LGBT

O ataque à dignidade trans e o silêncio cúmplice do governo Lula

Italo Costermani, de Vitória (ES)

8 de outubro de 2025
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O Brasil é o país onde mais pessoas transgênero são assassinadas no mundo | Foto: Agência Brasil

A recente derrubada da liminar que suspendia a Resolução nº 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina (CFM), decisão tomada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, é mais um capítulo de uma longa história de ataques à população trans no Brasil. O ministro do STF afirmou que a questão não caberia à Justiça do Acre, mas ao STF, após apelo do Conselho Federal de Medicina. No entanto, por trás da tecnicidade jurídica, o que se impõe é uma escolha política: a de garantir a permanência de uma resolução que restringe direitos, agrava o sofrimento e gera grandes impactos à população trans.

A resolução, publicada em abril de 2025, impõe uma série de limitações ao processo de transição. Entre os ataques estão a proibição de bloqueadores hormonais para menores de 18 anos — antes permitidos a partir dos 16 — e a proibição de cirurgias de redesignação sexual para pessoas com menos de 21 anos, quando envolvem as genitálias. Essas restrições representam um grave ataque frente às conquistas duramente alcançadas pela comunidade trans nos últimos anos, ataques esses que impactam diretamente na afirmação de gênero e dificultando o acesso à saúde e ferindo a sua dignidade como pessoa. Essa é uma decisão antes de mais nada, política, e que não encontra amparo na realidade, já que o abandono da população trans já é enorme agora, com poucas pessoas tendo acesso a um acompanhamento e apoio digno ao seu processo de transição.

Uma prova desta decisão ser essencialmente política e um avanço de uma política conservadora é que ela permite que pessoas cisgênero continuam podendo fazer uso de bloqueadores e hormônios que reafirmam o gênero atribuído no nascimento. A cisgeneridade segue intocada: o controle estatal sobre os corpos, neste caso, é seletivo. A mensagem é nítida – há uma norma de gênero que o Estado protege e garante apoio e outra que ele é indiferente e nega direitos.

Atendimento trans desde a adolescência já!

É na adolescência que a maioria das pessoas trans se reconhece enquanto tal, período em que se intensifica o desenvolvimento dos traços corporais ligados ao gênero e também a vulnerabilidade frente à rejeição familiar e social. Negar o acesso a bloqueadores hormonais e acompanhamento adequado nesse momento é produzir sofrimento, e não preveni-lo. É impor a disforia e abandonar as pessoas trans ao léu, sem qualquer amparo da saúde pública em seu processo.

Quando garantidos seus direitos, pessoas trans são acompanhadas por equipes multidisciplinares, com psicólogos, endocrinologistas e outros profissionais que orientam o processo de transição de forma segura e responsável. O Conselho Federal de Medicina afirma que este processo de bloqueio hormonal aos 16 anos é grave e arriscado, garantindo danos irreparáveis, mas o que estudos nacionais e internacionais, bem como entrevistas com pessoas trans encontram como resultado, é justamente o contrário: o bloqueio hormonal e a hormonização precoce melhora a saúde mental, reduz taxas de suicídio e promove qualidade de vida. Além disso, a taxa de “arrependimento” (que muitas vezes é causado pela violenta transfobia que pessoas trans sofrem em suas famílias e outros espaços sociais) da transição está em uma porcentagem mínima, menor do que cirurgias estéticas para se ter uma ideia.

A resolução do CFM, restabelecida por Dino, vai na contramão de todas as evidências científicas e de diretrizes internacionais. Agências de saúde, universidades e institutos de pesquisa em todo o mundo defendem o uso seguro de bloqueadores hormonais na adolescência e o acesso a cirurgias de redesignação a partir dos 18 anos. O que o CFM faz, portanto, não é “seguir a ciência”, mas sim instrumentalizá-la para sustentar uma moral conservadora camuflada de prudência técnica.

O Estado é pela violência dos LGBTIAs

A ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e o IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) denunciaram, recentemente, o alinhamento da AGU (Advocacia Geral da União) e do Ministério da Saúde a ideologias antitrans, apontando que os próprios pareceres apresentados ao STF por estes órgãos repetem o discurso conservador do CFM. O governo, ao declarar “falta de dados” para avaliar impactos, confessa sua negligência: não monitora as políticas públicas e depois usa a ausência de informação como desculpa para não agir. Este é um processo viciado, que transforma o abandono do Governo Federal como um argumento para legitimar ainda mais abandono.

Essa agenda de apagamento segue firme, ainda que de forma disfarçada. O caso do RG transfóbico é exemplar: o governo judicializou o processo para manter o campo “sexo” no documento e para permitir a exposição do nome morto de pessoas trans que usam nome social. O Governo Lula atua pela reafirmação do discurso LGBTfóbico, que apoia quem exige o nosso constrangimento.

A posição do CFM é abertamente antitrans — e o relator da resolução, Raphael Câmara, celebra o feito com o velho discurso da “proteção às crianças”. Não há proteção alguma quando se nega o direito de existir. O que há é controle moral sobre os corpos trans, sustentado por uma racionalidade autoritária que sobrevive mesmo sob governos que se dizem progressistas.

Adolescentes trans existem e vamos resistir!

O alinhamento do governo à ideologia antitrans

Ministro do STF, Flávio Dino Foto Flávio Augusto/STF

Desde abril de 2025, mais de 130 organizações assinaram uma nota de repúdio à Resolução nº 2.427 e ao alinhamento do Governo Federal a pautas que ferem os direitos trans. Não é a primeira vez que o petismo demonstra indiferença ou conivência diante de políticas antitrans. A aliança entre o CFM, a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Saúde, em defesa desta resolução, escancara o que a esquerda reformista e aliadas ao petismo não aceitam que seja dito: há um pacto de estabilidade política. Neste acordão, o Governo Federal rifa populações periféricas para a direita em troca da aprovação de seus projetos prioritários.

A justiça do Acre havia derrubado a medida, denunciando sua natureza autoritária, a falta de debate democrático e o desprezo pelas evidências científicas, além dos graves danos àqueles que seriam atendidos por estas políticas públicas. Esses jovens tiveram seu tratamento interrompido abruptamente (isto sim pode gerar complicações) e cirurgias de redesignação sexual foram canceladas por todo o país.

A intervenção de Flávio Dino, ex-ministro de Lula e figura próxima ao governo, vulnerabiliza ainda mais a população trans, restabelecendo um retrocesso. Isto a pedido de Raphael Câmara, relator da resolução, que teve seu pedido prontamente atendido pelo ministro do STF.

O governo Bolsonaro foi um desastre incontornável para os direitos humanos, disseminando pautas antitrans e antigênero em todas as esferas do Estado. No entanto, o fato de o atual governo não ter revertido essas medidas mostra que a frente ampla que o sustenta é, também, uma frente de acomodação. Políticas voltadas à população LGBT foram arquivadas, como aconteceu com o kit anti-homofobia durante o governo Dilma e, agora, com o PAES Pop Trans, engavetado pelo Ministério da Saúde.

Mobilizar é urgente

É urgente nos organizarmos para enfrentar o governo federal, o STF e o CFM!

IBRAT e ANTRA protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7806), mas o caso está sob relatoria de Cristiano Zanin, outro indicado de Lula e comemorado pelo petismo, que já é conhecido por suas posições conservadoras e por seu silêncio diante de pautas populares. E é nesse silêncio que vidas trans se apagam, dia após dia, pela omissão e pela condescendência de um Estado que continua a escolher quem pode ou não existir plenamente.

Diante dessa conjuntura, não basta lamentar a covardia de Lula e seus aliados. Muito menos adotar um discurso cínico que afirma que temos de apoiar o governo para que Lula tome a decisão certa, que ele oriente seus aliados. Esse discurso só serve para fortalecer o Governo Federal e os indicados em suas propostas transfóbicas e que atacam direitos já garantidos; não podemos cair no oportunismo petista, psolista, PSBista, etc que “critica” performando revolta enquanto nos leva à derrota e ao imobilismo!

Não há democracia real enquanto parte da classe trabalhadora é privada do direito ao próprio corpo. A luta trans é uma luta de classe: é contra o controle dos corpos, contra a lógica da norma e da propriedade aplicada à carne. É a luta por autonomia, dignidade e liberdade — e, portanto, uma luta socialista.

É preciso, acima de tudo, organização e mobilização. A derrota da Resolução nº 2.427 do CFM e das forças reacionárias que a sustentam exige que enfrentemos não apenas a direita declarada, mas também o conservadorismo entranhado que está disfarçado dentro do próprio governo. A neutralidade diante da barbárie é cumplicidade.

Ocupar as ruas contra a resolução transfóbica!
Vidas trans não são negociáveis!

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