Nacional

O caso Abin e as tendências bonapartistas do governo Bolsonaro

Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

27 de janeiro de 2024
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O então presidente Jair Bolsonaro e Alexandre Ramagem durante evento na Abin, em 2020 | Marcos Corrêa/PR

O noticiário brasileiro, nos últimos dias, tem focalizado um órgão governamental que raramente se expõe aos holofotes da mídia: a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O fato central da repercussão é a investigação conduzida pela Polícia Federal, mediante autorização do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, para apurar operações ilegais de espionagem que teriam sido realizadas sob a gestão de Alexandre Ramagem, que foi diretor da Abin sob o governo Bolsonaro. No caso, as operações de espionagem teriam por objetivo prejudicar alguns adversários políticos de Bolsonaro e beneficiar os membros de sua família, o que configuraria o uso direto de um aparato do poder público para fins de favorecimento eleitoral e jurídico do governante e do seu círculo pessoal.

A investigação da Polícia Federal parte da suspeita de que, por influência de Bolsonaro, a Abin teria espionado Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara dos Deputados), Joice Hasselmann (ex-aliada de Bolsonaro) e Camilo Santana (ex-governador do Ceará). Suspeita-se ainda que o monitoramento ilegal ainda abarcou dois ministros de STF que entraram em rota de colisão com o bolsonarismo: Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. A ferramenta utilizada teria sido o softwareFirstMile”, que permite a geolocalização de dispositivos móveis (como telefones celulares e tablets).

Vale acrescentar que o programa “FirstMile” foi desenvolvido pela empresa israelense Cognyte, e que o armazenamento das informações se dá a partir de servidores instalados em Israel. Basta o acesso ao número do telefone celular que se quer rastrear para que o programa proceda com a geolocalização. De acordo com a Polícia Federal, houve 1800 usos do software para monitorar indivíduos considerados como adversários políticos de Bolsonaro.

Essa ferramenta tecnológica foi empregada por uma estrutura de funcionários da Abin que formaram uma espécie de agência paralela dentro da própria entidade, e que chegou a se encarregar de produzir dossiês contra inimigos de Bolsonaro, inclusive contra o ministro Alexandre de Moraes – que foi associado ao PCC (Primeiro Comando da Capital) num desses dossiês mediante falsificações (numa espécie de extensão das atividades do famigerado “gabinete do ódio” bolsonarista).

Também se apura, na investigação, o uso da Abin para a produção de relatórios favoráveis a Flávio Bolsonaro e Renan Bolsonaro, que são acusados, respectivamente, de desviar para si uma parcela do salário dos servidores sob a sua direção (esquema de “rachadinha”) e de tráfico de influência. Isso significaria a utilização de um órgão público para fins particulares, relacionados à defesa processual da família Bolsonaro.

Medidas de espionagem

Nosso foco, no presente texto, será a questão do emprego de medidas de espionagem contra membros do STF. Esse aspecto do problema assume uma importância destacada por envolver o ataque de um poder da República contra outro poder por meio da instrumentalização de um órgão de governo, e em particular sob um mandato presidencial que, do começou ao fim, enfrentou/suscitou crises políticas, colocando-se na defensiva em diversas ocasiões.

A geolocalização de dispositivos móveis viabiliza o rastreamento das movimentações dos seus portadores. Pode-se saber o local que o usuário do dispositivo frequentou num determinado momento. Um monitoramento regular desse tipo permitiria a identificação de rotinas, algo que não apenas fere a intimidade do usuário, como também o torna vulnerável em termos de segurança pessoal. Cumpre perguntar, então, qual seria o interesse do governo Bolsonaro em conhecer as rotinas dos ministros do STF com os quais havia entrado em conflito. É de se supor que, no mínimo, houvesse a pretensão de coletar dados inconvenientes sobre os ministros, e que pudessem dar ensejo a algum tipo de chantagem para fins de barganha política. No entanto, todo o discurso golpista de que se alimenta o bolsonarismo faz com que não se possa descartar a hipótese de algum tipo de coação direta sobre os magistrados monitorados. Quando se considera, por exemplo, toda a articulação que culminou no fatídico 8 de janeiro de 2023, torna-se óbvio que o movimento bolsonarista não deve ser subestimado.

É preciso notar que as principais tendências bonapartistas de Bolsonaro se manifestaram em temas que envolviam o STF. Uma vez que o bonapartismo, enquanto regime político, pressupõe a supremacia desmedida do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, tem-se que a subordinação da corte suprema (o tribunal constitucional) ao governo é um elemento estratégico para o bolsonarismo. Bolsonaro já nutria esse desejo em 2018, quando anunciou a ideia de nomear 10 novos ministros do STF de uma só vez, o que lhe asseguraria uma maioria favorável. Como se sabe, o ex-presidente recuou na proposta, mas ali já havia um sinal importante. No mesmo sentido, foi noticiado que o então ocupante do Planalto esteve na iminência de ordenar uma intervenção na corte em 2020 (para destituir os ministros e substituí-los por aliados civis e militares), medida essa que também não foi levada a cabo.

Independentemente do grau de “audácia” das pretensões de Bolsonaro quanto ao que seria feito dos ministros do STF, há de se considerar que essa investida contra eles já caracteriza um comportamento bonapartista. Afinal, a atuação ilegal da Abin não apenas fere a autoridade e a autonomia do Judiciário, representado na sua mais alta corte, como também sinaliza a apropriação de um aparato de governo para a satisfação de objetivos exclusivos do chefe de governo (ou seja, que ultrapassam o gabinete, a oficialidade do cargo). Para o “Bonaparte”, as repartições estatais devem estar disponíveis para atender os seus caprichos e necessidades, já que ele encarna a figura do Estado e do próprio povo melhor do que qualquer divisão burocrática de funções institucionais.

Bonapartização do Estado brasileiro

No que diz respeito às ações do governo Bolsonaro em face do Judiciário, é preciso observar o projeto bonapartista de poder não exclui medidas mais defensivas e imediatistas. Afinal, a bonapartização do Estado brasileiro só poderia ser consumada, em algum momento, se o seu protagonista se mantivesse no posto presidencial. A reeleição seria um passo importante nesse sentido, e ela precisaria se dar ainda sob as regras da democracia liberal. Assim, submetendo-se ao jogo eleitoral ordinário e à legalidade vigente, o bolsonarismo teria que sobreviver no governo por mais tempo até reunir condições mudar o regime. Para tanto, seria imprescindível proteger suas figuras públicas, todas elas atadas ao presidente por laços de sangue. Essa tarefa tornou-se cada vez mais difícil com a maior visibilidade dessas figuras.

Expliquemos. Quando a família Bolsonaro limitava-se a parasitar o estado do Rio de Janeiro, constituindo uma força política apenas regional, ela se envolvia em crimes de menor repercussão, e que poderiam ser mais facilmente abafados. Mas ao se erigir em fator de influência política nacional, essa família já não poderia contar com o controle paroquial das situações que a envolvem. Isso fez com que Jair Bolsonaro se servisse da sua posição privilegiada para exercer pressão política sobre as instâncias policiais que citavam o seu sobrenome em investigações ordinárias. Vale lembrar que o atrito entre o então presidente e o então ministro da Justiça Sérgio Moro durante o governo deu-se porque o ex-juiz não havia se esforçado o suficiente para conter a Polícia Federal na apuração das “rachadinhas”.

Ao que tudo indica, a gestão Bolsonaro cometeu crimes para acobertar outros crimes que foram cometidos pela então família presidencial. Se o monitoramento dos ministros pela via da Abin não fazia parte de uma movimentação golpista mais ambiciosa, ele ao menos foi utilizado como um ardil defensivo, como um possível anteparo para que a família Bolsonaro pudesse negociar a sua situação jurídica. E tudo isso foi feito no âmbito da vida secreta do Estado, o qual regularmente coleta dados dos cidadãos sem a devida autorização judicial, mas ultrapassa os seus próprios limites ao fazê-lo como empreitada de controle do Executivo sobre o Judiciário.

Se Bolsonaro nunca teve chances plenas de um golpe bonapartista bem-sucedido, ele nunca deixou de sonhar com esse momento, fazendo-o em voz alta em muitas ocasiões. Esse sonho compartilhado e enaltecido por um séquito disposto ao enfrentamento pode não ser o bastante para suprimir as poucas liberdades que restam à classe trabalhadora sob a democracia burguesa, mas ele exige, de todo modo, uma política contundente de denúncia e de autodefesa. Ele também exige o estudo aprofundado dos mecanismos de funcionamento do Estado, dos mais evidentes aos mais ocultos.

Aliás, o caso Abin certamente traz questões que extrapolam o bolsonarismo. Os trabalhadores precisam conhecer o maquinário institucional do Estado para que possam se defender dele no presente e destruí-lo no futuro. Conforme consta no relatório de 2021 da Anistia Internacional, os serviços de inteligência da Cognyte foram utilizados por governos como o do Sudão para facilitar a perseguição política contra dissidentes. Qualquer governo burguês, seja ele mais “democrático” ou mais autoritário, ocupa-se do armazenamento de informações sobre as organizações operárias e populares. A experiência histórica assim ensina: com o advento da Revolução Russa, houve finalmente o acesso aos arquivos secretos da Okhrana, o antigo serviço secreto do czarismo na Rússia. Os arquivos demonstravam um intercâmbio de dados com agências de países ditos “democráticos” que também monitoravam amplamente a sua própria população. A diferença é que, na atualidade, os recursos tecnológicos de espionagem são infinitamente superiores àqueles que estavam disponíveis para os aparatos repressivos no início do século XX. O Estado, porém, segue o mesmo nos seus propósitos de repressão e dominação em prol do capital.

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