Mulheres

Não há luta feminista sem Gaza

Leia a Carta às feministas de todo o mundo, por ocasião do 8 de março, das mulheres que integram o Gaza Group, um coletivo formado por palestinos da Faixa de Gaza e da diáspora. “Na nossa luta pela libertação da Palestina e pelo nosso direito à autodeterminação, temos plena consciência de que os nossos destinos estão entrelaçados. [...] Vamos mobilizar forças revolucionárias”, destacam ao final. Leia a seguir:

Redação

12 de março de 2024
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Após mais de cinco meses do ataque genocida, ainda em curso, à Faixa de Gaza, e setenta e seis anos de colonialismo e limpeza étnica sionistas na Palestina (a contínua Nakba, catástrofe), os massacres levados a cabo em Gaza pelo culto de morte sionista não só não pararam, como não pouparam esforços para cortar todas as vias de sobrevivência da população palestina em Gaza, assediada por Israel e pelos seus aliados há dezessete anos.

Abandonados a enfrentar os horrores de extermínio e expropriação colonial, para os Palestinos em Gaza, qualquer forma de vida é agora alvo de ataques sistemáticos. Vidas, hospitais, escolas e a já degradada infraestrutura da Faixa têm sido alvo de ataques bárbaros pelos sionistas, enquanto o mundo inteiro assiste a transmissões ao vivo de bombas de milhares de toneladas, financiadas com o dinheiro dos contribuintes, caírem sobre o nosso povo em Gaza.

Neste dia 8 de Março – Dia Internacional da Mulher – afirmamos que a máquina de matar sionista não distingue entre homem e mulher, adulto ou criança. Baseia-se no apagamento e é ameaçada pela mera existência de Palestinos, especialmente aqueles em Gaza, cujos corpos são sinónimo de resistência contra décadas de ataques israelenses e a contínua expropriação das suas terras.

Estamos aqui hoje pelos homens, mulheres, crianças e jovens de Gaza, pelos nossos avós, guardiões da nossa história e memória, e por todos aqueles que fizeram de Gaza um berço popular para a sua resistência corajosa. Defendemos o tijolo, o mar, as ruas, as árvores. Defendemos as memórias do passado, bem como esperanças para o futuro que fazem de Gaza a nossa casa.

Quase todos os dias, vemos mulheres Palestinas darem à luz em condições terríveis, quando precisam de cesariana sem anestesia; gestantes mortas, crianças que perderam toda a sua família, homens à procura de entes queridos sob os escombros com as próprias mãos, e médicos forçados a amputar os membros dos seus próprios filhos sobre uma mesa sem qualquer equipamento médico, numa casa cercada por tanques sionistas e atiradores de elite. Centenas de milhares do nosso povo no Norte da Faixa de Gaza estão cercados, enfrentando uma política sistemática de fome como ferramenta da guerra genocida perpetrada pela entidade sionista, com o objetivo de quebrar a resiliência de um povo oprimido e orgulhoso. Quanto aos nossos idosos que sobreviveram à Nakba de 1948, encontram-se mais uma vez sob uma campanha brutal de massacre e deslocamento forçado.

Nós, as mulheres de Gaza, recusamos que os ideais feministas sejam transformados em armas aliadas às agendas coloniais que justifiquem o ataque genocida. Rejeitamos categoricamente as retóricas exploratórias do feminismo imperial que utiliza a violência social a que as mulheres Palestinas são submetidas para encobrir as violações Israelitas e a brutalização dos corpos femininos e masculinos Palestinos. Rejeitamos a transformação do sofrimento das mulheres Palestinas dentro das estruturas machistas da sua sociedade em armas para difamar e desumanizar ainda mais os homens Palestinos. Desde o início do genocídio, temos visto os principais meios de comunicação e grupos autoproclamados feministas apressarem-se a adotar a propaganda sionista para demonizar a resistência Palestina e legitimar o nosso extermínio. Entretanto, enquanto os soldados sionistas violam os espaços mais íntimos das mulheres palestinas e objetificam os nossos corpos de formas monstruosas, estes mesmos grupos permanecem silenciosos… e cúmplices.

Numa flagrante demonstração de misoginia colonial, os soldados Israelenses têm exibido vídeos deles próprios a vasculharem e a desfilar lingeries de mulheres palestinas deslocadas à força. Como parte integral da ideologia colonial – na sua estrutura, função e prática – a violência sexual contra as mulheres Palestinas é convenientemente ignorada. Os testemunhos de violação, agressão sexual e tortura brutal que as mulheres Palestinas raptadas na Faixa de Gaza têm sofrido sob cárcere israelense não suscitaram reconhecimento ou solidariedade por parte das instituições feministas liberais. As mulheres Palestinas sofreram assédio sexual e ameaças de violação aos seus familiares. Soltaram cães sobre elas, foram despidas e privadas de comida e acesso a banheiros durante dias. Exigimos ação imediata para combater todas as estruturas opressivas que permitem esses crimes brutais. Nenhum genocídio é feminista, mesmo que as mulheres soldadas israelenses, que tiram selfies nos escombros das nossas casas destruídas, tentem dizer o contrário. Não estamos todas e todos na mesma trincheira: aqueles e aquelas que optaram por fabricar consentimento para o genocídio, seja diretamente na produção de  bombas ou aprovando as políticas para que estas bombas caiam, não pertencem à nossa luta feminista e anticolonial; o seu feminismo só pode ser visto como uma extensão da classe dominante, impulsionada apenas pelos seus interesses comuns.

Hoje afirmamos também a nossa rejeição à desumanização dos homens Palestinos e à perpetuação de estereótipos racistas e coloniais sobre os seus corpos. Vimos como essas mesmas representações orientalistas de homens não brancos como inerentemente violentos e mulheres não brancas como submissas e indefesas foram usadas como pretexto para invasão e conquista, como nos casos do Afeganistão e do Iraque. As lutas feministas e anticoloniais na Palestina estão interligadas e rejeitamos o sequestro do nosso movimento para servir à propaganda sionista.

Recusamo-nos a reduzir a tragédia a meros números contados de uma forma superficial que desvirtua a nossa humanidade. Além disso, esses números carecem de exatidão à luz dos testemunhos das pessoas no terreno sobre os milhares de desaparecidos, os que foram enterrados às pressas e outros que permanecem sem documentos sob os escombros. As praças, os passeios, as escolas e os hospitais de Gaza transformaram-se em valas comuns. Se quiséssemos narrar o sofrimento quotidiano do nosso povo nessa guerra genocida, precisaríamos de discursos e de tempo intermináveis; na verdade, anos de esforços não seriam suficientes para compilar um arquivo do sofrimento do nosso povo. O grito da mãe de Hind é apenas uma gota no oceano do grito das mães de Gaza, e o último adeus do avô de Rima à sua “alma da alma” é apenas um vislumbre de outras despedidas sangrentas que não são mostradas nos ecrãs e de que não se testemunham.

Dói-nos que aqueles que estão sob extermínio sejam obrigados a apontar as suas câmeras para os corpos dos seus entes queridos em momentos de despedida e dor. Momentos que deveriam ser sagrados vêm sendo profanados para sermos testemunhas do nosso próprio genocídio. Os Palestinos documentam para “provar” que tudo isto está de fato ocorrendo. Aqueles que perderam os seus entes queridos foram privados do direito ao luto e de honrar os seus corpos com um enterro adequado. Como a privacidade da despedida foi violada, o mínimo que os aliados devem fazer é mobilizar a nossa raiva e tristeza para a ação política.

Na nossa luta pela libertação da Palestina e pelo nosso direito à autodeterminação, temos plena consciência de que os nossos destinos estão entrelaçados com os dos nossos irmãos e irmãs oprimidos em todo o mundo, desde o Sudão e o Congo, o Haiti e o Tigre, a Caxemira e o Sahara Ocidental, até a Síria, Iêmen, Afeganistão e Iraque. Isto está em oposição aos regimes capitalistas, imperialistas e coloniais e à sua brutalidade, e às suas tentativas de normalizar e financiar a selvageria sionista, tentando tirar de Gaza uma lição para todos os miseráveis da terra que escolhem o caminho da resistência.

Devemos reconhecer hoje que as potências coloniais ceifarão mais vidas, tanto fora como dentro da Palestina, a menos que atuemos imediatamente através de todos os meios disponíveis para parar o genocídio, levantar o cerco e desmantelar o projeto colonial na região. Reiteramos: os nossos destinos estão interligados.

Vamos mobilizar forças revolucionárias e intensificar o trabalho para:

  • Um cessar-fogo imediato e incondicional.
  • Levantar o cerco à Faixa de Gaza e abrir a fronteira de Rafah de forma permanente e incondicional.
  • Romper todos os acordos e acabar com os negócios que lucram com o sofrimento Palestino. Isso inclui responsabilizar aqueles que têm feito os Palestinos que querem deixar Gaza pagar quantias absurdas a uma empresa privada filiada ao regime egípcio, que tem colaborado com Israel no seu bloqueio à Faixa de Gaza há dezessete anos.
  • O regresso imediato das pessoas que foram deslocadas à força em toda a Faixa de Gaza para as suas casas.
  • A libertação imediata de todos os detidos que foram raptados pelas forças israelenses na Faixa de Gaza.
  • Acabar com a venda de armas à entidade sionista.
  • Boicotar produtos israelenses e desinvestir em empresas parceiras da ocupação.
  • Responsabilizar todos os cúmplices da guerra genocida, incluindo políticos, plataformas de comunicação social e organizações internacionais.
  • Rejeitar a imposição de debates sobre falsas soluções políticas enquanto os Palestinos continuam a ser massacrados às centenas todos os dias. Cessar-fogo agora.

Glória à resistência. Viva a nossa luta internacional. Abaixo os regimes coloniais e tirânicos. Abaixo as prisões. Abaixo as fronteiras. Abaixo o capitalismo. Abaixo o imperialismo.

Ninguém será livre até que todas sejamos livres

Não há futuro sem Gaza

Não há luta feminista sem Gaza

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