O que está por trás da mais recente explosão de violência no Rio?
Os conflitos armados no Rio de Janeiro têm um motor central, a disputa de mercados ilegais altamente lucrativos de um lado, uma enorme oferta de armas de fogo, um setor minoritário, pobre, disposto a arriscar a vida por lucros rápidos, não necessariamente grandes, e por fim uma política pública que aumenta ainda mais a violência e os conflitos armados.

Em agosto de 1987, o Rio presenciou a primeira guerra entre narcotraficantes que ficou conhecida como a Guerra do Dona Marta, decorrida numa favela com o mesmo nome, localizada na Zona Sul, e mundialmente conhecida por ter sido palco do video de Michael Jackson “They Don’t care about us”.
Cabeludo, ligado ao Comando Vermelho, invadiu a favela para retomar os pontos de venda de drogas em poder do ex-PM Zacarias Gonçalves da Rosa Neto, o Zaca. Durante seis dias, as duas quadrilhas se enfrentaram, com intensas trocas de tiros de metralhadoras, escopetas, pistolas automáticas e até lançamento de granadas. Desde então os conflitos armados não só não cessaram como se expandiram para toda a cidade e região metropolitana. Tiroteios com armas de grande porte fazem parte do cotidiano de quem vive no Rio. Mas há momentos que os conflitos se exacerbam ao ponto de chocar quem já naturalizou uma realidade conflagrada. Estamos vivendo um desses momentos.
Os negócios capitalistas ilegais e a violência armada
A violência é um fenômeno multifacetado e com múltiplos atores, a policia, o tráfico, as milícias, os bicheiros, os praticantes de furtos e pequenos roubos, cada um contribui de uma forma para aumentar a violência. Entender o conjunto do fenômeno nas suas várias faces e os seus diferentes atores é fundamental para lhe dar uma resposta o mais correta possível.
Geralmente os setores de direita e centro, apoiados numa boa parte de população, conclamam que para diminuir a violência tem que se aumentar a repressão, mais polícia e uma polícia mais violenta, e se ainda assim não resolver, como não tem resolvido, então tem que chamar as Forças Armadas (o que também não tem resolvido nada).
Por outro lado a esquerda tende a dar uma resposta genérica de que a violência é causada pela miséria social e que, para resolvê-la, tem que ter mais saúde, educação, emprego, alimentação… Esta resposta além de ser curta, por vezes gera indignação na própria população pobre, que com razão diz, não é porque é pobre que vai ser criminoso. Na verdade, pobreza e criminalidade violenta não andam necessariamente juntas.
Os conflitos armados no Rio de Janeiro têm um motor central, a disputa de mercados ilegais altamente lucrativos de um lado, uma enorme oferta de armas de fogo, um setor minoritário, pobre, disposto a arriscar a vida por lucros rápidos, não necessariamente grandes, e por fim uma política pública que aumenta ainda mais a violência e os conflitos armados.
No caso do tráfico de drogas, as facções narcotraficantes são como empresas capitalistas, funcionam pela lógica do lucro, as mercadorias que transacionam são drogas. No entanto, ao ser negócio ilegal, a disputa da produção, rotas de transporte e mercado, atacadista ou varejista, não está regulamentada, não pode ser legislada nem disputada na justiça. Assim, quando há conflitos de mercado que não são resolvidos por pactos ou acordos entre as partes, a disputa se dá pela violência armada. Cabeludo, antes de invadir o Morro Dona Marta com um grupo armado com fuzis e granadas tentou um acordo com Zaca, mas este foi irresoluto em tomar todas as bocas de fumo do morro…
O acirramento das disputas de facções criminosas e a letalidade violenta
De 1987 para cá, os momentos de relativa paz e a explosão da violência tiveram muito pouca relação com o sucesso ou insucesso das políticas de segurança pública. Se virmos os dados sobre letalidade violenta no Rio de Janeiro podemos ver que os picos de homicídios coincidem com a deflagração de guerras entre facções:
1994-1995 decorrente de uma disputa dentro do próprio CV, que leva à formação de uma nova facção a ADA, Amigos dos Amigos, (até essa altura existia apenas o CV e o Terceiro Comando – TC) que toma uma parte considerável dos territórios do CV.
2002-2003 em que o CV a partir de uma rebelião dentro da prisão mata os principais chefes da ADA e retoma uma parte importante dos territórios perdidos em 1994.
2017: explode novamente um conflito, desta vez já com a atuação das milícias, e que termina com a ADA perdendo quase todos os territórios para o CV (que passou a controlar a Rocinha, um dos pontos mais lucrativos do Rio de Janeiro), Terceiro Comando (que passou a chamar-se Terceiro Comando Puro) e milícias.
O Rio de Janeiro começou o ano de 2018 com um novo equilíbrio de forças, as milícias se consolidaram como maior facção do crime organizado controlando cerca de 50% do território da região metropolitana, mais concentrado na Zona Oeste da capital, seguido pelo CV que controlava cerca de 40%, majoritariamente na zona norte e sul, e o TCP controlando menos de 10%.
Esse equilíbrio foi rompido no final do ano passado e o que assistimos hoje no Rio é mais um momento em que quase todos os territórios estão novamente em jogo, e as disputas são generalizadas, há uma espécie de “guerra total”.
Por que o equilíbrio de 2018 foi rompido?
Várias razões levaram ao desmoronamento da correlação de forças estabelecida em 2018, vou colocar aqui as duas que considero mais importantes:
1. o fortalecimento do Comando Vermelho pelo domínio da Rota do Solimões. Desde há cerca de 2 anos para cá o CV conseguiu estabelecer o controle da rota de tráfico internacional que através dos Rios Negro e Madeira traz da Bolívia, Peru e Colômbia grandes quantidades de cocaína e maconha para abastecer os mercados nacionais e internacionais. Esse controle permitiu ao CV acumular capital e armas, que lhe permitiram uma ofensiva sobre territórios que sempre tinham sido dominados pela milícia e outros que estavam em disputa com o TC
2. o debilitamento das milícias: desde que iniciaram a sua expansão no inicio dos anos 2000 as milícias nunca tinham sofrido nenhum revés sério no seu controle territorial. Neste momento não só perderam bairros que controlavam há cerca de 20 anos, como tiveram que se aliar às facções do narcotráfico para fazer frente às disputas de territórios.
A derrota de Bolsonaro foi com certeza um dos elementos catalisadores da crise, juntamente com os desdobramentos da operação Os Intocáveis que prendeu quase toda a cúpula que controlava a região de Jacarepaguá (prendeu todos menos Adriano da Nóbrega que foi executado). Por fim, a execução de Ecko que controlava a maior milícia do estado, desencadeou uma luta interna e a divisão dessa facção em três grupos que abriram uma guerra pelo controle dos antigos territórios.
Não há solução para a violência armada urbana sem a legalização das drogas
O tráfico de drogas é um dos negócio mais lucrativos do mundo, estimativas conservadoras do próprio FMI, sustentam que é o terceiro em faturamento no mundo, movimentando no mínimo 1,5% do PIB global, que correspondeu no ano de 2022, a 1,5 trilhão de dólares. Um volume de dinheiro assim faz frente a leis, polícias, exércitos e estados, não vai acabar porque é criminalizado. E para estabelecer os seus centros de produção, transporte e mercados atacadista e varejistas utiliza acordos e confronto armado quando os acordos fracassam.
Para acabar com essa guerra é fundamental descriminalizar o consumo de todas as chamadas “drogas ilícitas” bem como regulamentar sua comercialização. Os casos de adição devem ser tratados como problema de saúde publica. O estado deve regulamentar e fiscalizar a produção e a comercialização desses produtos e taxar as empresas, tal como taxa os produtores de cigarros.
E sim, é preciso atacar as condições sociais que empurram uma minoria dos jovens pobres para as organizações criminosas, garantir um salário mínimo digno, renda para os desempregados, transporte público de qualidade gratuito para quem tem baixa renda, saúde e educação de qualidade…
Por fim, não se resolve a violência com mais militares, pelo contrário, é preciso desmilitarizar a segurança pública e Polícia Militar, conformando uma polícia civil estadual e unificada, com democracia nos quartéis e livre organização dos soldados controlada pelos trabalhadores. Paralelamente os trabalhadores devem ter o direito de se organizar em grupos de defesa, inclusive armada, para fazer face aos abusos da policia e do crime organizado.
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