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Ninguém mais conta piada de papagaio

A combinação entre neoliberalismo e cultura digital tem mudado profundamente a maneira como experimentamos o mundo

Jorge H. Mendoza

1 de junho de 2025
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Houve um tempo em que as pessoas contavam piadas. Eu mesmo tinha uma tia que era muito habilidosa nessa arte, até ela entrar para a igreja e abandonar todos os palavrões. Hoje, me parece, ninguém mais conta piadas.

Em tempo, antes que me acusem: este não é um manifesto pelo retorno de Os Trapalhões. É verdade, muitas dessas piadas se baseavam apenas em estereótipos e preconceitos rasteiros. O ponto aqui não é saudosismo, nem uma defesa do politicamente incorreto. Longe disso. É bom que estejamos superando o questionável humor dos anos 1980 e 1990.

Meu ponto aqui — e o que tenho argumentado em outros textos — é que há uma mudança significativa na cultura com a ascensão do capitalismo neoliberal, especialmente em sua fase digital. O meme é o produto cultural que define o neoliberalismo digital.

Vejam. Contar uma piada implicava algumas coisas. Primeiro, era preciso estar necessariamente na presença de um outro. Não por acaso, isso acontecia, geralmente, em grupo — e raramente quando a conversa era privativa. Segundo, era preciso possuir um repertório que só se adquiria pela convivência. Ou seja, contar uma piada era uma atividade essencialmente de socialização: no churrasco, na reunião de família, no ônibus durante a viagem com a escola.

Assim, a palavra ia passando de um a um entre aqueles que tinham uma boa para contar, enquanto o grupo ouvia. “Conta aquela”, às vezes alguém pedia, lembrando de um momento já passado, mas que gostaria de compartilhar e reexperienciar — agora com outro grupo. E com um detalhe importante: ao contar uma anedota, sempre misturávamos um pouco de nossa experiência no relato. Uma mesma piada nunca era contada duas vezes da mesma forma, justamente porque ia mudando conforme era contada. Aliás, estava aí o segredo dos bons piadistas: a capacidade de contar uma história como se eles mesmos tivessem vivenciado o episódio.

Isso tudo não existe mais. Ou, pelo menos, se tornou mais rarefeito — ou se manifesta de outras maneiras na realidade.

O liberalismo burguês sempre foi individualista, filosoficamente falando. Com a ascensão do neoliberalismo nos anos 1980, o que era um fundamento filosófico virou pura ideologia fast-food e se alastrou por todas as dimensões da vida social. O self-made man, um ideal a ser perseguido. Nos anos 1990, com a queda da União Soviética (e, coincidentemente ou não, com a popularização da internet), pareceu imperar o slogan de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Fukuyama chegou a decretar o fim da história.

Aqui aparecem os primeiros sites de piadas — quem aí lembra do Humortadela, um dos pioneiros no assunto? Basicamente, esses sites se limitavam a reunir piadas que antes eram transmitidas apenas oralmente e registrá-las em texto escrito. No máximo, havia uma curadoria. Parece pouca coisa, mas agora você não dependia mais do seu círculo familiar e de amigos para aprender a contar uma. O repertório de piadas de uma pessoa poderia ser relativamente independente de suas relações pessoais. O próprio registro escrito, em si, já diminuía a margem para a expressão das pessoalidades e atuava como uma força homogeneizante.

A virada vai acontecer na transição da primeira para a segunda década dos anos 2000. O individualismo, que já era uma ideologia alastrada por todos os lados, vai encontrar dois grandes aliados que não podem ser entendidos separadamente: as redes sociais e os smartphones. As primeiras possibilitaram — e nos induziram — a migrar nossas vidas privadas para a arena pública digital. E, se nossa vida privada começa a ser publicizada, a consequência óbvia e natural é que cada um procure transformar suas contas em redes sociais numa vitrine daquilo que julga importante mostrar de si, com uma rigorosa curadoria, escondendo os fatos questionáveis e infelizes. O celular, por sua vez, não só viabilizou tecnicamente tudo isso como também coroou o processo com um dos fenômenos sociais contemporâneos mais representativos dessa curadoria de si: a selfie.

Isso não só se apoia no individualismo neoliberal, como o reproduz e reforça dialeticamente. As próprias redes sociais, que nascem mais dialógicas, vão caminhando para modelos de perfis individuais isolados. O desenvolvimento das telecomunicações impactam profundamente nossas percepçõe. A noção de espaço é estilhaçada, uma vez que a internet está em todo lugar, e o mundo é acessível por um aparelho que cabe no bolso. Igualmente, o tempo é radicalmente transformado. Nos anos 1990, dizíamos “conecta aí na internet”. Hoje, por pressuposto, todos estão conectados ininterruptamente, o dia todo e todas as respostas são para ontem.

Não me refiro ao espaço geofísico nem ao tempo da Física, mas à percepção de espaço e de tempo que fazemos mediada pela cultura e pela ideologia. A sensação de que o mundo está acelerado e de que Nova Iorque é mais perto do que Caruaru é real. O símbolo maior da arquitetura neoliberal são os shopping centers, mais ou menos todos iguais em todos os lugares. Ao invés de portarem alguma identidade, são, na verdade, não-lugares. Dentro de um shopping, não é sequer possível perceber a passagem do tempo. A iluminação é sempre a mesma. Às 9h00 ou às 23h00, não importa. E assim são também os aeroportos, as redes de fast-food: tanto faz onde e quando você esteja, são sempre mais ou menos a mesma coisa.

Um mundo acelerado e fora do lugar, percepções de tempo colapsadas, espaço pulverizado em não-lugares, ideologia individualista (e narcísica) exacerbada, dissolução das fronteiras entre público e privado, achatamento da vida. E é nesse contexto que surgem e se popularizam os memes.

Ao contrário das piadas, um meme é uma forma e um conteúdo mais ou menos definidos, com pouco espaço para projetarmos algo de nossa experiência ali. Ele já nasce pronto: você gosta ou não. Tampouco existe a dimensão coletiva. Eu, sozinho na cama, acho graça — e minha única possibilidade é compartilhar ou não, sem saber quem verá e, se vir, se realmente gostou, para além de alguns emojis e reações pré-definidas por uma big tech. Enquanto a piada oral dependia do tempo, da partilha e da presença, o meme é uma forma pós-temporal: circula fora do contexto, sem narrador e, muitas vezes, sem audiência ativa. É um espectro que ronda.

Walter Benjamin foi muito certeiro — ainda nos anos 1930 — ao pontuar que o avanço do capitalismo e o desenvolvimento acelerado de novas mediações tecnológicas poderiam estar acabando com nossa experiência do mundo, assim como o meme parece ser a morte da experiência da piada oral.

Não se trata aqui de criticar a forma meme. Eu mesmo sou um entusiasta. Mas é inegável que o capitalismo, em seu momento neoliberal e digital, está mudando profundamente a maneira como subjetivamos o mundo. Os memes são apenas um exemplo leve, porém indicativo, de tantos outros que podem estar sendo impactados por isso. Há uma mudança profunda na maneira como experimentamos o mundo.

Crise de sociabilidade entre os jovens, crise da saúde mental, esgotamento, depressão, burnout — combinados com uma profunda apatia e indiferença. Seria essa a raiz de tantas crises que vivemos?

Meu palpite é que sim. E isso, definitivamente, não é uma piada.

Leitura crítica, sem algoritmo no meio

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