Cultura

Memórias do amanhã em uma Palestina futurista

Que lugar as ficções científicas podem ter na questão Palestina?

Jorge H. Mendoza

16 de dezembro de 2023
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No quarto branco, um cartaz de festival de cinema e uma estante de livros. Um deles tem na lombada em letras grandes: Tarkovski. Um pouco abaixo, outro traz Divine, de Pink Flamingos, na capa. Carol Almeida é pesquisadora, professora e curadora de cinema. E faz questão que essas coisas não se separem. Originalmente sua pesquisa foi dedicada ao cinema brasileiro. Mas entre os festivais dos quais é uma das responsáveis pela escolha dos filmes está a Mostra de Cinema Árabe Feminino, que caminha para sua quarta edição.

Desse encontro vem sua relação com a produção de Larissa Sansour, artista palestina, crescida na diáspora, e que aos poucos foi se adentrando no cinema. Se por um lado o trabalho de Sansour tem raízes, por outro parece fazer pouca questão das fronteiras. Suas ficções científicas transitam em um não lugar entre passado e futuro para fabular radicalmente sobre uma Palestina futurista que resiste atemporalmente ao projeto colonial sionista.

Carol Almeida tem feito, junto com outras curadoras, um movimento de tentar abrir mais as portas dos cinemas em todo o Brasil às produções árabes, especialmente a das mulheres. Recentemente, em Recife (PE), Carol articulou a exibição da trilogia futurista de Larissa Sansour, composta pelos curta-metragens Um êxodo espacial (2008), Patrimônio Nacional (2012) e No futuro eles comeram das melhores porcelanas (2015). A trilogia ainda foi complementada por In Vitro, de 2019.

O momento é tragicamente oportuno diante da ofensiva sionista contra Gaza, iniciada em outubro desse ano. Mas que lugar o cinema, especialmente as ficções científicas, podem ter diante desse fato? Conversamos com Carol Almeida sobre a obra de Larissa Sansour, o cinema árabe, a produção de narrativas e de memória.

Há uma frase atribuída a Ben Gurion, ex-premiê israelense, que é a seguintes: “os velhos morrerão e os jovens se esquecerão”.  Essa frase sintetiza bem o projeto de limpeza étnica: extermínio físico de um lado e apagamento simbólico de outro. Mas, contraditoriamente, ela também coloca a memória em um lugar político muito importante que os palestinos conhecem bem, que é o de preservar a cultura como forma de resistência, seja com as kuffyas [lenço árabe], com o dabke [dança], culinária etc. Que lugar você acha que o cinema ocupa aí?

Boa parte dos realizadores de cinema, tanto homens quanto mulheres palestinas, são realizadores vivendo em diáspora. Eles não estão no território da Palestina. Eles vivem ou em território europeu ou nos Estados Unidos. Isso significa dizer também que a produção desse cinema, muitas vezes, é exibida para as pessoas que não estão na Palestina. Há aí um exercício de tentar criar essas narrativas justamente para esses espectadores e essas espectadoras ocidentais, que são bombardeados todos os dias com essa narrativa ocidental de que a Palestina não existe.

Geralmente esses realizadores estão fazendo esses filmes não exatamente para serem exibidos, ainda que alguns deles sejam exibidos na própria Palestina, mas para atingirem esse público. O foco é nessas pessoas e não no povo palestino, que já sabe que aquele território é deles.

Não exatamente para educar, mas para produzir narrativas contra hegemônicas. Então eu acho que é muito importante isso sim. E eu não acho menor o trabalho por causa disso, muito pelo contrário. Eu acho que é fundamental que isso seja uma estratégia, inclusive uma estratégia de discurso que atinja esses lugares em que, geralmente, as pessoas acham que isso não é sequer uma discussão.

Quando se pensa em memória o primeiro formato que vem a mente é o documental. Mas Sansour faz o caminho oposto e segue pela ficção científica. Em uma entrevista ela diz que o documentário coloca o povo palestino em posição de desvantagem, como objeto analisado, e a audiência como alguém que analisa a situação de fora. E o que ela tenta fazer com a ficção é justamente colocar a audiência em pé de igualdade com os personagens apresentados. Em Retratos Fantasmas, último filme do Kleber Mendonça, um personagem diz que as ficções são os melhores documentários. Você acha que os filmes da Larissa se enquadram aí?

O exercício da ficção exige com que você produza alguma coisa nos intervalos dos arquivos. O que eu estou dizendo com isso? Os arquivos, imagens, áudios, os documentos são arquivados em instituições que guardam esses arquivos. No entanto, ainda que fundamentais para contar a história da humanidade, com muita frequência, os arquivos são produzidos dentro de uma lógica do colonizador e de quem domina.

O que a ficção, dentro de uma história traumática como a história da Palestina, consegue produzir? Ela cria, nos intervalos do arquivo, sobre aquilo que o arquivo não consegue dar conta. Ela não nega o arquivo e sabe do que ele fala. Mas aí ela cria uma outra coisa para tirar a gente dessa lógica, por exemplo, de que povo palestino para a dinâmica documental é apenas um povo vitimado por uma situação, mas é também um povo agente de sua própria memória.

E faz isso a partir da ficção científica, que é um gênero do cinema que ajuda a gente a criar especulações. Essas especulações todas têm uma base de dados históricos muito concreta.

O próprio gesto de especular, de imaginar e de fabular, é um gesto de libertação dessas clausuras narrativas.

Eu acho muito interessante um filme como In vitro, em que ela especula um subsolo de Bethlehem [Belém], onde existe uma cientista que estava ali criando, a partir de configuração de DNA, uma nova geração que guardasse, mesmo que artificialmente, a memória do que tinha sido a Palestina em algum momento.

Essa especulação, para mim, talvez seja um dos gestos mais radicais e libertários. Ainda que Israel consiga, por algum grande erro da história, exterminar boa parte das pessoas, tanto em Gaza quanto na Cisjordânia, isso vai sobreviver porque as pessoas já estão produzindo essas imagens. Em algum momento elas estão dizendo “A gente existe!”, nem que seja para plantar essas porcelanas de kuffyah no subsolo imaginário.

Então ao fazer ficção ela desloca o povo palestino de objeto documental para sujeito da própria especulação, o põe como sujeito da própria história.

Exatamente. Quando a Larissa Sansour começa a fazer seus primeiros trabalhos em vídeo, ela começa com registros documentais. Mas há um momento que ela entende que é importante, é superimportante, mas muita gente já estava fazendo. E ela, como artista visual, queria dar um passo além. E aí ela começa a fazer as ficções.

Por exemplo, tem um curta metragem dela, muito inspirado n’O Iluminado, de Stanley Kubrick. É uma criança que começa a escutar uma narrativa em uma rádio, e essa narrativa vai indicando que, na verdade, o grande terror do qual deve-se ter medo – no caso do filme de Kubrick a palavra é “assassinato” ao contrário [muder / redrum] – no caso desse filme, e que dá o título ao filme, palavra é “árabes ” ao contrário [arabs / sbara]. Com essa palavra ao contrário, ela coloca uma ficção que, no entanto, é muito real, de que o terror dessas pessoas é o povo árabe. Eles são um monstro.

Obviamente, quando ela chama o povo árabe de monstro, ela está fazendo uma crítica, até porque ela faz parte desse contexto. E a partir desse momento, desse curta metragem, ela entende que poderia ir para um outro lugar que vai chegar na chamada Trilogia Futurista, quando ela tem mais subsídios, um pouco mais rebuscado em termos de imagem.

Você diz que entre o documental há a especulação da ficção que é, de alguma forma, um lugar de suspenso, uma espécie de não lugar. E a Larissa é uma artista palestina, crescida na diáspora. Você acha que sua obra é atravessada por esse não lugar do Palestina?

Totalmente. A ficção dela é fundamentalmente atravessada pelo não lugar. A Lua é o não lugar, aquele edifício gigante do Patrimônio Nacional é também um não lugar. Aquele edifício em Patrimônio Nacional usado para criar um “Estado nacional da Palestina” [faz aspas com as mãos] é uma crítica a essa tentativa de produzir o não lugar para o povo palestino.

Os cenários produzidos nos filmes da Larissa, inclusive nos filmes mais recentes depois de In Vitro, são todos não lugares. Não existe uma paisagem que você identifique. Visualmente, essa é sempre uma referência muito central na sua obra. Essa coisa oca, digamos assim, é fundamentalmente um cenário central para o cinema dela. Além da ideia de temporalidade fraturada, de tempo perturbado – [conceito] de Edward Said.

No futuro eles comeram das melhores porcelanas (2016), de Larissa Sansour

Projetos autoritários costumam se apoiar e propagandas que mitificam o passado para justificar projetos de futuro. E nisso as narrativas e, junto com elas, o próprio cinema, foram usados como instrumento de propaganda. Como é o caso de The Birth of a Nation ou os filmes de Leni Riefenstahl, que produzia documentários para o Partido Nazista, mas que apresentavam uma realidade altamente mitificada. A Larissa Sansour faz, em um dos filmes dela, um debate sobre uma arqueologia instrumentalizada, pensamento dito científico ou mesmo supostas provas documentais podem sem forjadas e distorcidas para justificar o mito fundacional de Israel. E essa tensão entre passado e futuro também está bem presente nos filmes da Larissa, mas de alguma forma, de uma maneira subversiva…

O presente da Palestina para a Larissa Sansour é sempre um limbo. Ela fala isso. A gente está sempre olhando para o passado para tentar criar algum tipo de projeção no futuro em que a gente continue existindo. E antes de entrar aqui na sala eu estava olhado a dissertação de Badra El Cheikh, onde ela faz algumas perguntas que são essenciais:

[Lê a dissertação]

Os filmes de Larissa Sansour estariam, portanto, circunscrevendo, a partir da ficção científica, formas de abordar essa experiência temporal desestruturada. Como esse tempo perturbado se apresenta e representa a realidade palestina? Qual papel a ficção científica ocupa na narrativa nacional e quais as possibilidades a sua forma oferece? Como narrar a Palestina cronologicamente, se é justamente no tempo perturbado que a vida nela se encontra?”

Então, por exemplo, é possível narrar a história da Palestina cronologicamente dentro da ficção? Para o cinema de Larissa Sansour não. Porque isso seria, inclusive, entrar em uma lógica ocidental de fundar passados míticos e únicos para legitimar o controle de territórios. Dizer que, aquela população ali, tem direito de controlar aquele território porque alguma coisa naquele passado mítico justifica isso.

No caso do povo palestino, que vive constantemente esse tempo perturbado e que vive atualizando a Nakba de 1948 no cotidiano de suas vidas, isso não acontece. Acontece não só agora, em 2023, mas vem acontecendo há 75 anos. Isso é uma relação completamente diversa e distinta dessa ideia de que estamos avançando no tempo.

Quando somos criança temos essa ideia de que a linha cronológica do tempo significa um desenvolvimento da humanidade. Não. Essa ideia de desenvolvimento é uma mítica ocidental de que, essa ideia de progresso, vai chegar a partir do controle das máquinas, da tecnologia e de que nossas vidas vão melhorar. Desde criança as pessoas são ensinadas dentro dessa lógica ocidental, a acreditar nisso. Quando, na verdade, isso é uma narrativa mítica.

É uma narrativa mítica porque, o que a gente vê, na verdade, é uma regressão completa. A gente está vivendo um cenário de crises climáticas e de um capitalismo que não tem mais para onde correr. Então ele vai sugar das piores formas possíveis o que ainda resta, para que ele consiga ter os lucros exorbitantes que ele tem. E com isso ele vai destruindo o planeta, vai destruindo as populações. Então muito pelo contrário. Estamos tendo uma involução completa dentro desse andar histórico.

De um jeito ou de outro, a gente sempre volta para Walter Benjamin, para O anjo da história, ou se formos para uma referência bibliográfica afro brasileira – do conceito de tempo espiralar de Leda Maria Martins. Não existe essa evolução, existem ciclos e isso vai funcionando como uma espiral. Então temos várias ferramentas epistemológicas que nos ajudam a entender que esse tempo cronológico é uma fantasia, uma narrativa ocidental de que estamos sendo levados para um lugar de progresso.

Em No futuro, eles comeram das melhores porcelanas, a personagem se define como uma terrorista narrativa. O que, em algum, lugar me lembra o poeta estadunidense Hakim Bey quando ele fala de terrorismo poético, sobre ações e performances estéticas para intervir nessas narrativas ideológicas. Me parece que ela joga com um estereótipo do árabe terrorista, um estereótipo muito difundido pelo cinema ocidental, conscientemente indo até referências fortes como Stanley Kubrick ou a cena do homem pisando na lua – símbolo maior do imperialismo – justamente para subverter essas referências, transformando-as em outras coisas e fazer uma provocação estética.

Ela tem plena consciência das ferramentas simbólicas que o ocidente usa. Ela pega essas ferramentas e hackeia essa ferramentas, transformando-as em outra coisa. É um sistema de hackeamento. E é importante também falar que, em Êxodo espacial e Patrimônio nacional, a gente percebe uma visualidade e um trabalho de áudio operando centralmente. Não tem muito a palavra. A palavra não é muito dita, não existem diálogos. Existem algumas frases que são, aqui e ali, soltas. A partir de No futuro eles comeram das melhores porcelanas e In Vitro passa a haver um texto muito pesado ali. É quase como se fosse um ensaio em alguns momentos.

Importante falar também da parceria de Larissa com o parceiro dela, Soren Lind, que é quem transforma a fala e a experiência de vida da família de Larissa em um texto mais ensaístico. Esse trabalho de Soren é muito importante também destacar, porque ele é muito ativo na criação desse, digamos assim, pensamento formulado em discurso mesmo.

Essas visualidades que ela cria são fundamentadas numa cinefilia que a Larissa tem que vem, obviamente, do Ocidente. Porque nossa cinefilia é nutrida pelo cinema estadunidense e pelo cinema europeu. Fundamentalmente. Eu conheço poucas pessoas que poderiam dizer “não, minha cinefilia vem somente do território africano ou da América Latina”. Geralmente as pessoas que são lidas como cinéfilos têm como base das suas referências audiovisuais o que é produzido na Europa, o que é produzido nos Estados Unidos. Então, como ela faz parte também dessa geração – nasce em Jerusalém, é criada em Belém, mas muito cedo ela vai estudar fora a -, obviamente, as referências visuais dela também vêm desses lugares. Só que ela, entendendo e vindo de onde ela vem, faz um trabalho de subversão dessas referências.

Ela não compactua com isso. Ela entende o código e usa ele para falar de uma outra coisa.

E sobre isso – o cinema hollywoodiano e os estereótipos – você mencionou uma coisa que eu acho que é importante, que é o estereótipo da mulher árabe. Muitas vezes lida como altamente cerceada, como se não fosse assim em outros lugares no Ocidente. E você é curadora de um festival inteiro sobre o cinema árabe feminino. Porque essas coisas não chegam até nós…

Porque não é interessante chegar! Porque é mais fácil, para gente, justificar o genocídio do povo palestino se a gente acha que todos eles são homens machistas, misóginos, que só querem matar mulheres, que todos eles são homofóbicos, que todos… é muito mais fácil a gente.

Segundo Eduardo Glissant [“O direito à opacidade”], tudo aquilo que não é esse lugar do sujeito branco, eurocentrado, é um lugar em que é esse sujeito branco quem determina a narrativa e como elas devem ser contadas. Então, tudo aquilo que não faz parte da ordem desse sujeito branco é lido como alteridade. E essas alteridades, elas são engavetadas.

Então a gente tem cinema negro, cinema árabe, cinema de mulheres, cinema LGBTQ+, cinema… enfim. São colocadas nessas caixinhas. E se você sai dessas caixas um pouco… Ué, o que que é isso? É estranho, eu não consigo reconhecer, eu não consigo codificar, eu não consigo criar uma tag [etiqueta] para isso. Eu não consigo nomear isso com muita facilidade.

No cinema de arte do sujeito branco, eurocentrado, a pessoa pode ser qualquer coisa, ela tem a liberdade de ter uma crise existencial, que independe do lugar de onde ela vem, qual sua classe social, enfim. Faz parte do todo. O que o Glissant fala é que é preciso lutar por esse direito à opacidade. Porque essa chamada sociedade da transparência, em que você precisa compreender totalmente o outro para conseguir se relacionar e se comunicar com esse outro, é extremamente perversa. Você precisa entender que existem várias zonas de turvas ali e que você não consegue definir esse outro. Porque se você consegue rapidamente definir esse outro – é por isso que o povo árabe é muito rapidamente colocado dentro dessa caixa dos bárbaros, das que cerceiam os direitos das mulheres…

Eu não estou dizendo que isso não existe, existe em vários lugares. Mas é exclusivamente com o povo árabe que essa narrativa é criada. Por quê? Porque com ela é mais fácil acharmos que as mulheres em todo o mundo árabe são sempre 100% submissas, que elas não têm autonomia, elas não vão para as universidades, elas não produzem ciência, elas não produzem arte. E assim é mais tranquilo para o povo ocidental, com essa narrativa, acreditar que há um certo senso de justiça nesse genocídio, entende? “Talvez não sejam pessoas que mereçam tanto assim viver”.

O brasileiro é sempre assim”. Espera aí, como assim o brasileiro é sempre assim? Existem várias nações dentro desse país chamado Brasil. Existem várias complexidades em cada um dessas nações, e em cada família de uma dessas nações existem sujeitos totalmente diferentes uns dos outros. Então, como é que você rapidamente cria essas narrativas que enclausuram as pessoas dentro de uma coisa única? Elas [as narrativas] existem justamente para legitimar esses genocídios. E é por isso que é fácil as pessoas comprarem essa ideia de que as mulheres não têm nenhum tipo de autonomia no mundo árabe.

Isso diz muito sobre Holywood. Edward Said também tem a ideia do orientalismo. E eu lembraria, talvez, da Susan Sontag, que diz que o corpo distante é um corpo que pode ser violentado, porque é uma violência que não incomoda.

Exatamente. Tem toda uma questão também sobre essa guerra de imagens que a gente está vivendo hoje, com essas imagens estão aparecendo para gente. As imagens dos corpos mortos, dos corpos mutilados, dos pais segurando suas crianças, das crianças tendo crises de pânico. Essas imagens estão chegando. Só que as pessoas não se sensibilizam tanto com essas imagens porque elas foram ensinadas a não se sensibilizar. E de que maneira também essas imagens não criam outro tipo de violência sobre esses corpos? Eu sempre estou questionando isso.

De que maneira podemos trabalhar com o cinema e, em vez de falar de uma violência que existe na imagem, termina produzindo a violência da imagem. A imagem em si se torna violenta. É muito tensa essa relação entre a violência na imagem e a violência da imagem.

Sempre pergunto para os meus alunos: vocês se lembram de terem visto imagens de corpos mutilados, de corpos mortos e de sangue no [atentado terrorista do] 11 de setembro? E as pessoas respondem que não, talvez as pessoas pulando dos edifícios, porque isso foi filmado na hora. Mas todas as imagens de corpos mortos foram proibidas pelo governo dos Estados Unidos. Elas não circularam. Existe um motivo para isso. Porque se você circula isso em massa, você transforma aquele povo em qualquer coisa, em corpos que são passíveis de serem vistos dentro dessa dinâmica da violência. Obviamente, também o fato de 2001 ser um ano em que os celulares ainda não estavam acessíveis às pessoas com essas câmeras que a gente tem hoje.

Isso contribui muito para não termos visto essas imagens. Mas é preciso entender que houve um controle muito rígido dessas imagens. Os corpos estavam ali no chão e, no entanto, a gente não viu esses corpos.

Jornais à esquerda têm uma tendência a escancarar essas imagens como forma de denúncia e isso é está em uma linha muito tênue entre perpetuar a violência sobre aquelas pessoas em outra dimensão. E talvez esse possa ser mais um mérito do trabalho Larissa Sansour ao produzir ficção. Vivemos hoje uma infodemia e essa imagens simplesmente chegam pelas redes sociais, o que vai gerando esse efeito narcotizante.

Eu confesso para você neste, neste exato momento, acho que ninguém está conseguindo produzir nada. As diretoras que eu conheço todas estão em estado de depressão profunda, porque ninguém está conseguindo fazer nada.

Mas eu acho muito importante falar que existem muitas tensões hoje no universo do cinema e dos festivais de cinema sobre a questão da Palestina. Vou citar um exemplo recente que aconteceu no Festival IDFA, um dos festivais de documentários mais importantes do mundo que acontece em Amsterdã. Logo no começo um grupo de artistas subiu ao palco do IDFA e falou “Palestine will be free, from the river to the sea” [A Palestina será livre do rio ao mar]. Esse gesto foi lido pela organização e diretoria do IDFA como um gesto antissemita.

E esses artistas foram proibidos, foram censurados de fazer qualquer outro tipo de manifestação. Com isso, vários diretores que estavam na programação oficial do IDFA retiraram seus filmes porque entenderam que havia, ali, um gesto sionista do festival de banir qualquer manifestação pró-Palestina. Isso foi em outubro, logo no começo do genocídio.

Esse tensionamento em relação ao IDFA segue até hoje porque várias pessoas que trabalhavam no festival se retiraram, vários realizadores, e isso está acontecendo também em vários outros festivais do mundo. Por exemplo, a Alemanha, – e boa parte das pessoas que realizam hoje cinema palestino moram na Alemanha – está sendo extremamente radical na censura desses artistas. Toda semana temos uma notícia nova de algum festival ou de alguma feira literária que está censurando essas pessoas. Existe hoje um novo movimento – e em Hollywood isso é muito mais perverso – que as pessoas estão chamando de o novo macartismo. que está acontecendo em Hollywood. E não é nem a favor da Palestina. São pessoas que se mostram a favor de um cessar fogo é já começa um “opa, peraí, esses filmes aqui você não vai mais fazer”. Está havendo uma perseguição mesmo dessas pessoas em função de um posicionamento minimamente humano.

A guerra das imagens é uma guerra muito ativa, sempre. A gente não sabe hoje como controlar isso, porque estamos no olho do furacão, mas é muito importante a gente sempre debater quais são as imagens que a gente circula e em que medida a gente reinsere a violência sobre esses corpos com inserção de algumas imagens…

Alguma coisa que você acha importante? Uma recomendação…

Eu acho que é isso. Sempre digo. É o gesto da gente também sair da nossa bolha e tentar procurar por esses, por essas realizadoras, e por quem produz artes visuais, por quem produz poesia hoje na Palestina.

Quando eu falo na Palestina, eu falo a diáspora também, né? Enfim, a vida na Palestina é uma vida também na diáspora, em territórios de diáspora. Para que a gente não caia nessas armadilhas dessas narrativas únicas da mídia ocidental. Então é muito mais um gesto. Está havendo hoje, pelo menos, vários artistas que estão disponibilizando gratuitamente seus trabalhos em várias plataformas. Porque eles entenderam que é preciso sair do círculo, por exemplo, dos festivais de cinema e chegar num grupo maior de pessoas para que essas coisas sejam discutidas, para que essas imagens discutidas. Ficar atenta e atento a essa outra produção de imagens.