Oscar Wilde e dois ícones da cultura gay e da liberdade artística: “Dorian Gray” e “Salomé”
No artigo anterior, falamos do início da carreira de Oscar Wilde e seu vínculo com o Esteticismo até o momento em que, quando ela esta começando a decolar, o escritor encontrou “Bosie”, seu grande amor e razão de sua derrocada, destacando, também, o que era ser gay quando o termo “homossexual” sequer existia, mas a repressão era fortíssima.
Com afirmamos, a explosão da fama de Wilde foi conquistada pela perfeita combinação de coisas que têm tudo a ver com ele: escândalo, inteligência e talento artístico.
No lado “bas-fond” (“bafão” ou “barraco”, em francês) da história, houve o lançamento de seu único, e genial, romance, “O retrato de Dorian Gray” (1890) e a enorme polêmica causada por uma peça que, inclusive, Wilde nunca viu encenada, “Salomé”, escrita em 1891, censurada dois anos depois e só encenada pela primeira vez em 1896 (ou seja, quando Wilde já estava preso), na França, numa espécie de turnê-protesto.
Dorian Gray: um retrato que o mundo não queria ver
O livro, não por acaso, apesar de nunca ser explícito sobre o tema, é considerado um ícone da “cultura gay” e um dos textos mais homoeróticos da literatura. Aliás, uma história que começa antes mesmo de ser publicado, quando já circulava o boato (nunca confirmado) de que o personagem central era inspirado no poeta esteta John Gray (1866-1934), que teria sido amante de Wilde entre os anos 1890 e 1893.
Contudo, a identificação provocada em homens gays, até hoje, tem a ver com a escrita e narrativa do livro que, seja pelo contexto da época, pela forma como Wilde lidava com sua própria homossexualidade ou pura escolha poética, são expressões de uma das essências do que se chama de “erótico”: o prazer despertado pelos sentidos e o desejo que brota daquilo que está implícito e não escancarado.
Profundamente influenciado pela ideias do Esteticismo, a história é, também, uma exaltação da beleza, bem como dos perigos que ela guarda, centrada na trajetória de jovem Gray, do pintor Basil, que captura sua estonteante aparência num retrato e do decadente Lord Henry, que o introduz à vida libertina e amoral da boêmia londrina. Mas, na verdade, o protagonista da história é o tal retrato, que absorve todas as “marcas” dos pecados e excessos de Dorian, enquanto este permanece jovem e belo.
Para o indisfarçado prazer de Wilde, assim que chegou às livrarias, o livro tomou as manchetes dos jornais, virou o centro das conversas e, também, foi levado, mais de uma vez, às cortes dos tribunais, que tentaram bani-lo, sempre acompanhado seu título de adjetivos como lascivo, imoral, nocivo, rude e grosseiro. Para se ter uma ideia do tom atingido pela imprensa, vale citar um trecho da crítica do “Daily Chronicle”: “É uma história nascida da literatura leprosa dos decadentes franceses – um livro venenoso, em cuja atmosfera pesam os odores mefíticos [pestilentos, repugnantes] da putrefação moral e espiritual”.
A reação furiosa da imprensa e elite da época, em grande medida, refletia aquilo que estava nas entrelinhas do livro exatamente porque não poderia ser explicitado numa sociedade como a da Era Vitoriana: apesar das relações de Dorian sejam exclusivamente com mulheres, o centro da narrativa é a relação entre Dorian, Basil e Henry, que o texto sensualiza de uma forma absolutamente fantástica.
Algo que dificilmente escaparia aos gays da época e, no decorrer das décadas, foi amplamente discutido, ajudando, inclusive, a moldar aquilo que chamamos de expressão da “sensibilidade gay” na produção artística, como destacado por Michael Hattersley, em um artigo publicado no “Gay and Lesbian Review”, em novembro de 2015.
“(…) O “Retrato de Dorian Gray” tinha prefigurado tudo isso e dado o tom para a literatura gay durante grande parte do século seguinte (…). Por outro lado, como o primeiro homossexual público desde os tempos clássicos, ele deu ao mundo uma forma de ser abertamente gay. Ele legou o que se chamaria uma “sensibilidade gay”, ou “camp” para a cultura mais ampla. Numa época de tensões de classe reprimidas e de alienação individual, sua genialidade foi saber que nada era mais saudável do que rir-se da hipocrisia. Nos seus últimos dias, ele contou ao seu velho amigo George Ives: ‘Não tenho dúvidas de que venceremos, mas o caminho é longo, e vermelho com monstruosos martírios’. Aqui, como em outros assuntos, Wilde revelar-se-ia profético.”, escreveu Hatterley.
“Salomé”: desafiando o fundamentalismo e despertando os sentidos
Já “Salomé” foi escrita em Paris, em 1891, e a ideia era que fosse estrelada por Sarah Bernhardt, grande amiga de Wilde e a mais famosa atriz de sua época. Contudo, assim que o texto foi publicado na Inglaterra, a censura vetou sua encenação, argumentando que Wilde havia passado dos limites em sua versão do episódio bíblico em que a jovem filha de Herodias pede que seu padrasto Herodes Antipas lhe entregue a cabeça de Jokanann (João Batista) numa bandeja de prata, depois de uma sensual apresentação da Dança dos Sete Véus.
Wilde até tentou argumentar que não havia nada de herético ou que fugisse ao texto bíblico na peça e lutou furiosamente contra a censura. A imprensa, por sua vez, não deixava de citar o caráter duvidoso da fé do “irlandês” (ou seja, católico) e publicizar um de seus aforismo, inserido no conto “O crime do Lorde Arthur Saville” (1891): “Não quero ir para o céu. Não tenho nenhum amigo lá”.
E o fato de que somente em 1931 a peça tenha recebido uma primeira encenação em Londres dá a medida do quanto os conservadores ficaram furiosos. E não é de se acreditar que o escritor não esperasse isto. Afinal, sem ser explícito, o texto e sua proposta cenográfica são mergulhados em sensualidade e erotismo (o que, diga-se de passagem, é evidente no próprio episódio bíblico).
Em temos criativos, como já foi discutido por teóricos do Teatro, isso brota fundamentalmente da forma genial e instigante que Wilde lidou com sentidos do tato, paladar, olfato, audição e, particularmente, do olhar. Algo cujo objetivo foi registrado por Robbie Ross: “Wilde costumava dizer que ‘Salomé’ era um espelho em que cada um podia se ver refletido: o artista, a arte; o tolo, a tolice; o vulgar, a vulgaridade”.
Por exemplo, ao ver Jokannan em sua cela, o monólogo de Salomé percorre, lentamente, seu corpo, descrevendo-o como frases vívidas e metáforas cheias de duplos sentidos: teus olhos “parecem cavernas negras, habitadas por dragões”; “teu corpo é branco como o lírio de um prado que o ceifeiro jamais ceifou”; “teus cabelos parecem cachos de uva, cachos de uvas negras que pendem das vinhas”; “a tua boca é como uma fita de escarlate sobre uma torre de marfim, é como uma romã cortada por uma faca de marfim”.
Contudo, até hoje, uma cena conhecida como “clímax” é particularmente impactante ao combinar um texto pra lá de ousado com um recurso cenográfico destinado a “desconcertar” o espectador, já é que na completa escuridão que ecoa a seguinte fala de Salomé, logo após receber a cabeça decepada: “Ah! Beijei a tua boca, Jokanaan, beijei a tua boca. Havia um gosto amargo em teus lábios. Seria o gosto de sangue?… Não, provavelmente fosse o gosto do amor… Dizem que o amor possui um gosto amargo. Mas o que isso importa? O que isso importa? Beijei tua boca, Jokanaan, beijei tua boca”.
Não por acaso, no decorrer das décadas posteriores, tanto “Dorian Gray” quanto “Salomé” ganharam releituras nos palcos, na TV e no cinema que exploraram o que estava implícito neles de forma mais sintonizada com os avanços e conquistas sociais.
Particularmente no que se refere a “Salomé” vale destacar dois exemplos. Em “Wilde Salomé”, dirigida por Al Pacino, em 2011, documentário e ficção se misturam nos bastidores da montagem da peça. Já “A última dança de Salomé” (Ken Russell, 1988) é deliciosamente criativo, explicitamente LGBTI e extremamente provocador ao basear sua narrativa numa suposta noitada de Wilde e Bosie num bordel londrino, em 1892, onde a peça censurada é encenada pelos prostitutos e freqüentadores do local.
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