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O choro de Vini Jr. ecoa as muitas dores de negros e negras, mas também nos banha de axé

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

26 de março de 2024
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Vini Jr durante coletiva de imprensa Foto Rafael Ribeiro/CBF

Devo começar confessando que sou a pessoa menos indicada para falar sobre futebol que se possa conhecer. Sinceramente, esportes nunca foram minha praia e a “paixão nacional”, de fato, nunca me seduziu. E não por falta de incentivos. Como todo garoto negro da periferia, cresci cercado pelas “peladas” nas ruas, pátios das escolas e terrenos baldios; pelas ruas pintadas em época de Copa; pelo frenesi em torno da TV colocada no pátio do cortiço nos dias de jogos etc. etc.

Contudo tenho pra mim que, mesmo muito antes de ter consciência sobre minha orientação sexual, meu distanciamento disto tudo tem a ver com o enorme desconforto que sempre senti com a chamada “masculinidade tóxica” que, desde sempre, contamina os campos e arquibancadas. E, por isso mesmo, mantive uma sadia e “segura” distância deste universo.

Seja como for, hoje, me pego na “obrigação” de falar o tema. Não exatamente sobre futebol, mas sobre o racismo que corre solto nos campos e estádios e que, hoje, tem na figura de Vini Jr. um de seus símbolos mais expressivos.

O fato é que, assim como qualquer pessoa que ainda não tenha sido contaminada e embrutecida pela podridão deste sistema e perdido o mínimo senso de humanidade, fiquei extremamente emocionado e sinceramente comovido ao ver a entrevista com o jogador, na sede do Real Madrid, nesta segunda-feira, dia 25 de março.

Uma entrevista que só fez aumentar à enésima potência minha admiração por este garoto de 23 anos (que, admito, nunca sequer vir jogar), por tudo o que ela exalou em termos do que é, de fato, “ser humano”, e naquilo que ela reafirma em relação ao papel literalmente histórico que Vini Jr. vem cumprindo na denúncia e enfrentamento com a discriminação, as humilhações e as profundas dores provocadas pelo racismo, bastante mesclado com a xenofobia, no seu caso.

Humano, demasiadamente humano

Em primeiro lugar, a fala-manifesto de Vini Jr. precisa ser registrada e exaltada até mesmo por aquilo que ela tem de mais “simples” e direto: um profundo senso de humanidade; uma convicta determinação em não se deixar parar nem se curvar diante dos opressores, mesmo quando a resistência a eles nos corta na carne e nos fere na “alma” (ou na nossa “essência”, para os ateus, como eu); e, ainda, uma consciência de que nem suas dores nem sua luta são só suas. E, por isso mesmo, é preciso trazê-las a público, pois elas precisam ser discutidas e combatidas.

Perguntado, por exemplo, se já pensou em desistir da carreira em função da quantidade absurda de ataques racistas que já sofreu e da impunidade que cerca seus agressores, Vini, em meio às lágrimas, não escondeu as dificuldades e o enorme desgaste que enfrenta para se manter firme, inclusive para que possa exercer sua profissão e, assim, possibilitar um futuro melhor não só para sua família, mas também para todos negros e negras.

Situação que, tenho certeza, muitos negros e negras já enfrentaram nas salas de aulas, no chão da fábrica, nos cubículos dos “call centers”, nos balcões de serviços, nas casas-grandes das patroas e em todos demais cantos em que atuamos.

Não tenho pensado tanto em sair daqui. Se saio daqui, dou aos racistas o que eles querem. Vou seguir aqui lutando”, disse ele, em um momento, com a consciência, inclusive, de que, por mais que já tenha sofrido, a situação dele sequer é a mais difícil que possa existir.

Acredito que é algo muito triste tudo que venho passando aqui a cada jogo, a cada dia, a cada denúncia minha, vem aumentando. Acredito também que eu e todos os negros, não só na Espanha, mas no mundo todo, sofrem no dia a dia. O racismo verbal é minoria perto de tudo que os negros sofrem. Meu pai sempre teve dificuldade de trabalhar por ser negro. Na dúvida, sempre escolhem o branco.”, disse o jogador.

Um senso de humanidade que grita ainda alto mais no momento em que vivemos, quando o que mais ouvimos e vemos são gritos de dor e espetáculos macabros de desumanização provocados pelas muitas atrocidades que vemos mundo afora: da carnificina promovida na Palestina pelo Estado genocida e, também, racista de Israel à guerra na Ucrânia; da escalada constante dos índices de feminicídio e violência machista e LGBTIfóbica aos ataques contínuos às liberdades democráticas e direitos básicos.

Por isso mesmo, apesar de não ter contido as lágrimas assistindo a entrevista de Vini Jr., ela também bateu como uma brisa de esperança, uma lufada de ânimo e, também, um admirável contraponto, no que se refere particularmente ao universo do futebol, a dois episódios lamentáveis também envolvendo jogadores negros: a tardia prisão de Robinho, por um dos crimes mais bárbaros que se possa cometer, um estupro coletivo, e o inaceitável exemplo de Daniel Alves, que praticamente violentou novamente sua vítima ao pagar R$ 5,4 milhões para ficar em liberdade.

A barbárie que assola o mundo também invade os campos

Vitimado também pela xenofobia que tem crescido sem parar na Europa, Vini Jr. lembrou: “Eles pensam que estou contra a Espanha, mas não estou contra a Espanha, estou contra os racistas do mundo, de toda parte. Quero igualdade”.

E ele está corretíssimo. Como temos insistido, o acirramento de todas as formas de opressão e o crescimento de setores de ultradireita, fundamentalistas e reacionários são algumas das consequências mais evidentes da crise generalizada do sistema capitalista, acentuada desde 2008, e, na esteira dela, da intensificação da polarização política e social no mundo em que vivemos.

Esta é a mesma raiz podre de onde brotam excrescências da humanidade como Trump (EUA), Milei (Argentina), Órban (Hungria), Putin (Rússia), Meloni (Itália), o bolsonarismo, aqui, e, no Estado Espanhol, um partido como o “Vox”, que tem se consolidado como terceira força política. Isso só pra citar alguns exemplos. Setores cuja resposta para a crise é uma só: acentuar a exploração, custe o que custar, para continuar garantido as margens de lucro e os privilégios de um punhado de gente, simultaneamente, cada vez menor e mais rico.

Um objetivo que tem o discurso de ódio, a segregação, a discriminação, o fundamentalismo religioso e comportamental e as opressões em geral como importantes armas, na medida em que tudo isto não só é usado para tentar responsabilizar “o(a) outro(a” e “o(as) diferente” pela falta de emprego, os baixos salários, a inexistência de serviços públicos de qualidade etc., mas também para nos dividir, enfraquecendo nossa capacidade e potencial de rebeldia e luta.

Coisa que, forma alguma é novidade. A criação de ideologias segregacionistas e desumanizadoras em relação aos não-brancos praticamente se confunde com a própria história do capitalismo, cujas origens se mesclam com as correntes da escravidão. Ideologias desde sempre baseadas naquilo que Marx chamou de reificação; ou seja, a tentativa de transformar seres humanos em coisas, que não só são “julgados” como também tratados como objetos. Passíveis, portanto, de desgaste sem limites, menosprezo e violência.

“Sempre tem racismo e temos que fazer de tudo para diminuir (…). Que todos estudem um pouco do que os pretos passaram no passado. O que eu passo não é nem perto do que passaram. Luto pelos pretos, pobres, que não conseguem entrar no mercado de forma tranquila. Ocorreu comigo e minha família. Quero que isso mude para não falar tantas vezes quando venho aqui na coletiva”, disse o jogador.

As dores de Vini Jr. também são as nossas

Em outro momento que arrancou lágrimas e aplausos até mesmo dos jornalistas presentes, Vini, ao falar do esforço sobre-humano que tem que fazer para entrar em campo, me fez lembrar de uma dimensão do racismo que, inclusive, é raramente discutida até mesmo entre nós mesmos: os transtornos à saúde mental que resultam não só das constantes humilhações, mas também do fato de que a permanente discriminação praticamente nos “obriga” a sermos o “melhor”, sempre, para não darmos margem a mais insultos e ataques.

Tenho lutado bastante por tudo que vem acontecendo comigo. É desgastante, você está meio que sozinho em tudo. Já fiz muitas denúncias e ninguém é punido. A cada dia, luto por todos que passam por isso. Se fosse só por mim e pela minha família, não sei se continuaria. Vou triste para casa (…). Mas fui escolhido para defender uma causa bem importante e que eu estudo a cada dia para que no futuro meu irmão de cinco anos não passe pelo que estou passando. Meu irmão tem cinco anos e que ele não passe por tudo que estou passando“, afirmou Vini Jr.

Vini Jr., você não está sozinho! Racismo é crime! Basta!

Sei que o jogo que irá ocorrer hoje é todo ele cercado de simbologia, exatamente em função do que tem ocorrido com Vini Jr. Contudo, também tenho que concordar com o jogador quando ele aponta que é preciso ir além. E, para tal, é preciso sair do campo das simbologias e das denúncias e avançar na punição de todos culpados e em medidas efetivas para virar este jogo.

Se a gente começar a punir todas essas pessoas que cometem crime e aqui eles não consideram crime, vamos começar a evoluir, tudo vai ficar melhor para todo mundo. Faço tantas denúncias (…), mas no final acontece como aconteceu com meu amigo em Barcelona [referindo-se a seu assessor Felipe Silveira, que sofreu um ataque racista, por parte de um segurança do estádio, em junho passado], eles arquivam o processo e ninguém sabe de nada”, relatou Vini Jr.

De forma bastante correta, Vini Jr. exigiu que a FIFA, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), a CBF, a União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) e a La Liga (responsável pela primeira divisão no Estado Espanhol) deveriam estar na vanguarda destas punições. Algo que, sinceramente, apesar dos esforços pontuais, que vemos aqui e ali, acho bastante difícil.

Afinal, como em todos os demais campos da sociedade, entidades e times estão aprisionados à lógica do capitalismo, não só através de seus patrocinadores, mas também de todos os interesses políticos e econômicos que cercam um negócio multibilionário como o futebol. E esperar que isto mude “por dentro” do sistema é uma ilusão que, apesar de alimentada hipocritamente pelos reformistas (fazendo coro com a burguesia liberal), não tem a menor chance de acontecer.

O que, contudo, não invalida, pra nada, a luta de Vini Jr. Pelo contrário. Deve servir para que ela seja abraçada por todos e todas nós, como parte do combate por mudanças radicais neste sistema e para que possamos construir o mundo sonhado pelo jogador: “Eu quero fazer com que as pessoas no mundo possam evoluir, melhorar, que possamos ter igualdade, que num futuro próximo haja menos casos de racismo, que as pessoas negras possam ter uma vida normal, como as outras”.

Um sonho que, como disse no título, nos banha de axé, não só no sentido estritamente religioso e cultural que a palavra tem na língua Yorubá e nas tradições do candomblé: o poder, a força vital e ancestral que emana de tudo o que vive e se encontra na natureza.

Vini nos banha de axé ao nos fazer lembrar das vidas e dores, mas também das lutas e da rebeldia, de um povo que nunca se curvou, apesar dos pelourinhos e chibatas, dos genocídios e da imposição de péssimas condições de vida. Um povo para o qual a única saída, de certa forma, também foi apontada por Vini:

Que possamos estar todos juntos defendendo um por um, as coisas podem melhorar, nós que somos negros sabemos que tudo temos que fazer dobrado. Se estamos juntos, é melhor para mim, para você, para sua família. Há muitos que nos defendem, mas não têm a força que temos, de passar por isso todos os dias. Só quem é negro sabe o que passamos. Temos que seguir juntos.”, conclui o jogador.

Sim, Vini, sigamos juntos. Que você consiga encontrar forças para continuar cumprindo seu papel imprescindível nos campos e fora deles, pois tenha certeza de que, mesmo que não compartilhemos exatamente da mesma visão de mundo, você nos inspira e nos fortalece a seguir lutando por um mundo onde possamos dar, um dia, um cartão vermelho-revolução para os racistas dentro e fora dos campos de futebol.

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