O que falta para o Brasil romper com Israel?
O cálculo político por trás da cumplicidade com o massacre em Gaza

A interceptação da Flotilha da Liberdade pelas Forças de Ocupação Israelense — que levava ajuda humanitária a Gaza e ativistas internacionais, entre eles o brasileiro Thiago Ávila — jogou água no moinho do debate sobre a necessidade da ruptura relações diplomáticas com o Estado sionista.
No momento em que Israel perpetra uma escalada no genocídio televisionado contra o povo palestino, respaldado pelas principais potências imperialistas, nenhum governo com um mínimo de compromisso com os direitos dos povos poderia manter a normalidade diplomática e comercial com o regime de apartheid e limpeza étnica.
Mas é exatamente isso que o governo Lula (PT) tem feito.
A política do governo se move entre críticas retóricas e a cumplicidade. Enquanto Lula compara — corretamente — o massacre em Gaza às práticas nazistas, seu governo mantém intactos os laços econômicos e militares com Israel. Exporta petróleo que abastece a máquina de guerra sionista, importa tecnologia de repressão, mantém acordos em cibersegurança e defesa. Quando questionado sobre a ruptura, o governo recua. E quando setores da sociedade levantam essa bandeira, o PT trabalha para desarmá-los politicamente.
O sequestro de Thiago Ávila e dos ativistas Flotilha Liberdade é a mais recente desculpa: dirigentes e militantes do PT argumentam agora que “não seria o momento” para uma ruptura, pois seria necessário “manter canais abertos” para garantir a libertação e o resgate dos reféns de Israel. Trata-se de um argumento, no mínimo, indigno. Israel já tem mais de setenta anos de limpeza étnica e apartheid, e o PT está em seu quarto mandato. Se esse momento é inoportuno, não faltaram outros durante as últimas décadas. Mas mesmo assim o PT nunca cogitou a ruptura.
Além disso, o Estado de Israel não respeita qualquer norma internacional — seu poder está fundado na força, na ocupação e na barbárie. A manutenção de relações diplomáticas não protege os ativistas; ao contrário, legitima um regime que viola sistemática e cotidianamente os direitos humanos. A única proteção real viria da mobilização internacional massiva, não dessa diplomacia conciliadora.
Contraditoriamente, alguns setores da esquerda governista enxergam na ruptura uma oportunidade política. Argumentam que ela “unificaria a esquerda”, mobilizaria uma base social em torno da defesa do governo, “projetaria o Brasil como protagonista internacional”, especialmente no contexto dos BRICS. A ilusão é dupla: por um lado, supõe-se que o PT esteja disposto a romper de fato — o que não está. Por outro, confunde-se uma manobra eleitoreira com um verdadeiro compromisso com a causa palestina. O PT não busca liderar um movimento; busca instrumentalizar a pauta para reforçar seu próprio capital político, enquanto segue aplicando no Brasil políticas de ajuste fiscal e contenção das lutas.
O que o governo tem levado em conta
O cálculo político real do governo é outro, e é um cálculo de classe. O PT governa em função da estabilidade do regime burguês. Sabe que uma ruptura com Israel provocaria uma reação violenta da bancada evangélica e conservadora — já majoritariamente pró-Israel e reacionária. A ofensiva que se abateu sobre Lula após sua comparação entre Israel e o nazismo serviu de aviso: a queda de popularidade entre os evangélicos foi imediata, e a imprensa burguesa não hesitou em acusá-lo de “antissemita” de “romper com a tradição diplomática brasileira”, ou de ser simpático à ditaduras e terroristas. Uma ruptura real com Israel unificaria ainda mais esse campo conservador e daria de bandeja um argumento para a oposição atacar. Algo que o governo quer evitar a todo custo.
Além disso, o Brasil não tem uma posição “desimpedida”, como outros países da região. Em comparação com Colômbia ou Bolívia, que já romperam relações com Israel, o Brasil enfrenta um cenário mais complexo e com relações mais estreitas e com uma comunidade judaica maior do que nossos vizinhos. A começar pela forte presença do lobby sionista no Brasil, operando no Congresso e na grande imprensa. Os laços econômicos também são mais robustos: em 2024, o comércio bilateral com Israel alcançou quase US$ 2 bilhões, sem mencionar o acordo de livre comércio com o Mercosul em vigência desde 2010. O Brasil exporta petróleo, carne, soja e importa fertilizantes, tecnologia, armamentos. Empresas brasileiras, como a Villares Metals, abastecem a indústria bélica israelense com aço; a Taurus exporta armamentos; a Força Aérea Brasileira adquire tecnologia de guerra israelense.
Ou seja, todas essas relações demonstram os interesses de frações da burguesia brasileira associada ao imperialismo e ao sionismo. Romper com Israel seria romper com esses interesses — algo que o governo Lula não quer nem o fará. Pelo contrário: o governo é pivô nessa subordinação da política internacional à lógica do capital, dos acordos econômicos e da estabilidade burguesa.
Por isso, o PT coloca a questão da Palestina na conta eleitoral e da governabilidade. Calcula o custo de cada gesto, dosa os discursos, evita ações concretas. Seu objetivo não é avançar para a ruptura, mas preservar sua base de apoio entre os setores progressistas enquanto garante aos capitalistas que não colocará em risco os acordos estratégicos e seus lucros.
É preciso ir além
O único fator que poderia inverter essa equação seria a ação independente das massas. Não serão as manobras no Palácio do Planalto, do Itamaray ou os discursos nos BRICS que farão o governo romper. Só um movimento de massas radicalizado — como já se viu em outros países com greves, bloqueios e boicotes — poderia criar uma correlação de forças capaz de impor essa ruptura.
Por isso, a tarefa é clara: precisamos ira além das notas de repúdio, dos gestos de gabinete. Toda cumplicidade e complacência com o genocídio precisa ser denunciada. Mais do que em qualquer outro momento, desde o 7 de Outubro de 2023, é hora do movimento de solidariedade à Palestina tomar ações concretas contra empresas cúmplices, boicotar e fazer pressão pela base. É hora de pôr na rua toda nossa solidariedade internacional e se somar no coro daqueles que repudiam a política genocida de Israel.
A causa palestina não é moeda de troca, nem palanque para gestos simbólicos. É uma questão de princípio internacionalista e de luta de classes. Nosso lugar não é ao lado de governos cúmplices do imperialismo. Nosso lado é o do povo palestino em resistência — nas ruas, nos portos, nas fábricas, em cada espaço de luta.
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