Metanol, etanol e poder: sobreposição de crimes, omissão estatal e uma tragédia anunciada
O recente surto de intoxicação por metanol no Brasil, que já resultou em, pelo menos, doze mortes e mais de 110 casos confirmados, revela uma trama criminosa complexa que vai além da simples falsificação de bebidas alcoólicas. Ela envolve sobreposição de crimes, omissões e interesses que atravessam o Estado, o crime organizado e o grande capital. Por trás das dezenas de hospitalizações e mortes, há toda uma cadeia, que vai do desmonte deliberado dos sistemas públicos de fiscalização à adulteração do etanol combustível – que por sua vez foi utilizado para adulterar bebidas alcoólicas ilegais.
O crime inicial: a adulteração de combustíveis
A origem desse escândalo remonta à adulteração de etanol combustível, prática ilegal antiga no Brasil e altamente lucrativa. Empresas e distribuidores misturaram metanol – um produto altamente tóxico – ao etanol combustível, ampliando o volume e o lucro de forma criminosa. Essa adulteração causa danos ambientais (aumenta as emissões e a toxicidade dos resíduos) e econômicos (reduz o rendimento do combustível e danifica motores), mas, neste caso, foi além: parte do etanol adulterado foi desviada para a produção de bebidas alcoólicas ilegais.
Assim, o crime ambiental e econômico se converteu em tragédia sanitária. O metanol, que deveria estar restrito ao uso industrial, entrou na cadeia de consumo humano, contaminando bebidas e matando ou lesionando pessoas.
O PCC e a economia mista do crime
As investigações da Polícia Federal e do Ministério Público apontam que o esquema de adulteração de combustíveis está ligado a redes empresariais associadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC). O desmonte de uma dessas estruturas revelou uma rede com postos de gasolina, distribuidoras, fintechs e empresas de fachada – uma verdadeira economia mista, na qual negócios legais e ilegais se cruzam sob a mesma lógica de acumulação.
Essa simbiose entre capital e crime é cada vez mais central no capitalismo brasileiro. O tráfico, a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal não são margens do sistema, mas engrenagens de um mesmo mecanismo que transforma tudo em mercadoria. Quando o crime organizado investe em setores “idôneos”, o que está em jogo não é a infiltração do crime na economia formal, mas o quanto a própria economia formal é financiada com dinheiro do crime organizado.
Crime organizado
Tarcísio, a disputa política e o negacionismo oportunista

Em meio às investigações, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, apressou-se em declarar que o PCC “não tem relação com o caso”. A fala, precipitada e sem base, foi menos um gesto de prudência e mais um movimento político.
Tarcísio busca disputar com a Polícia Federal o protagonismo pelas ações contra a adulteração, tentando transformar uma crise sanitária em palanque para sua guerra de vaidades com o Governo Federal. Ao se apressar em negar o envolvimento do crime organizado, o governador tenta resguardar o discurso de “eficiência” e “controle” de seu governo – ainda que isso signifique fechar os olhos para uma realidade gritante.
A disputa entre governos, corporações policiais e interesses privados substitui qualquer preocupação real em resolver o problema. Enquanto isso, seguem as internações, as mortes e o comércio clandestino que alimenta o circuito do lucro.
Sobreposição de crimes
Com o desmonte da fiscalização sobre a produção e o envasamento de bebidas pelo Governo Federal, por exemplo, o mercado clandestino se expandiu em nível nacional. Hoje as bebidas adulteradas circulam com facilidade por diferentes estados, aproveitando-se da ausência de rastreabilidade e da fragilidade dos órgãos de vigilância sanitária.
Essa é a verdadeira raiz do problema: o crime prospera onde o Estado se ausenta deliberadamente, entregando o controle ao mercado – e, por extensão, ao crime organizado.
Livre mercado
A farsa do Congresso e o populismo penal
Diante da repercussão, o Congresso Nacional reagiu com o velho reflexo de sempre: endurecer penas. A proposta de tornar a adulteração de bebidas um crime hediondo é a típica resposta simbólica e punitivista que tenta transformar um problema estrutural em questão moral ou de “falta de punição”.
Além de ineficaz, pois banaliza a categoria de crime hediondo, essa medida desvia o foco daquilo que realmente precisa ser enfrentado: o desmonte dos instrumentos públicos de controle e a lógica de lucro que coloca vidas em segundo plano. Não há código penal capaz de substituir fiscalização e prevenção. A criminalização tardia é apenas um álibi para os mesmos que desmontaram o controle estatal.
Um retrato do capitalismo brasileiro
O envenenamento por metanol não é apenas um episódio trágico, é um retrato do capitalismo brasileiro: a fusão entre economia formal e ilegal, o desmonte deliberado das estruturas públicas, o populismo penal e a disputa por protagonismo entre frações do poder.
Entre o posto de combustível e o copo de cachaça clandestina, o que existe é uma cadeia de omissões e cumplicidades. Cada elo dessa cadeia – do empresário que adultera ao governador que encobre, do Congresso que finge endurecer à vítima que paga com a vida – compõe o mesmo retrato, no qual a barbárie é apenas o outro nome da “liberdade de mercado”.