Negros

Os bonecos assustadores e superfaturados do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes

A prefeitura de São Paulo pagou R$ 17 milhões em bonecas que foram criticadas por ativistas antirracistas e movimentos sociais

Shirley Raposo

4 de março de 2024
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A prefeitura de São Paulo anunciou, em março do ano passado, que compraria 128 mil bonecas negras para as escolas municipais. Além disso, iria instituir o currículo antirracista, como parte da politica “São Paulo, Farol de Combate ao Racismo Estrutural”.

A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), em São Paulo, está sob investigação pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) devido à aquisição controversa de 128 mil bonecos artesanais, sem licitação, por R$17,2 milhões. Este projeto, que visava promover a inclusão e o combate ao racismo ao distribuir bonecas negras e com traços latinos nas escolas infantis do município, acabou gerando um grande descontentamento.

As críticas vieram especialmente do movimento negro, que classificou os bonecos como “assustadores” e inadequados para fomentar a autoestima das crianças que deveriam se ver representadas por eles, argumentando que eles poderiam, na verdade, reforçar estereótipos negativos em vez de combatê-los.

A controvérsia se estendeu também para a legalidade e transparência do processo de aquisição. O fato de a compra ter sido realizada sem licitação, juntamente com questionamentos sobre o alto custo dos bonecos e a exclusividade da empresa fornecedora, Ateliê Quero Quero, levantou suspeitas de irregularidades administrativas. Como resultado, o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Município (TCM) iniciaram investigações sobre o caso.

Toda essa situação evidencia os desafios de implementar políticas educacionais antirracistas, bem como a implementação da lei 10.639. Por isso, entrevistamos Luanda Martins Campos, que é mestra em gestão de ensino da educação básica (PPGEEB/UFMA), pedagoga, professora da rede municipal de educação de São Luís (MA) e contadora de histórias pretas. Ela é pesquisadora da oralidade de base africana como instrumento para educação de crianças e é autora de um livro infantil lançado nesta temática “Na casa da vó Bá”. Atua também na formação inicial e continuada de profissionais da educação básica sobre a educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura africana e afro-brasileira para crianças.  

Opinião Socialista: Você tomou conhecimento sobre a compra dos bonecos pela Prefeitura de São Paulo? Qual foi sua reação ao ver as bonecas?

Luanda: Sim. Vi pelas redes sociais várias páginas de jornalismo negro fazendo a denúncia. Infelizmente, não é novidade quando se trata de governo burguês que defende os empresários e não demonstra nenhum compromisso com as políticas de reparação à população negra. Pelo contrário, faz dessa prática maquiagem às vésperas das eleições municipais. Lembrando que ele, Nunes (MDB), é apoiado pelo próprio Bolsonaro, o que já nos diz muita coisa.

Para você, que é mestre em pedagogia e tem contato direto com as crianças, qual é a importância de bonecas e bonecos na formação da identidade e autoestima de crianças negras? Ainda precisamos avançar na representatividade para as crianças?

Nossa luta por reparações passa pela positivação da nossa própria identidade e é um processo que se inicia na infância. Estamos falando de uma etapa muito importante na formação humana, pois está relacionada à própria construção de subjetividade em que os elementos da ancestralidade, da autoimagem e do afeto são essenciais. Mas é também nessa etapa a formação de que pessoa não se deve ser, onde o sistema capitalista impõe os lugares sociais e usa de seus braços todas as opressões possíveis como o racismo, o machismo e a LGBTQI+fobia. O brincar na infância é coisa séria porque é onde nós podemos vivenciar esses espaços, tanto os de opressão quanto os de emancipação. E é justamente aí que nossas crianças pretas da escola pública encaram o racismo de frente em seu cotidiano escolar e começam a se perceber ou não naquele espaço de formação. 

A função das bonecas está em representar nossos corpos na sociedade. Onde antes aprendíamos que meninas deveriam brincar de casinha e meninos de carrinho, a educação emancipadora com práticas antirracistas insere outro olhar sobre esses corpos e sua posição na sociedade. Ao ver bonecas que representam afetivamente corpos de negros e indígenas, damos às nossas crianças a possibilidade não somente de formação identitária, mas também de mudança social a partir do debate de gênero, raça e classe nas brincadeiras.

Representatividade não está apenas em comprar bonecas de qualquer jeito e com qualquer pessoa, muito menos assinar projetos de combate ao racismo ao mesmo tempo em que corrobora com a mortandade de jovens negros na periferia e nem se dizer antirracista e se contrapor às ações de reparação ou de defesa dos territórios tradicionais. Representatividade precisa ter relação com ações concretas de combate ao racismo, começando pela oferta qualitativa da educação básica, da produção e distribuição de materiais condizentes com as realidades regionais e fortalecedores de uma política antirracista, além da valorização dos profissionais da educação básica em sua formação e atuação.

Pode contar um pouco sobre o seu livro “Na Casa de vó Bá”? Como você trabalha a autoestima e o afeto nele?

É um livro memória dentro do campo da literatura negra por sermos nós ali falando sobre nossas subjetividades. Na casa da vó Bá fala da minha infância junto à minha vó Bá e que descreve a infância de tantas outras meninas negras criadas entre mulheres, especialmente as anciãs. O afeto precisa estar presente na educação para a infância. A positivação da nossa identidade contribui para definirmos nosso lugar social humanizado. O racismo tenta desumanizar nossa imagem e nossas histórias. Quando apresentamos uma história em que as crianças se veem e veem seus mais velhos, o encantamento tem uma função política de reconhecer nossas lideranças, de evidenciar nossos saberes e de perceber nossa organização enquanto povo. Na casa da vó Bá foi meu primeiro livro infantil e com ele trouxe as personagens em forma de bonecas para que pudesse ser tocadas, sentidas, vistas pelas crianças na prática de contação de história. Muitas das nossas crianças vivem em lares com pessoas idosas, onde estes são provedores do lar por diversos motivos. Por isso, o encontro afetivo entre as crianças e uma boneca negra idosa com cabelos brancos e olhar acolhedor acompanhados de um abraço e o pedido de benção, como se estivesse em contato com suas próprias avós. 

Na contação de histórias trabalhamos a acolhida e o afeto através da musicalidade e do toque nas bonecas. Os olhares são outros, pois são olhares de encontro e de fortalecimento da própria imagem.

A prefeitura de São Paulo pagou em média R$ 134 por essas bonecas. Você, sendo artesã de bonecas, considera esse valor razoável para a qualidade das bonecas oferecidas? Com esse valor, seria possível comprar bonecas de maior qualidade de outras artesãs tradicionais que atuam nesse mercado?

As bonecas compradas não valem o valor pago e evidenciam a corrupção por traz desse ato. Há bonecas no mercado feitas artesanalmente com valor similar ou até pela metade deste valor, com muito mais qualidade e feitas por mãos negras periféricas. A diferença está no propósito da ação. Não era de combater o racismo e muito menos enaltecer nossos corpos. Eu faço bonecas negras desde 2017 a partir da vontade de tê-las na vivência de minha filha e encontro mulheres com mais de 40 anos procurando as bonecas que faço relatando que sempre quiseram ter uma boneca que se parecesse com elas. Por isso que considero a infância enquanto elemento desencadeador da construção subjetiva, mesmo em adultos.

A prefeitura afirmou que essa política de compra de bonecas seria uma forma de aplicar a lei 10.639. Você acredita que a distribuição de bonecas é o suficiente para aplicar essa lei? Além dela, quais outras políticas públicas poderiam ajudar a aplicar essa lei?

Diante de todas as formas de racismo que nossas crianças têm que enfrentar e driblar no cotidiano, a escola que deveria ser lugar de acolhida, quando não enxerga a infância enquanto elemento emancipador da nossa subjetividade, acaba por marginalizar, silenciar e até mesmo abandonar. Há um ensinamento Bakongo que diz que a criança é um sol vivo. Quando uma criança nasce, é possibilidade de libertação da comunidade e que, por isso, toda a comunidade deve se tornar responsável por sua formação.

As bonecas, então, são mais um dos inúmeros instrumentos que o Estado poderia utilizar, sendo responsável pelas escolas públicas. A lei 10639/2003 e a 11645/2008 nos dão suporte para cobrar do Estado políticas de reparação a partir da educação. Valorização da carreira docente, formação inicial e continuada para esses profissionais com foco em práticas antirracistas, a produção e distribuição de material didático que trata da diversidade racial e de gênero, o debate crítico na universidade trazendo os saberes ancestrais africanos, afro-brasileiros e dos povos originários, a defesa dos territórios tradicionais são algumas das ações que têm relação com a aplicação da lei 10639/2003.

Trazendo para meu contexto enquanto professora da rede municipal de São Luís, muito ainda temos que avançar. O que já temos de ganho é decorrente da organização da própria categoria. Escolas sem estrutura para crianças pequenas (creche e educação infantil), mau atendimento para jovens, adultos e idosos na EJAI, formações pontuais sobre educação das relações étnico-raciais, além da desvalorização da carreira profissional e má distribuição da renda refletem a educação pelo Brasil a fora. No caso da aquisição de bonecas negras aqui em São Luís, professores, professoras e alguns gestores por iniciativas próprias buscam e adquirem bonecas negras  para fazer parte das práticas pedagógicas em sala de aula. Da mesma forma, essas professoras também buscam formações a respeito pois não recebem da forma como deveria por parte da secretaria municipal de educação.

Como ativista das lutas antirracistas, qual papel você acredita que os movimentos sociais poderiam ter na elaboração de uma nova política educacional para a juventude negra?

Tudo que conquistamos foi na base da luta e da organização da classe trabalhadora em movimentos sociais e sindicatos. O movimento negro brasileiro sempre pontuou a educação enquanto principal instrumento de reparação e elemento aglutinador em todos os campos de luta. Contudo, é preciso ser crítica em afirmar que nossa luta não pode ficar atrelada aos governos. Como nesse caso, é preciso agir de forma independente exigindo a investigação e punição pelo ato criminoso às crianças. Mais que isso, intensificar as lutas organizadas na base contra o genocídio da população negra. São os pais, mães, avós e irmãos dessas crianças pequenas que estão morrendo. Nosso papel enquanto movimento social num país racista é permanecer na luta independente e exigir reparações sem amarras, utilizando os instrumentos que temos na nossa própria composição enquanto movimento, especialmente o movimento negro: se aquilombolar usando nossos saberes, valorizando nossas histórias, escutando todas as nossas vozes de criança à pessoa idosa.