Cultura

Oscar Wilde seu legado e impacto sobre o movimento LGBTI e, também, os socialistas

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

30 de novembro de 2022
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Neste último artigo, destacamos como o criminoso processo movido contra Oscar Wilde e sua prisão tiveram um efeito paradoxal. Para além de martírio do dramaturgo, o escândalo provocou um verdadeiro êxodo de gays do Reino Unido; mas, também, contribuiu muitíssimo na luta por direitos LGBTIs, já que se tornou um dos casos mais famosos do final do século; foi alvo de uma campanha mundial em sua defesa e, literalmente, impulsionou do já mencionado Comitê Científico Humanitário, a primeira entidade abertamente LGBTI, em 1897.

Além disso, a publicação de dois artigos em defesa de Wilde no órgão oficial da II Internacional, o jornal “Novos tempos”, assinados pelo dirigente da social-democracia alemão Eduard Bernstein (1850-1932), se transformaram em um marco importantíssimo para o necessário debate entre nós sobre como defender a vida e os direitos das LGBTIs numa perspectiva revolucionária.

Um martírio que fortaleceu a identidade e o movimento LGBTI

A exposição mundial dada ao processo teve um impacto concreto na vida de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais de todos os setores sociais e cantos do planeta. Comentando a prisão de Oscar Wilde, no livro “Sexualidade e Socialismo” (Haymarket Books, 2009), a ativista LGBTI e trotskista Sherry Wolf destacou que “jornais ao redor do mundo foram tomados por descrições sensacionalistas de uma forma de sexualidade que, até então, poucos sequer conheciam”, algo que, contraditoriamente, contribuiu de forma definitiva para que se moldasse o que, hoje, chamamos de “identidade gay” (depois, estendida aos demais setores não-heterossexuais, com o avançar das lutas específicas de cada um deles):

“O julgamento ajudou a definir os homens gays, na consciência popular, como estetas afeminados, mas, também, elevou a consciência dentre homossexuais latentes [enrustidos] sobre a existência de outros como eles. Os relatos nos jornais londrinos permitiram que se descobrisse onde se deveria ir para achar homens desejosos de ter sexo com outros homens” (p. 42), destaca Wolf.

Como já mencionado nos artigos anteriores, para além deste efeito mais subjetivo, o episódio foi determinante para a fundação, em Berlin, em 1897 (ou seja, enquanto Wilde continuava preso), do Comitê Científico Humanitário, a primeira entidade reconhecidamente LGBTI, dirigida por Magnus Hirschfeld que, inclusive, fez o discurso de Wilde ecoar em um dos primeiros filmes realizados sobre a questão homossexual, “Diverso dos outros” (1919), produzido pelo Comitê.

Aliás, as histórias do Comitê e seu fundador podem conhecidas em dois bons filmes: “Parágrafo 175”, um documentário dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, em 2000; e “O Eisenstein do sexo”, cinebiografia de Magnus Hirschfeld, dirigida por Rosa von Praunheim, e cujo título é uma referência a como o fundador do Comitê foi chamado pela imprensa norte-americana, em 1931.

O correto posicionamento dos socialistas nos primórdios da luta LGBTI

Particularmente em relação ao movimento socialista, então organizado sob a ainda não-reformistas Social-Democracia e Segunda Internacional, o calvário de Wilde repercutiu em dois importantes artigos de Bernstein, mencionados acima e publicados em abril e maio de 1895.

Apesar de abordarem temas distintos, os dois artigos fazem uma apaixonada defesa do escritor e, tão importante quando, tentam construir uma abordagem materialista para a defesa de que homossexuais possam viver em paz e terem direitos. E, ainda, chamavam a atenção dos socialistas para largarem seus preconceitos e contribuírem para esta luta.

Uma abordagem que, mesmo ultrapassada para os dias de hoje, é importante ser resgatada em alguns aspectos que ainda são princípios para os revolucionários, como a defesa incondicional da liberdade sexual, a denúncia e oposição às ideologias opressivas e conservadoras, a diferenciação com os projetos burgueses e, ainda, a utilização de uma metodologia materialista (ou seja, baseada na dinâmica da História e suas bases materiais) para analisar os temas da realidade e construir propostas para superar as barreiras do capitalismo também no que se refere à sexualidade.

Partindo da denúncia de que apontar a não-heterossexualidade como algo antinatural é o principal argumento utilizado pela burguesia, os reacionários e conservadores – algo que, lembremos, está extremamente em voga na atualidade –, Bernstein fez uma interessante discussão sobre as questões mencionadas acima, mesmo que possa parecer “menor” ou até mesmo equivocada para o atual estágio de elaboração sobre o tema.

Em primeiro lugar, ele propôs que as relações sexuais que não se enquadravam nos padrões heterossexuais (e/ou visavam à procriação, única finalidade do sexo na cabeça da elite da época), no máximo, poderiam ser consideradas a “não norma” (em relação, obviamente, à “normalidade” socialmente aceita), termo que, no debate proposto, não pode ser confundido com “anormal”, mas, sim, como uma forma de deslocar a discussão do campo em que havia sido aprisionado pela burguesia e muitos dos estudos que estavam sendo realizados: o daquilo que inerente à “natureza humana” e, portanto, inalterável.

Dizer que a não-heterossexualidade era “antinatural” se desdobrava (e, ainda, se desdobra) em múltiplas formas de ataque. Primeiro, porque seria uma “aberração”, uma “perversão” ou uma corrupção da “natureza humana” (e, para os fundamentalistas cristãos, por tabela, da vontade do deus que criou tudo e todos na natureza) e, portanto, não só inaceitável, mas também inconcebível.

Segundo, porque, ao violarem a “ordem natural” das coisas, seus praticantes deveriam ou ser “corrigidos”, seja através das recorrentes práticas da lobotomia (retirada total ou parcial dos lóbulos cerebrais) e internações psiquiátricas; ou simplesmente “eliminados da natureza”, fosse pelo aprisionamento ou pela execução.

Ao deslocar a discussão para o campo da “norma”, Berstein propôs algo completamente diferente e bastante revolucionário para a época, já que, aí, o debate sobre as formas como as pessoas procuram a satisfação da afetividade e do prazer sexual (que, vale ressaltar, Bernstein enfatiza que é um direito completamente independente da procriação) é colocado no campo da moral (não do moralismo, mas da própria ciência que estuda os valores, costumes etc.) e, portanto, da historicidade.

Em outras palavras, como ele escreve, conceitos como “normalidade” e “não-normalidade” são “pontos de vistas morais” e “manifestações históricas” e, portanto, são determinados e condicionados por aquilo que é considerado “normal” ou “não-normal” em “em um dado estágio do desenvolvimento social”. O que faz como que, consequentemente, possam (e devam) ser completamente alterados na medida em que as bases deste desenvolvimento são modificadas.

A luta contra os preconceitos também é uma tarefa socialista

Parágrafo 175

E, se isto está correto, os socialistas, cuja razão de ser é revolucionar as bases do desenvolvimento social (e, a partir daí, todas demais esferas da experiência humana), não podem se calar diante de coisas como o mencionado Parágrafo 175, muito menos em relação à condenação de Oscar Wilde. Por isso, o artigo também tinha a importantíssima finalidade de chamar a atenção dos membros da II Internacional para que rompessem com quaisquer preconceitos que tivessem em relação aos homossexuais.

“(…) A Alemanha é um dos poucos países que puni a mesma ofensa de que Wilde é acusado. No que concerne à hipocrisia moral, ela não deve muito para a Inglaterra. Mas, para não desviar do assunto: existem ainda grandes diferenças de opinião, inclusive dentro do movimento social-democrata alemão, quanto à posição que a sociedade deveria adotar em relação às práticas sexuais que não se inserem no âmbito do que é considerado normal. Por mais que o partido se esforce para julgar outras questões da vida pública de uma maneira científica e não preconceituosa, quando as questões da sexualidade entram em pauta, contudo, há poucos sinais de uma tentativa semelhante para construir e manter um ponto de vista firme, moderno e cientificamente fundamentado. Há mais pré-julgamento do que julgamento (…)”, escreveu Bernstein, destacando ele próprio os termos negritados.

Na sequência, o dirigente socialista, mesmo separando, de forma equivocada, a “luta econômica e política” dos socialistas deste “lado da vida social”, destaca, corretamente, que as questões da sexualidade não podem ser consideradas irrelevantes, fazendo um chamado para que o tema seja encarado de forma científica e se transforme em ações concretas: “(…) É necessário descartar julgamentos baseados em conceitos morais mais ou menos arbitrários, substituindo-os por um ponto de vista derivado da experiência científica. O Partido é hoje suficientemente forte para influenciar a forma das leis estatais, os seus oradores e a sua imprensa influenciam tanto a opinião pública como os seus membros e os seus contatos. Assim, o Partido já tem certa responsabilidade pelo que acontece hoje em dia (…)”

Vale dizer que os esforços de Bernstein surtiram algum efeito já na época. Socialistas de vários países não só se integraram na campanha em defesa de Wilde, como também, anos depois, em 1898, o então dirigente do Partido Social Democrata Alemão (SPD) August Bebel foi o primeiro político, em qualquer lugar do mundo, a tomar a palavra num Parlamento para fazer uma defesa dos direitos homossexuais, fazendo um enfático protesto contra o Parágrafo 175 e exigindo sua derrubada.

Acima de tudo, mesmo que a Segunda Internacional tenha sido perdida para revolução anos depois, com uma série de capitulações à burguesia, que culminaram no apoio aos seus governos nacionais na I Guerra, não há como negar que estes posicionamentos foram fundamentais para que os bolcheviques, anos mais tarde, adotassem as políticas mais avançadas que se conhecem em relação aos direitos LGBTIs.

Uma tradição que nós, do PSTU, nos orgulhamos de levar adiante, inclusive atualizando as contribuições daqueles e daquelas que vieram antes de nós, como fizemos, em 2019, através de um ciclo de seminários, nacional e regional, com o tema “Marxismo e Opressões”.

Leia o artigo (https://www.pstu.org.br/pstu-realiza-seminario-marxismo-e-opressoes-em-todo-o-pais/) e conheça da nossa abordagem sobre o tema, que parte de uma constatação fundamental que Marx fez em “O capital” (falando particularmente de negros e negras, mas extensivo a todos os setores), escrito em 1867: ninguém pode ser livre oprimindo outros ou, ainda, enquanto a opressão existir.

E isto só pode ser conquistado, de forma permanente e ampla, com a conquista do poder; o que não invalida, como Bernstein dizia, que lutemos no aqui e agora. Com uma importante diferença no que se refere à trajetória posterior do socialista alemão: para tal é fundamental a independência de classes. Mas, isto é outra história. Voltemos a Wilde.

Um esteta com “alma” imortal de artista e, também, socialista

Lembrando o que foi dito sobre o Esteticismo no início desta série de artigos e o caráter individualista e alienado do movimento, é evidente que o subtítulo acima pareça uma contradição. Contudo, acredito que quem chegou até aqui deva ter percebido que “contradições” marcaram a vida de Wilde e sua obra. E, geralmente, não de forma tão negativa quanto àquelas que fizeram que ele não evitasse o fim que teve.

Na verdade, foram contradições e incoerências, pro bem ou pro mal, que contribuíram para que Wilde traçasse uma trajetória pessoal inigualável e uma obra, inquestionavelmente, única. E, além disso, esta mencionada no subtítulo não é de toda contraditória, já que, a sua maneira, Oscar Wilde, foi, sim, um socialista, como deixou registrado em um longo artigo, transformado em livro, em 1891, com o título “A alma do homem sob o socialismo”.

O texto não é nenhum tratado político, muito menos tentem procurar nele alguma grande contribuição para a teoria marxista. E “apenas” um belo texto de um artista cuja sensibilidade o levou à compreensão de que a lógica do capitalismo é incompatível com o desenvolvimento humano e muito mais ainda com algo que lhe era particularmente caro: a criação artística, “confundida”, o tempo todo, com a liberdade individual.

De qualquer forma, é preciso dizer que Wilde parte de um princípio inquestionavelmente socialista: a constatação de que o principal obstáculo para a plena realização do ser humano é a existência da propriedade privada e o controle dos destinos da humanidade colocado nas mãos de uns poucos endinheirados, algo que aparece logo no primeiro parágrafo do texto: “A vantagem principal da consolidação do Socialismo está, sem dúvida, no fato de que ele poderia nos livrar dessa imposição sórdida de viver para outrem, que nas condições atuais pesa de forma implacável sobre quase todos. Com efeito, dificilmente alguém consegue escapar (…).”

É verdade que o “manifesto” de Wilde está cheio de análises históricas e políticas equivocadas, como também é confusa a forma como ele defende o exercício da individualidade, apesar de que, muitas vezes, isto coincide com outro princípio do socialismo revolucionário, principalmente quando discute que somente quando “cada membro da sociedade tiver o suficiente para suprir suas necessidades” é que todo mundo poderá desenvolver suas potencialidades individuais.

Algo que ele desenvolve no decorrer do texto, afirmando que a aquilo que ele chama de “individualismo pleno” depende da satisfação das necessidades básicas da humanidade, coletivamente, já que é a existência da propriedade privada que impõe as péssimas condições de vida, as doenças e a fome, o desemprego e a miséria, e tudo mais que confisca a humanidade dos seres humanos

E, aliás, jamais se poderá dizer que este tipo de preocupação seja incongruente com a trajetória de Wilde. E não só pelo que foi exposto no decorrer dos artigos. Wilde, por exemplo, era um ardente defensor do nacionalismo e republicanismo irlandês, se posicionou a favor do voto feminino muito antes de maioria dos homens de sua época e foi um dos poucos escritores que assinou uma petição internacional em defesa da libertação dos anarquistas (posteriormente executados) que haviam promovido os protestos, em 1866, em Chicago, que estão na raiz do “1º de maio”.

Como morreu apenas aos 46 anos, no exato momento em que todos os debates sobre o socialismo se intensificavam e as primeiras verdadeiras experiências revolucionárias ainda estava por vir, nunca saberemos para onde essas ideias poderiam ter evoluído.

Orgulho de lutar pra libertar aqueles e aquelas que ousam dizer o nome de seu amor

Mas, a História não é feita por “ses”, e a questão não é discutir o que Wilde poderia ter se tornado se não tivesse sido vitimado pela opressão e preconceitos de sua época. Na verdade, mesmo dentro de sua breve vida e curtíssimo período de produção, ele já fez História. Já nos deixou um legado que, até hoje, é relevante, além de adorável.

Evidentemente, temos que continuar lamentando e denunciando aquilo que foi, de fato, um assassinato provocado pelo Estado. Aliás, em 1960, um dos seus filhos, Vyvyan Holland (o outro, Cyril, morreu super jovem, lutando na I Guerra, em 1915), escreveu uma biografia em homenagem ao pai, onde lembra que “a tragédia de Oscar Wilde figura entre a maioria das outras grandes tragédias históricas, que são geralmente causadas pela estupidez de gente pomposa e arrogante”, apontando diretamente para o juiz que condenou seu pai.

Algo com o que há de se concorda. Mas, somente em parte. É inegável que estupidez e arrogância estiveram por trás da tragédia. Mas não de forma isolada. Foi a estupidez de um Estado, a arrogância de uma classe social que, no final dos 1800, acentuou a prática de criar ideologias para oprimir ainda mais aqueles e aquelas que não eram seus pares no exercício e monopólio do poder, baseados num conceito de “civilização” que tinha a si próprios (homens brancos, héteros, cisgêneros – com gênero definido pelo sexo, no nascimento – cristãos, ricos etc.).

Uma verdade que, diga-se, de passagem, o próprio Reino Unido teve que reconhecer (se forma hipócrita e por pura pressão das lutas, obviamente) quase 120 anos depois da morte de Wilde, quando, em 2017, depois de uma série de protestos do movimento LGBTI e seus aliados, seu nome figurou dentre os cerca de 50 mil homens que receberam o “Perdão Real” por terem tido suas vidas destruídas pelo mesmo artigo que levou o escritor à prisão e à morte precoce.

A lei que possibilitou isto, aliás, foi nomeada “Alan Turing”, outro que foi condenado (e acabou se suicidando) pelo mesmo artigo, apesar de suas inestimáveis contribuições para a humanidade (leia o artigo: https://www.pstu.org.br/alan-turing-heroi-da-humanidade-pai-da-computacao-e-vitima-da-crueldade-lgbtfobica/).

De nossa parte, apesar de todas as diferenças que possamos ter com Wilde, seu estilo artístico e, até mesmo, concepção de socialismo, o referenciaremos, sempre, com alguém que não só nos deixou um importante legado, mas que, também terá sua memória preservada sempre, principalmente se conseguirmos criar a sociedade com a qual ele sonhou em “A alma do homem sob o socialismo”:

“Socialismo, Comunismo, ou que nome se lhe dê, ao transformar a propriedade privada em bem público, e ao substituir a competição pela cooperação, há de restituir à sociedade sua condição própria de organismo inteiramente sadio, e há de assegurar o bem-estar material de cada um de seus membros. Devolverá, de fato, à Vida, sua base e seus meios naturais.”.

Um sociedade que, se depender de nós, do PSTU, devolverá ao ser humano não só o direito à igualdade, à plena liberdade e à verdadeira justiça, mas, também para que aqueles e aquelas que não se enquadram na heteronormatividade ou nos padrões de gênero impostos não só possam vivenciar o amor mas, também, gritá-lo em voz alta para todos os cantos, na vida e na Arte.