Nós, os indesejáveis

“Você está com os palestinos?” A pergunta, vinda do nada, me surpreendeu. A caminho do ato contra o genocídio do Estado de Israel em Gaza, com a camisa do time chileno Palestino, parei para saber de onde vinha. “Eu sou judeu”, continuou o homem bem à minha frente. Um senhor de meia-idade, com roupas esportivas e olhos claros.
A afirmação veio com um certo tom de confrontação, provavelmente a fim de iniciar alguma contenda ali no meio da rua. Eu o frustrei, talvez, ao simplesmente responder em tom lacônico: “legal”. Sim, porque o embate não é contra religiões, mas contra a matança e a barbárie perpetradas por um Estado a serviço de um projeto de colonização e limpeza étnica.
Ele não se deu por vencido e me perguntou se eu achava certo o que o Hamas havia feito. “Acho sim”, respondi. Penso que ele ficou tão desconcertado com a resposta que se desarmou para um confronto mais sério. Em vez disso, passou a repetir argumentos típicos do sionismo para tentar justificar a matança desenfreada em Gaza.
“O problema é que os países árabes não querem receber os palestinos, veja o Egito, a Jordânia, eles poderiam muito bem abrigar esse povo”, continuou. De imediato, a frase me lembrou de uma entrevista que ouvi pela rádio CBN (do Grupo Globo) de André Lajst, um representante do governo de Israel vendido por aqui como “analista político”. Em determinado momento, ele disse: “A questão é que vamos ficar lá, temos um dos mais poderosos exércitos do mundo e não vamos sair”.
Ah sim, esse meu interlocutor repentino se identificou como ex-soldado da IDF (Exército do Estado de Israel) e filiado ao Likud, o partido de extrema direita que já abrigou o carniceiro Ariel Sharon. Bom, a partir daí, não havia mais papo, e segui meu caminho. Mas note como os palestinos são vistos pelos sionistas: um empecilho, um móvel que você pode empurrar para lá e para cá para abrir mais espaço na casa (roubada, diga-se). Um estorvo.
Se você já assistiu à ótima série Band of Brothers (caso não, pergunte a qualquer um que tenha visto) deve lembrar-se de uma das cenas mais impactantes de todos os oito capítulos. Justamente quando uma brigada de paraquedistas estadunidenses, ao penetrar em território alemão, se depara com um campo de concentração. Atônitos, os soldados vão buscar um oficial para mostrar a ele aquele lugar. Amontoados de cadáveres a céu aberto, fiapos humanos rastejando-se na lama e homens que mais pareciam espectros.
Um intérprete tenta interrogar um deles para saber o caráter daquela prisão: “São ladrões, assassinos?”. Com muita dificuldade, um dos prisioneiros responde uma palavra em alemão que deixa os soldados americanos curiosos. “Indesejáveis”, diz o intérprete. Ali estavam os que o Terceiro Reich tinha por objetivo eliminar: intelectuais, artistas, professores e evidentemente judeus.
Hoje sabemos que as principais potências tinham plena consciência da existência dos campos de concentração. Inclusive os sionistas, que se aliaram ao regime nazista num sórdido acordo para financiar a colonização da Palestina, boicotaram a fuga dos judeus para outros países que ofereceram asilo (ia contra o plano de os jogar na Palestina) e até mesmo se opuseram a um plano para atacar os campos de extermínio e libertar os cativos, como bem mostrou pesquisador de origem judaica Ralph Schoenman em A história oculta do sionismo (você pode baixá-lo gratuitamente no site da Editora Sundermann)
Os “indesejáveis” não têm nome. Nos campos alemães, recebiam sequência de números tatuados na pele. Os palestinos que morrem todos os dias em Gaza são noticiados pela quantidade de cadáveres provocados pelos mísseis israelenses: 500 mortos no hospital Al-Ahli; 50 mortos no campo de refugiados de Jabalia. Sem nome, sem rosto ou história, apenas números e estatísticas.
Conhecemos muito bem essa realidade aqui, nas periferias e morros das grandes cidades. As vítimas da polícia são invariavelmente rebatizadas de “suspeitos”. “Indesejáveis” submetidos a um rígido controle social, à chacina e ao encarceramento em massa.
Em praticamente todas as culturas, a primeira coisa que um recém-nascido recebe é um nome. A última, uma cerimônia de sepultamento. É a forma que encontramos para nos definir como seres humanos, rituais mais primitivos do que viria a ser cultura. Ambas as coisas são negadas aos palestinos em Gaza. Não sabemos seus nomes, e são enterrados em valas coletivas comuns, tamanha é a proporção do morticínio.
Outro aspecto que nos define como seres humanos é a resistência à opressão. Seja ela como for. É uma força tão poderosa que, não raro, se sobrepõe à noção de moral dos opressores. No filme Paradise Now (2005), temos a história de dois palestinos recrutados para serem “homens-bomba”. Numa das cenas, uma ativista de uma ONG pacifista tenta demover um deles da ação. Argumenta que um ato violento não “ajudaria a causa”. A resposta do jovem palestino a deixa sem ter mais o que argumentar: “A opressão determina a resistência”.

Cena do filme Paradise Now
No clássico A batalha de Argel, que mostra a resistência argelina contra a ocupação francesa, um jornalista pergunta a um combatente da Frente de Libertação Nacional da Argélia se ele não se constrange em se utilizar de atentados “terroristas” contra civis em sua luta. “Dê-nos aviões que não faremos mais atentados”, respondeu. A legitimidade da resistência também é determinada pela opressão, com as condições dadas, sejam elas quais forem. Resistir à ocupação é mais que um direito reconhecido na esfera internacional. É quase um instinto, um instinto humano por mais que pareça contraditório.
Li num canal de notícias palestinas que quase metade dos homens do Hamas são órfãos de pais assassinados pelo Estado de Israel. É impossível determinar a veracidade disso, mas tampouco parece inverossímil. “Os palestinos são difíceis de matar”, ironizou o humorista egípcio Bassem Youssef num vídeo que viralizou. Tanto que resistem há 75 anos diante de um projeto de extermínio apoiado pela maior potência do mundo.
A ligação de um povo à sua terra, à terra de seus antepassados, ajuda a moldar sua identidade coletiva. Por isso a resistência tão indômita diante de qualquer perigo, até mesmo da morte. Pessoas não são objetos, por mais que a mídia tente objetificar os “indesejáveis”. Seja o povo palestino, seja aqui no Brasil nos morros e periferias.
Estive certa vez numa Terra Indígena Kaiowá, na região de Dourados (MS), que se preparava para uma “retomada” (uma ação de recuperar terras roubadas por grileiros e fazendeiros). Alvos de diversos ataques e assassinatos por pistoleiros, eles não tinham medo. A terra era sagrada porque o sangue de seus antepassados havia sido derramado ali, e eles não iriam embora. Hospedei-me na cabana de um jovem kaiowá que nos mostrou seu arco e flecha e disse, em tom firme: “Fiquem tranquilos, eu sou um guerreiro, aqui estão seguros”.
Imaginei de pronto o que aquele valente rapaz faria diante de uma escopeta calibre doze de algum jagunço da região. Mas, para ele, não havia escolha. Sair de sua terra era o mesmo que perder sua identidade. Era o mesmo que morrer. Claro, são humanos, e resistem há 500 anos ao genocídio e ao extermínio.
Os palestinos são os povos originários daquela região que vai do Rio Jordão ao Mar Vermelho. Já o Estado de Israel é um enclave militar patrocinado pelo imperialismo britânico e, depois, estadunidense, instalado a partir de vários fluxos imigratórios. Para eliminar os “indesejáveis” que ocupavam aquelas terras, tentam, com o apoio da mídia, desumanizá-los. Mas vão acabar descobrindo que justamente o que os torna humanos é o que será o verdadeiro empecilho a essa tentativa de “solução final”.
Nossos irmãos “indesejáveis” precisam que os “indesejáveis” de todo o mundo lhe estendam as mãos nessa luta que é contra um projeto de colonialismo e extermínio, uma política do imperialismo, mas também pela humanidade e todos os “indesejados” pelo capital.