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“Lula está entregando a Amazônia para os países ricos”, diz Alessandra Munduruku

A líder indígena também denunciou a privatização dos rios para beneficiar o agronegócio

Redação

5 de novembro de 2025
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Lula em visita à aldeia Vista Alegre do Capixauã na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Nicoly Ambrosio, de Manaus (AM) | Especial COP 30 – Portal Amazônia Real

A liderança indígena Alessandra Korap Munduruku criticou duramente a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no último domingo (2) às comunidades indígenas e ribeirinhas de Santarém (PA), na região do Baixo Rio Tapajós. A poucos dias do início da COP 30, em Belém, ela classificou a presença do presidente como “incoerente” diante do Decreto nº 12.600, de 28 de agosto, que incluiu as hidrovias dos rios Tapajós e Tocantins-Araguaia, no Pará, e Madeira, no Amazonas e Rondônia, no Programa Nacional de Desestatização (PND). O projeto promete entregar mais de 3 mil quilômetros de trechos navegáveis dos rios amazônicos para a iniciativa privada e atende aos interesses do agronegócio e de outros setores econômicos.

Mesmo o presidente Lula andando com os povos indígenas, mesmo que o presidente Lula às vezes demarque uma terra ou duas terras indígenas como ele vem fazendo, parece que ele está na contramão. Parece que, se ele dá uma terra, você tem que dar o seu rio, sua floresta em troca. E não adianta falar pelo nome do meio ambiente, não adianta falar pelos povos indígenas, se ele está entregando a Amazônia para os países ricos”, disse Alessandra em entrevista à Amazônia Real nesta terça-feira (04).

O presidente Lula esteve na comunidade Jamaraquá, na Floresta Nacional do Tapajós e na Aldeia Vista Alegre do Capixauã, na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, para participar de reuniões e rodas de conversas.

Na Aldeia Vista Alegre do Capixauã, o presidente prometeu o fornecimento de energia para mais de 4 mil famílias que vivem no território, além da criação de uma Universidade Indígena, com sede em Brasília.

Durante a visita, Lula participou de várias atividades do cotidiano dos ribeirinhos e quilombolas. Ele presenciou uma coleta de cacho de açaí, participou de uma produção de farinha e comeu bolo de macaxeira, no que ele chamou de “maratona de sabores”. Todos os registros foram postados de forma entusiasmada em suas redes sociais.

Conforme a Agência Brasil, em conversa com lideranças locais, Lula disse ter ficado surpreso com a falta de energia elétrica na comunidade e prometeu que resolverá o problema.

Uma coisa que eu estranhei. Eu pensei que tinha energia, porque eu estou vendo uma luz acesa aqui, e eu vi que todo mundo se queixou de energia”, disse o presidente.

Hoje a energia é a coisa mais fácil para a gente fazer, porque a gente pode fazer placa solar, a gente pode preservar o ambiente, pode trazer energia para vocês. E eu prometo para vocês que vocês vão ter energia aqui na comunidade de vocês”, reforçou Lula.

O presidente Lula está na região Norte desde o dia 1º de novembro. A visita a comunidades indígenas e ribeirinhas faz parte da agenda prévia de Lula antes da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), que acontecerá no período de 10 a 21 de novembro, em Belém.

Líder diz que Lula foi fazer “maquiagem”

A visita e a fala do presidente na região do Tapajós-Arapiuns revoltaram lideranças indígenas e movimentos locais devido à incoerência na retórica de Lula. Muitos apontaram para a contradição entre o discurso e as ações do governo federal sobre os direitos dos povos indígenas e do meio ambiente.

O povo Munduruku, nas discussões que a gente tem, as mulheres mais velhas se preocupam com isso. Porque era um presidente para respeitar os povos indígenas e não está respeitando. Está negociando, está vendendo a Amazônia, está negociando a nossa paz, que a gente já não tem há 525 anos e ainda continuam vendendo a nossa paz”, disse Alessandra Korap Munduruku.

O Conselho Indigena Tupinambá do Baixo Tapajós – Amazônia (CITUPI) publicou uma nota criticando a exclusão das lideranças do povo na agenda do presidente, uma vez que o território fica próximo das áreas visitadas por Lula.

Nós, povo Tupinambá, consideramos uma afronta às nossas aldeias, ele vir tão próximo de nós, ao lado do nosso Território e nossos caciques e representantes não serem convidados a participar e levar nossa voz, nossas demandas. Estamos sendo envenenados pelo mercúrio presente no nosso rio, temos nossas terras inseguras e agora véspera de COP30, não aceitamos que use a imagem da Amazônia, dos povos indígenas para dizer que está tudo bem”, diz um trecho da nota.

À Amazônia Real, o cacique-geral das 28 aldeias do povo Tupinambá, Gilson Tupinambá, disse que o desinteresse de Lula em dialogar com as lideranças da etnia tem a ver com o projeto da Ferrogrão, que vai afetar várias comunidades indígenas e a concessão do rio Tapajós para beneficiar o agronegócio. Para ele, Lula não quis ouvir os indígenas contrários a esses empreendimentos e foi ao Tapajós “fazer maquiagem”.

A ferrovia é um dos empreendimentos mais controversos para esta região do Tapajós. Ela vai afetar comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e assentamentos.

Não fomos consultados sobre esses projetos. Ele quer privatizar quatro rios, inclusive o Tapajós. Isso faz parte do projeto da Ferrogrão. É um desrespeito com nosso modo de vida, nossa cultura, nossa vida. Querem escavar um rio que é largo, mas não é fundo. A gente depende do pescado. Escavar o rio, além de desrespeito, é dizimar os povos”, disse Gilson, nesta terça.

Mesmo com a autodemarcação em curso há pelo menos cinco anos, a TI Tupinambá no Tapajós (que está sobreposta à Reserva Extrativista Tapajós – Arapiuns) tem também um processo de regularização na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), segundo Gilson.

Os Tupinambá do Baixo Tapajós se preparam para ir a Belém, onde participarão da COP30. Conforme Gilson, seu povo vai fazer “seu grito ancestral em ato político”. “Temos que ter vez e voz”, afirmou.

O Movimento Tapajós Vivo, organização que reúne comunidades indígenas, ribeirinhas e populações tradicionais da região em defesa do rio Tapajós, também publicou uma nota de repúdio nas redes sociais.

Além de criticar o decreto que privatiza os rios Tapajós, Madeira e Tocantins-Araguaia para uso logístico do agronegócio, a organização destacou o apoio do Governo Federal ao projeto de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.

Medidas que ameaçam diretamente nossos territórios, modos de vida e ecossistemas fundamentais para a Amazônia. Não aceitamos ‘jardinagem’ no período da COP 30 sem a devida coerência e compromisso socioambiental”, afirmou a organização.

Após publicação dessa reportagem, a Secretaria de Comunicação Social do governo federal enviou nota dizendo que “a visita do presidente Lula à Aldeia Vista Alegre do Capixauã, no último domingo (2), teve como propósito conhecer a realidade da comunidade que vive na Resex Tapajós Arapiuns”.

Privatização dos rios

O rio Tapajós já sofre múltiplas pressões com contaminação por mercúrio, projetos de barragens e hidrelétricas, portos construídos para o escoamento do agronegócio e o impacto de agrotóxicos e estiagens severas. Um exemplo é a tentativa de construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, um conjunto de hidrelétricas planejadas para o rio Tapajós, que inclui as usinas de São Luiz do Tapajós, Jatobá, Jamanxim, Cachoeira do Caí e Cachoeira dos Patos, entre outras propostas.

Graças a luta dos povos indígenas, sobretudo os Munduruku com a autodemarcação, e comunidades tradicionais do Médio Tapajós, apoio do MPF e protocolos de consulta, atualmente o projeto está paralisado. O licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós foi arquivado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), embora a retomada do projeto não tenha sido descartada para o futuro.

A recente decisão de ampliar a participação privada em setores de infraestrutura faz parte de um processo de avanço da política de privatizações do governo Lula. O atual projeto de leilão das hidrovias foi lançado em 2023 com o nome Plano de Geral de Outorgas (PGO) Hidroviário, pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e Ministério dos Portos e Aeroportos (Mpor). No início deste ano, o programa incluiu o rio Tapajós no Plano para transporte de soja, minérios e outras commodities do agronegócio.

A floresta como mercadoria

Para Alessandra Munduruku, o decreto desrespeita até mesmo o mundo espiritual dos povos indígenas do Tapajós, que entendem a floresta e o rio como seres sagrados e não como moeda de troca.

A riqueza para nós não é o que está debaixo da terra, são os recursos naturais. Quando o Karosakaybu [ancestral Munduruku criador do mundo] criou o rio Tapajós, ele tinha uma sabedoria ancestral. E o Lula, quando veio, entregou a nossa vida para o agronegócio. Sem nos consultar, o próprio presidente viola nossos direitos, viola a nossa vida. Ele está violando o mundo espiritual e o conhecimento tradicional. Ele não está respeitando”, manifestou a liderança.

O projeto da Hidrovia do Tapajós contempla cerca de 250 quilômetros de via navegável entre os municípios de Itaituba e Santarém, no Pará. No rio Tocantins, o traçado deve se estender por 1.731 quilômetros, entre Belém (PA) e o município de Peixe (TO). Já a Hidrovia do Madeira prevê a navegação entre Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM), conectando-se ao rio Amazonas em um percurso estimado de 1.075 quilômetros. Os trechos atravessam territórios quilombolas, ribeirinhos, indígenas, além de unidades de conservação. O rio Madeira é um dos principais afluentes do rio Amazonas.

Os estudos específicos para a concessão da hidrovia do Tapajós ainda não foram concluídos. No entanto, o governo afirma que análises preliminares realizadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) apontam que o rio tem potencial para receber navegação de cabotagem (entre portos do próprio país) e de longo curso (ligação com portos internacionais), desde que sejam feitas obras de dragagem corretiva e aprofundamento do canal.

Caso essas intervenções ocorram, o volume de embarcações que circulam pelo Tapajós poderá ser ainda maior do que o inicialmente previsto pelo governo. Mas o trecho do rio Tapajós entre as cidades Itaituba e Santarém já é ameaçado pelo avanço do escoamento de cargas do agronegócio.

Mesmo ele [Lula] falando para o mundo todo, que todo mundo tem que ter soberania, mas que soberania é essa? Se nós não podemos ter acesso ao nosso rio, se os povos indígenas não estão sendo consultados, de forma livre, prévia, informada. A gente está enfrentando uma barra esse ano antes da COP30. O que que mais o presidente Lula vai vender? A floresta virou uma mercadoria”, afirmou Alessandra Munduruku

Segundo o governo federal, a promessa é modernizar a navegação e reduzir custos logísticos no transporte de grãos e minérios do Mato Grosso para o chamado Arco Norte, complexos de transporte rodoviário, ferroviário e hidroviário responsáveis pelo escoamento dessas cargas e insumos pelos portos ao Norte do Brasil. As futuras concessionárias deverão assumir a responsabilidade de executar serviços de dragagens, balizamentos, sinalização, gestão ambiental e controle de tráfego aquaviário nos rios, atualmente feitos pelo Dnit.

Outras obras que ameaçam a vida e os territórios dos povos tradicionais da Amazônia estão na rota do Arco Norte, como a construção da ferrovia conhecida como Ferrogrão e a ampliação do asfaltamento da BR-163, considerada rota essencial para o escoamento da produção do agronegócio da região Centro-Oeste, com acesso direto ao porto de Miritituba (PA). Os principais investidores portuários privados do Arco Norte incluem grandes corporações do agronegócio e mineradoras como Hydro, Alunorte, Bunge, Cargill, Grupo André Maggi e Vale.

Demarcações paralisadas

O povo Munduruku trava uma luta histórica em defesa das terras indígenas Sawré Ba’pim e Sawré Muybu, localizados na área do Médio Rio Tapajós, nas cidades paraenses de Itaituba e Trairão. As demarcações desses territórios ancestrais estão ameaçadas ou paralisadas.

Em abril de 2023, durante o último dia do Acampamento Terra Livre (ATL), Joenia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), assinou os Despachos Decisórios que reconheceram a Terra Indígena Sawre Ba’pim como ocupação tradicional dos Munduruku. A identificação e a delimitação do território pela Funai é o primeiro passo do procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, regido pelo Decreto 1.775/1996, que efetiva os direitos territoriais. Já em setembro de 2024, ​depois de mais de 17 anos de luta, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou a Portaria 779/2024, demarcando e declarando a posse permanente do povo Munduruku sobre a Terra Indígena Sawré Muybu.

A assinatura ocorreu em Brasília e contou com a presença do cacique Juarez Munduruku, liderança histórica que há anos alerta para os riscos do avanço do garimpo e do desmatamento na região. A TI Sawré Muybu é considerada emblemática devido às ameaças constantes de garimpo ilegal e empreendimentos do agronegócio. A próxima etapa é a homologação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda sem data definida.

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