O retorno do chicote invisível
No início de novembro, o Nubank — que durante anos se apresentou como “nuvem” digital e símbolo do “novo mundo do trabalho” — protagonizou uma reviravolta emblemática. Anunciou o fim de seu modelo 100% remoto e a adoção da jornada híbrida para a maioria dos funcionários. A medida revoltou trabalhadores e foi seguida pela demissão de 14 funcionários sob argumentos difusos de “insubordinação” e “sabotagem”. A retaliação, na verdade, sentava um precedente: discordar da mudança implicaria risco real de perder o emprego.
Em resposta, trabalhadores redigiram uma carta-manifesto denunciando a decisão como “arbitrária, insensível e sem base empírica”, exigindo sua reversão e a imediata recontratação dos demitidos. O episódio condensa, em apenas alguns dias, uma tendência que se espalha desde o fim da “era massiva de home office” no pós-pandemia: o capital está empenhado em reverter, o mais rápido possível, a autonomia relativa conquistada pelos trabalhadores durante o auge da crise sanitária.
Controle e poder patronal
Esse conflito se repete em escala internacional. Segundo relatório do LinkedIn, empresas vêm reduzindo sistematicamente ofertas de vagas remotas, embora continuem sendo mais disputadas que as presenciais. A consultoria McKinsey confirma o mesmo cenário: apesar da economia gerada pela transferência de custos para os trabalhadores — equipamentos, energia, internet — são as empresas que resistem e puxam de volta a corda.
Em meados do ano, a Petrobras reduziu o home office de três para dois dias, gerando revolta entre trabalhadores administrativos, que denunciaram a ausência de justificativa técnica e o impacto brutal na vida cotidiana. A Dell afirmou abertamente que trabalhadores remotos terão menos chances de promoção; o banco JPMorgan exigiu presença integral de executivos para reforçar liderança e “visibilidade”.
Não se trata de uma exigência técnica ou que responda a necessidades impostas por tarefas que não podem ser executadas remotamente, tampouco está baseado em ganhos de produtividade — a maior parte dos estudos aponta o oposto — trata-se de uma disputa sobre o grau de autonomia que os trabalhadores conquistaram, mesmo que de maneira parcial, desigual e limitada.
O teletrabalho como fissura no comando
O teletrabalho não significou apenas mudança logística, mas transformação nas próprias relações sociais de produção. Diminuiu a capacidade de vigilância direta, enfraqueceu a gestão presencial baseada em comando-controle, reduziu tempos de deslocamento e ampliou a autonomia na organização do tempo. Deu às mulheres trabalhadoras — as mais sobrecarregadas pela dupla jornada — um pouco mais de oxigênio cotidiano.
Introduziu elementos de autonomia relativa da força de trabalho, tolerados pelo capital apenas enquanto não havia alternativa. O retorno ao presencial é, portanto, um movimento consciente de recomposição da autoridade patronal.
Além disso, quanto maior o desgaste emocional do trabalho presencial — gestão do tempo, convivência forçada, cansaço do transporte — menor a disposição para o conflito. Isso é vital para o capital. Trata-se de restaurar o “chicote invisível do relógio” por meio do “chicote visível do escritório”.
O escritório como espaço de disputa ideológica
O escritório é, por excelência, o espaço do controle, da vigilância, da coerção simbólica, da hierarquia visível. É onde o empregador observa postura, fisionomia, disciplina, informalidades. Há também uma dimensão ideológica crucial. O teletrabalho abalou um pilar da cultura empresarial. A presença física não é apenas controle, mas um ritual simbólico que reforça hierarquias e alimenta a mística do “time”, da “cultura corporativa” e do “espírito de missão”.
No capitalismo tardio, fragmentado e financeirizado, essas narrativas são indispensáveis para fabricar consentimento. O home office desmontou essas liturgias. Controlar subjetivamente ficou mais difícil. E, para a classe capitalista, recuperar esse teatro cotidiano é tão importante quanto controlar métricas ou metas.
As fissuras do controle digital
O teletrabalho não eliminou a exploração, evidentemente, mas deslocou parte do controle do capital para dentro da casa do trabalhador. E esse deslocamento, ainda que mantenha mecanismos sofisticados de vigilância, abriu fissuras. O caso do Itaú, que demitiu funcionários por estarem logados supostamente sem atividade, ilustra a contradição: a tecnologia permite vigilância intensa, mas nunca total.
O trabalho remoto permitiu reorganizar ritmos, burlar controles e experimentar microformas de autonomia. Isso fez muitos trabalhadores perceberem que a vida pode ser mais do que trabalho. Produziu-se, assim, uma subjetividade mais resistente ao mando direto. A classe trabalhadora ensaiou comportamentos de recusa — aumento de pedidos de demissão, fuga para empregos flexíveis, debates públicos massivos. A volta ao escritório é um contra-ataque para impedir que essa experiência gere hábitos duráveis e focos de resistência.
A contraofensiva estrutural do capital
Mas a reimposição do presencial não é apenas reorganização administrativa: é parte de pressões estruturais do capitalismo contemporâneo. A explosão do trabalho remoto esvaziou prédios corporativos, reduziu demanda por aluguéis comerciais, derrubou valores de fundos imobiliários e expôs bancos, seguradoras e incorporadoras à desvalorização de ativos. Cidades inteiras organizadas pela especulação urbana — São Paulo, Nova York, Londres, Singapura — enfrentam o risco de “centros fantasma”.
O retorno ao escritório, portanto, também é uma operação de resgate: reaquecer distritos financeiros, estabilizar fundos atrelados a imóveis comerciais, restaurar a circulação de serviços e consumo nos centros urbanos. O capitalismo funciona integrado: decisões de RH são, na verdade, decisões da dinâmica de valorização do capital.
Finalmente, há o reposicionamento geopolítico. Estados Unidos, União Europeia e grandes corporações globais estão empenhados em reindustrializar setores estratégicos, reorganizar cadeias produtivas e fortalecer “coerência cultural” interna diante da disputa com a China. Nesse contexto, o trabalho presencial é visto como instrumento de reconstrução de uma cultura corporativa alinhada aos objetivos nacionais, de vigilância sobre equipes que lidam com dados sensíveis e de reforço da disciplina em setores estratégicos. A disputa geopolítica exige, para o capital, reforçar a capacidade de comando interno — e o remoto foi percebido como fragilização.
Quando juntamos todas essas dimensões, a tendência fica nítida: não é apenas controle, é recomposição da ordem capitalista em várias escalas ao mesmo tempo. É o capital reordenando a cidade, o mercado, a cultura, a subjetividade e a geopolítica para recuperar sua hegemonia.
O escritório é, portanto, mais do que um lugar de trabalho: é a maquinaria de poder da burguesia. O teletrabalho abriu uma fenda acidental, por onde entrou um pouco de ar. Agora, o capital tenta selar essa fresta. O que está em disputa não é a cadeira giratória — é a forma social que organiza o trabalho. E, portanto, nossa resposta precisa estar à altura da totalidade da ofensiva.