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Lutar contra as injustiças, vencer o sistema

Em um sistema no qual a regra é a violação dos nossos direitos mais elementares, cada passo adiante acumula forças para lutas maiores.

Israel Luz

9 de novembro de 2023
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Daniela de Cássia (esquerda) e Andreza Cássia (ao centro) e Thamires Rodrigues (direita) no protesto realizado na Brasilândia em fevereiro de 2022. Foto: Sonia Bischain

Novembro, o mês de Zumbi dos Palmares, começou com uma boa notícia na Brasilândia (Zona Norte de São Paulo). A ação penal movida contra Jonnatha José Gonçalves dos Santos, de 23 anos, e Rodrigo Gonçalves Bonfim, de 22 anos, foi considerada improcedente. Apesar de o Ministério Público ter recorrido, esta é uma vitória gigantesca.

Os primos aguardavam em liberdade, após passar um mês na cadeia, no começo de 2022, acusados de assaltar um motorista de aplicativo. Desde o início, houve várias denúncias de irregularidades no processo. Devemos tirar lições dessa luta.

Para a “justiça”, somos todos “suspeitos”

O caso do Rodrigo e do Jonnatha ilustra algo que tem levado muitos inocentes à cadeia: o reconhecimento pessoal irregular. O artigo 226 do Código de Processo Penal prevê:

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

Ao contrário do texto legal, os rapazes foram apresentados informalmente duas vezes antes do reconhecimento oficial. Primeiro, quando os policiais tiraram fotos com seus celulares e mandaram à vítima. Em seguida, ao saírem da viatura, momento em que Rodrigo chegou a levar três tapas da pessoa assaltada. Por fim, foram apresentados, sós, dentro da delegacia.

É importante lembrar que o procedimento previsto acima é obrigatório. Portanto, não poderia ser feito como foi. Há, inclusive, jurisprudência sobre este tipo de caso, como consta no portal do Superior Tribunal de Justiça.

“A confirmação, em juízo, dos reconhecimentos fotográficos e pessoal extrajudiciais, por si só, não torna os atos seguros e isentos de erros involuntários, pois ‘uma vez que a testemunha ou a vítima reconhece alguém como o autor do delito, há tendência, por um viés de confirmação, a repetir a mesma resposta em reconhecimentos futuros, pois sua memória estará mais ativa e predisposta a tanto’”, diz o texto.

Bia Vasconcelos, irmã do Rodrigo e filha da Andreza, no protesto nacional contra a violência do Estado brasileiro (agosto de 2023). Foto: Lívia Chong

O sistema existe para condenar…

O desrespeito das próprias autoridades ao que está previsto no texto legal é recorrente. Em 2022, os amigos Tauã e Luiz foram levados por policiais militares à presença da vítima de um roubo fora da delegacia. Foram absolvidos posteriormente, mas não sem antes a família e o Comitê Brasilândia Nossas Vidas Importam realizarem protestos contra as prisões.

No mesmo ano, em situação ainda mais absurda, o jovem negro Riquelme foi preso após uma vítima de sequestro tê-lo reconhecido pela voz. Vale dizer que essa possibilidade nem sequer é prevista na lei. Também houve protestos. Agora, ele já está livre das acusações, mas passou cinco meses aprisionado.

No caso de Rodrigo e Jonnatha, outro fato que chama a atenção é que o elemento fundamental para a absolvição dos meninos foi ignorado pela Justiça no ano passado. Desde o começo, havia duas testemunhas-chave: uma que assegurava ter passado a tarde com eles e outra que era justamente quem ligou para polícia para denunciar o assalto. Essa segunda pessoa conhecia os primos e afirmava que não eram eles os responsáveis pelo crime.

Na época, o Ministério Público, no entanto, optou por considerar apenas os depoimentos da vítima e dos dois policiais que realizaram a prisão. Isso também é comum em outros casos recentes, como denunciamos em maio, no artigo “Justiça para Lucas e para Samuel!”. Essa prática reforça o caráter racista das abordagens policiais.

…principalmente negros jovens e periféricos

A repetição de reconhecimentos injustos vitimando garotos negros, indígenas, periféricos, como autores de crimes diz muito sobre o país. Esse é o perfil de 68,2%¨da enorme população prisional e 43,1% têm entre 18 e 29 anos, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023.

Permitir que essa injustiça chegue tão longe também é revelador: a neutralidade do Estado brasileiro não existe. O sistema funciona para condenar quem não faz parte da minoria rica e branca. Uma instância “assina embaixo” da decisão da outra, cada uma cumprindo seu papel burguês e racista. Se isso não aconteceu desta vez, a explicação está na batalha iniciada por três mulheres negras.

As lições de três mulheres negras: juntos somos mais fortes

Daniela de Cássia, mãe do Jonnatha, Andreza Cássia, mãe do Rodrigo, e Janielly Cássia, filha da Dani, como a chamamos no comitê da Brasilândia, tiveram um papel decisivo no desfecho dessa história.

O mais comum é que as famílias esperem pacientemente os trâmites legais, mesmo sabendo que estão sendo vítimas do Estado. Por medo da polícia e/ou confiança na Justiça, se agarram no fato de que a prisão foi um erro e que isso logo será reconhecido pelas autoridades. Só que, muitas vezes, não é isto o que ocorre. A gente escuta muito: quantos não estão lá presos sem terem feito nada?

É inegável a eficiência da principal política pública na periferia: a imposição da ordem por meio do medo. Por isso, é tão significativo quando essa barreira se rompe. Aí, as ruas da quebrada viram campo de disputa pela consciência dos vizinhos e demais moradores.

A partir da denúncia delas nas redes sociais e da organização de protestos em uma das principais avenidas do bairro, a Cantídio Sampaio, começou ser construída uma rede de solidariedade envolvendo advogados, movimentos sociais, como o comitê Brasilândia Nossas Vidas Importam, e a imprensa; o que foi importantíssimo para chamar a atenção sobre o caso.

Cada passo é um impulso para lutas maiores

A atitude da Dani, da Andreza e da Jany, com certeza, foi vista por muito mais gente aqui na região. Protestar no território em que vivemos tem um enorme papel educativo. Permite o diálogo com mais gente que pode estar passando pela mesma situação e, ainda, põe em xeque os preconceitos de outros tantos, que normalmente apoiam todas as ações da polícia, mesmo morando na periferia.

Mostra, concretamente, para quem quiser ver, que em vez de segurança, os policiais têm atuado para bater metas de enquadros, como já foi denunciado pelo portal Ponte Jornalismo, no artigo “Enquadros da PM são mais invasivos nas periferias e rendem até folgas a policiais”. É como se estivessem trabalhando num callcenter, como disse Jany.

Com isso, abre-se a chance de juntarmos forças. E não há nada que os poderosos temam mais que trabalhadores e trabalhadoras conscientes, se unindo para cobrar o que é nosso. Aliás, os de cima são violentos na periferia por medo: eles sabem que quando o povo se junta, pode balançar as estruturas.

Uma vez a Dani disse que era preciso lutar contra todas as injustiças. Ela tem razão. Em um sistema no qual a regra é a violação dos nossos direitos mais elementares, cada passo adiante acumula forças para lutas maiores. É justamente quando a gente se recusa a ser moído que a realidade começa a mudar.

Janielly Cássia falando na 8ª Marcha da Periferia da Brasilândia (dezembro de 2022). Foto: Deyvis Barros

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