Norte

O “mistério” dos corpos no Pará

A principal hipótese das investigações é que os corpos encontrados na pequena embarcação seriam de imigrantes africanos

Otávio Aranha, de Belém (PA)

29 de abril de 2024
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O episódio ocorreu nas proximidades da Ilha de Canelas, na região Nordeste do Pará | Foto: Reprodução

No mês de abril, um “mistério” intrigou os habitantes do Estado do Pará: pescadores encontraram uma embarcação à deriva, nela estavam corpos amontoados em estágio avançado de decomposição. O episódio ocorreu nas proximidades da Ilha de Canelas, na região Bragantina, Nordeste do Estado.

No início, especulava-se que seriam vinte corpos, o estado de decomposição não tornava possível uma contagem exata no próprio local e o ciclo das marés no rio dificultou o transporte da embarcação e o acesso ao trabalho da perícia científica.

Como não havia notícias de desaparecimento ou pedidos de socorro de barcos nas redondezas, a suspeita da Polícia Federal logo veio a se confirmar e, diferentemente da nova séria da Netflix “O problema dos três corpos” o mistério nada teve de sobrenatural ou fantasioso. Infelizmente, tratava-se de uma trágica situação provocada pelo modo de produção capitalista: o problema da imigração.

A principal hipótese das investigações é que os corpos encontrados na pequena embarcação de 15m x 2m, seriam de imigrantes africanos transportados ilegalmente que, desesperados pela situação econômica e social de seus locais de origem, tentaram alcançar uma perspectiva melhor de vida, arriscando-se na travessia do Atlântico.

Importante registrar que desde o início da humanidade, a migração existiu como forma de sobrevivência de nossa espécie, tendo em vista a necessidade de buscar alimentos e abrigo. Contudo, diferente das condições da natureza de milhares de anos atrás, que nos empurrou a locomoção e povoamento do globo, sob o modo de produção capitalista, este fenômeno adquiriu causas sociais e econômicas dramáticas.

O fenômeno da migração

Quando o capitalismo se desenvolveu e firmou-se enquanto modo de produção, promoveu avanços e maravilhas sem precedentes na história da humanidade. A expansão da grande indústria, sob o sangue e a vida de populações inteiras na fase de acumulação primitiva, permitiu que a produção de riqueza chegasse a patamares inéditos, o que contribuiu para o desenvolvimento das comunicações, dos transportes, do uso da eletricidade e demais fontes energéticas, das ciências e tecnologias em geral. A humanidade saiu do estágio de locomoção por carroças e alcançou a lua. Todo este avanço, todavia, se deu sob enormes contradições, a principal delas foi a concentração da riqueza nas mãos de poucos indivíduos e a extensão da pobreza e da miséria a maior parte de população. O fenômeno da migração desde o século XIX tem essa causa como fundamento.

Vladimir Lenin, quando estudou o desenvolvimento do capitalismo na Rússia, obra publicada em 1899, descreveu a seguinte imagem:

Em média, partem com 2 rublos no bolso, com frequência, falta-lhes mesmo o dinheiro para adquirir um passaporte, e eles se deslocam com uma permissão de viagem válida por um mês, que lhes custa 0,10 rublo. A viagem dura de 10 a 12 dias e, nesses longos percursos, seus pés incham, cobrem-se de calosidades e feridas (por vezes caminham descalços na lama fria da primavera). Cerca de 10% dos operários viajam em dubs [grandes barcos de tábuas ásperas, com capacidade de 50 a 80 pessoas e que, geralmente, vão superlotados], os trabalhos da comissão oficial assinalaram o enorme perigo desse meio de transporte: “Não se passa um ano, sem que uma ou várias dessas dubs superlotadas vá ao fundo com seus passageiros.

Essa condição permaneceu, em maior ou menor grau, ao longo dos anos de vida do capitalismo e explodiu tragicamente em pleno século 21. As cenas de centenas de pessoas tentando atravessar o mar Mediterrâneo, algumas com garrafas pets usadas como boias nos braços, divulgadas pela imprensa internacional, chocaram o mundo. Em particular, a fotografia de uma criança síria, sem vida, numa praia da Turquia, depois do naufrágio de uma embarcação com imigrantes, em 2015, representou o triste retrato do capitalismo contemporâneo.

Não é ao acaso que estas recentes ondas migratórias partem das regiões mais exploradas do mundo, como o continente africano e a região caribenha, em direção a países imperialistas como destino final. Na grande maioria dos casos, essa migração ocorre de forma ilegal e seus sujeitos ficam submetidos a diversos tipos de riscos e violências, principalmente quando são mulheres e crianças, como roubos, sequestros e estupros.

Na pequena embarcação encontrada nos rios do Pará, a perícia identificou que possivelmente a Mauritânia e o Mali, dois pequenos países localizados no Noroeste da África, tenham sido a origem dos passageiros. Apesar de terem sido encontrados oito corpos no interior do barco, acrescido de mais um que estava na encosta, a quantidade de documentos e jaquetas indicam terem sido 23 ao todo. Não se sabe precisamente a causa de suas mortes, mas suspeita-se que a embarcação tivesse como destino as ilhas Canárias, as como não possuía motor, o provável é que uma corrente marítima do Atlântico a tenha deixado à deriva até a nossa encosta, levando seus passageiros à morte por desnutrição ou desidratação.

Barbárie capitalista

No capitalismo do século XXI, enquanto a seleta lista de bilionários da Forbes projetam colonizar Marte em poucos anos (estamos falando precisamente de Elon Musk), na outra parte do globo, seres humanos morrem de fome e sede, tentando atravessar desesperadamente mares e oceanos em busca de algum tipo de trabalho para, tão somete, conseguir sobreviver.

Assim, o que a princípio parecia um mistério trazido pela comunidade de pescadores do interior da Amazônia, o processo de investigação científico logo revelou a responsabilidade destes homicídios: a barbárie capitalista moderna numa de suas facetas mais cruéis!

Mudar este modo de produção, o que perpassa pela expropriação dos bilionários e das forças produtivas sob mãos privadas, é uma tarefa mais do que urgente!

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