das mulheres transsexuais e travestis está mais relacionada com a posição que essas mulheres podem vir a ocupar na sociedade. Se for para ocuparem postos subalternizados ou que não dê nenhuma ou quase nenhuma visibilidade para essas mulheres os governantes e algumas organizações reformistas se movimentam, mas se for para terem oportunidade de trabalhar em uma empresa com atendimento ao público, vender um produto ou gerenciar uma equipe, os mesmos não se movimentam, pelo contrário, inventam vários empecilhos. Isso mostra uma das faces dessa proposta disfarçada de solução. Porque, ao invés de proporem lei para profissionalização da prostituição, os governantes não propõem leis para garantir cotas dessa população dentro das empresas, das universidades, das instituições pública. Qual a dificuldade em proporem leis que garantam o acesso dessas mulheres a direitos básicos como saúde, educação e moradia digna?
O segundo ponto é que profissionalizar a prostituição não retirará o preconceito que a sociedade possui com as pessoas que praticam isso, assim como a abolição da escravatura não fez desaparecer o racismo e não trouxe reparações para o povo negro até hoje. Atualmente, nós mulheres transexuais e travestis ocupamos o mesmo lugar na sociedade que as mulheres negras ocuparam após abolição da escravidão que é o de não ser reconhecidas como seres humanos, trabalhar nos postos mais precários e marginalizados, expostas a todo tipo de violência, com quase nenhuma lei que proteja nossas vidas. Os anos se passaram e as estatísticas comprovam que pouca coisa mudou de fato na realidade das mulheres negras e, para nós marxistas, isso acontece porque essas desigualdades e opressões precisam existir para a manutenção do sistema capitalista, porque dentro do capitalismo o lucro está relacionado a desigualdade e com a superexploração.
É por isso que entendemos que nós mulheres transsexuais e travestis só seremos livres da opressão e da exploração em uma sociedade construída pelos trabalhadores (sociedade socialista), mas até lá, queremos poder ter o direito de ingressar, permanecer e se formar em uma escola de ensino básico e fazer isso tendo nossos corpos e nomes sociais respeitados! Queremos poder escolher ou não fazer uma faculdade, escolher qual profissão seguir e o mais importante queremos ser reconhecidas e tratadas como seres humanos! Estamos cansadas da exclusão e da solidão que a sociedade nos impõe, cansadas de não ter acesso a direitos básicos e de ter que sobreviver de ação afirmativa.
As mulheres negras, transexuais e travestis precisam de uma revolução socialista!
Através das estatísticas é possível observar que, entra governo e sai governo, e nós mulheres negras, transsexuais e travestis seguimos sendo a carne mais barata do mercado e isso precisa acabar!
É preciso combater as opressões diariamente no conjunto do nosso povo e da nossa classe, mas temos que ter em mente que o machismo, o racismo e a transfobia são ideologias que cumprem um papel social dentro do sistema capitalista. São ideologias da burguesia, que visam a dominação e a superexploração do povo preto, LGBT e de toda a classe trabalhadora, para assim, aumentar ainda mais os lucros dos grandes empresários.
Alguns setores do movimento preto e do movimento de mulheres pretas, acreditam que o aumento do feminicídio preto está vinculado a antecedentes europeus, que o estupro é um símbolo da cultura branca [8]. Entretanto, essas teorias surgem para dividir a luta do nosso povo e a nossa classe, é utópico acreditar que o fim do racismo e do feminicídio da mulher preta se dará quando o povo preto romper com teorias brancas.
Esses setores propõem que os homens pretos são machistas devido à colonização europeia e não apontam nenhuma ou quase nenhuma saída para a superação do machismo. Por isso, é importante enfatizar que os homens pretos são machistas porque nasceram dentro de um sistema que os educam para serem machistas e não porque foram escravizados por brancos europeus. A escravidão do povo preto surgiu como forma de acumular riquezas para que assim pudesse surgir o sistema capitalista, ou seja, as raízes do sistema capitalista são em cima da opressão, da matança e da superexploração do povo preto. E de lá para cá, desde o surgimento desse sistema, nada mudou, em períodos de crise do capitalismo se tem um aumento da opressão, para gerar mais exploração e assim a burguesia lucrar ainda mais.
O crescimento do feminicídio preto durante o governo de Dilma e o crescimento do desemprego e encarceramento entre os pretos nos EUA durante o governo de Obama são as maiores expressões de que o empoderamento individual é uma política ilusória e deixou evidente que não basta ter preto/a ou mulher no governo, se o programa é burguês. É por isso que nós mulheres negras, transsexuais e travestis não podemos confiar nossas lutas nos resultados das eleições!
O governo Bolsonaro representa a Casa Grande no Brasil, um governo racista, machista e transfóbico. E nós mulheres negras, transsexuais e travestis precisamos lutar com a mesma independência de classe que nossas ancestrais quilombolas lutaram e assim, concluir a tarefa que elas não conseguiram realizar: Construir um quilombo socialista no Brasil e na América Latina. É por isso que o Quilombo dos Palmares não deve ser apenas uma lembrança histórica do passado de luta do nosso povo, mas sim uma necessidade para o presente! Precisamos construir uma alternativa de poder nesse país, uma alternativa dos debaixo para derrubar os de cima.
*Artigo de colaboração à discussão da Secretaria de Negras e Negros do PSTU
Este texto é baseado na publicação: “Basta de recorte: Feminicídio da mulher preta” publicado em 25/07/2019 no site do PSTU e da LIT-QI, e que foi atualizado para o 25 de julho de 2022
REFERÊNCIAS
[1] Brasil a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Acesso: https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/graficosMulheresBrasilRegioes2021.html
[2] Síntese dos Indicadores Sociais Uma análise das condições de vida da população brasileira 2019. Acesso: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf
[3] Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil 2022.
[4] Secretaria de Relações Internacionais do Agronegócio SRI/MAPA: apoiando a inserção internacional e a transformação contínua da maior agricultura tropical do planeta. Acesso: https://www.embrapa.br/en/olhares-para-2030/artigo/-/asset_publisher/SNN1QE9zUPS2/content/odilson-luiz-ribeiro-e-silva?inheritRedirect=true
[5] Agronegócio cresce na pandemia: Sinais que o setor ferroviário precisa de investimentos. Acesso: https://massa.ind.br/agronegocio-cresce-na-pandemia/#:~:text=De%202019%20para%202020%2C%20o,de%20gr%C3%A3os%2C%20um%20n%C3%BAmero%20recorde.
[6] Dossiê dos ASSASSINATOS e da violência contra TRAVESTIS e TRANSEXUAIS no Brasil em 2018.
[7] ANTRA: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020.
[8] Mulherisma Africana – Nah Dove.