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Julieta e as caminhantes

Lena Leal

1 de fevereiro de 2024
star5 (9 avaliações)

Ela é a andarilha, imigrante, refugiada, deportada, errante, artista ambulante. Às vezes gostaria de assentar, mas a curiosidade, a dor e a insatisfação a proíbem.

Deborah Levy – Swallowing Geography. In: Flâneuse – Mulheres que caminham pela cidade – Lauren Elkin, 2022

Sair de casa é uma subversão – afirma a escritora Lauren Elkin ao comentar o quanto a rua se constituiu historicamente como um espaço masculino. Em seu livro sobre mulheres que caminham nas cidades – um recorte que mistura ensaios e memórias pessoais –  a autora inicia questionando o significado do popularizado termo francês flâneur, que segundo o dicionário – “ é aquele que vagueia a esmo”. Já seu  correspondente no feminino – flâneuse – designa tão somente um tipo de espreguiçadeira (sic), explicitamente avesso ao caminhar. A autora decide, então, nos levar para flanar por histórias de algumas mulheres que subverteram a lógica do significado misógino em diferentes cidades e tempos históricos. Apesar de trazer histórias individuais de mulheres escritoras muitas vezes advindas de uma classe média aristocrática, a autora cita estudos que comprovam o quanto as ruas das cidades sempre foram ocupadas pelas mulheres trabalhadoras. Obviamente estar pelas ruas não significava – nem significa hoje – estar livre, leve e solta. Pelo contrário.

Mas basta um breve olhar sobre as revoluçōes para enxergá-las nas grandes rebeliões camponesas; nas ruas insalubres das primeiras cidades industriais; invadindo o Palácio de Versalhes ou iniciando a Revolução Russa em 1917.

No livro, fragmentos da vida de caminhantes escritoras mesclam  particularidades e lugares comuns das que decidem subverter o domínio masculino nas ruas. Assim, a ucraniana Marie Bashkirtseff (1858-84) reivindicava a liberdade para passear sozinha. Jean Rhys (1890-1979)  resolveu viver “fora da máquina”, cujos  cânones sociais de sua época via como um mecanismo pronto para destruí-la. Já Virginia Woolf (1882-1941) – que amava perambular por Londres – tinha nas ruas tudo o que precisava para encadear seus romances.  Havia também as que, como Aurore Dupin (1804-76) decidiram se travestir para flanar à vontade, adotando o nome de George Sand com o objetivo de tornarem aceitos seus escritos. Além delas, a cronista de maio de 68 Mavis Gallant (1922-2014), a genial cineasta Agnès Varda (1928-2019) e a jornalista e correspondente de guerra Martha Gellhorn (1908-98) preencheram as páginas deste livro que desperta, também, o desejo de ler sobre as andarilhas de nosso belo e triste e vasto continente latino-americano. Tantas caminhantes, viajantes, escritoras e artistas ambulantes, como a Julieta Hernández (1986-2024),  essa venezuelana que fez das ruas seu palco. Que escreveu sua história na estrada, pedalando e espalhando alegria da palhaça Miss Jujuba. Que sintetizou, em seu viver, toda a coragem para seguir os desejos, romper fronteiras artificiais, se apropriar do mundo. Que também nos mostrou o quanto precisamos tomar as ruas coletivamente para que cada uma possa um dia ir aonde quiser – livre, leve e solta.

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