Nacional

Por que a PEC da Segurança de Lula é um ataque racista à periferia?

Israel Luz

18 de abril de 2025
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“Cordão da Mentira” em SP relembra mortos pela ditadura militar e pela PM Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Faz tempo que os governos capitalistas descobriram uma receita certeira para melhorar sua popularidade: encontre um alvo, transforme-o em inimigo nacional e una o país na guerra para derrotá-lo.

No Brasil, os burgueses sempre miraram o inimigo interno. É como diz a canção “Negro drama”, dos Racionais MC’s: “Desde o início, por ouro e prata / Olha quem morre, então / Veja você quem mata / Recebe o mérito a farda que pratica o mal / Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança, encaminhada no dia 8 de abril pelo governo Lula ao Congresso Nacional, não muda esse roteiro. Não é a primeira vez, neste mandato, que Lula aposta na militarização contra a classe trabalhadora. Em dezembro de 2023, ele assinou a Lei Orgânica das Policiais Militares e Corpos de Bombeiro.

Como veremos a seguir, no que depender do governo federal, o povo trabalhador que, simbolicamente, subiu a rampa, continuará, literalmente, descendo à cova.

Entenda o projeto

O que o governo planeja?

O objetivo declarado da proposta é definir o papel da União, ou governo federal, nas questões de segurança pública e defesa social, incluindo o sistema penitenciário.

A justificativa é a constatação de que houve uma mudança no perfil da criminalidade desde 1988, ano em que Constituição atual passou a valer. Hoje, as redes criminosas deixaram de ser locais e se coordenam entre os estados e com organizações de fora do país.

Para isso, propõe constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP); criar o Fundo Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e ampliar as funções da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Prevê, ainda, atribuir papel de polícia às guardas civis municipais, algo coerente com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro.

Debate antigo

O debate sobre a necessidade de coordenação nacional da segurança pública não é novo. A Lei do SUSP, por exemplo, é de 2018. Mas, desde os governos FHC (1995-2002), mudanças nesse sentido esbarram na falta de vontade política das próprias gestões federais e na resistência de políticos e corporações nos estados.

Governos estaduais

De fato, desde 2024, as polêmicas entre governo federal e governos estaduais têm como pano de fundo um debate sobre “quem manda em quê”. Os governadores, responsáveis pelas polícias militares e civis nos estados, temiam perder espaço na gestão da repressão.

Tanto é que, na versão atual da PEC, foram retirados os trechos que pudessem dar a entender qualquer coisa nesse sentido. Após negociações, hoje, somente Ronaldo Caiado (União), governador de Goiás, mantém oposição à proposta. Dado revelador é que entre os secretários de segurança dos estados, o que inclui gente como Guilherme Derrite, de São Paulo, há um consenso em torno da PEC.

Mais ostensividade e violência

Sobre o Fundo Nacional, a questão que se destaca é a da destinação dos recursos. Como a PEC mantém integralmente a estrutura das polícias brasileiras, é razoável pensar que possíveis incrementos nos investimentos serão no sentido de mais violência policial e encarceramento em massa.

Em relação ao papel da PF, a PEC formaliza o combate às milícias e organizações criminosas, com atuação interestadual e internacional e nos crimes ambientais, algo que não é novo. Amplia, ainda, as atribuições da PRF, transformando-a na Polícia Viária Federal, de caráter ostensivo e responsável, para além das estradas, pelo policiamento em portos e ferrovias, ficando também disponível para auxiliar a PM e a Civil nos estados.

Sobre esse último ponto, em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, em 11 e janeiro passado, Adilson Paes (especialista em direitos humanos e autor de “Guardião da cidade: reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares”) e Gabriel Feltran (pesquisador sobre violência nas periferias e professor no Instituto de Estudos Políticos de Paris) observavam, com razão, que a ênfase na ostensividade vem de mãos dadas com a militarização de uma força que, até pouco tempo atrás, se mostrou profundamente bolsonarizada e esteve envolvida em casos como o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, na câmara de gás improvisada no porta-malas de uma viatura.

Por fim, a proposição na PEC de criar ouvidorias e corregedorias autônomas em relação às polícias poderia representar um avanço no controle público das forças. No entanto, mesmo onde existem e chegam a ter papel relevante, os limites de atuação destes órgãos estão dados pelo poder real de governadores, dispostos trocar vidas por votos.

Raízes da Crise

Segurança pública: uma estrutura falida

Já dissemos que a PEC não toca em questões estruturais. A exatamente o que estamos nos referindo?

O sistema policial brasileiro é caracterizado por ter duas polícias: uma que investiga, a Civil, e a outra que policia as ruas cotidianamente, a Militar. Esse arranjo, nascido na ditadura, fragmenta a atividade policial, tornando-a ineficaz até nas tarefas que a lei burguesa prevê. Assim, de um lado, a PM mata cada vez mais, sem aumentar a segurança, e, de outro, a Civil elucida só quatro em cada 10 homicídios, segundo dados de 2022 do Instituto Sou da Paz.

Mas não podemos dizer que, no geral, essas forças são ineficientes. Seu papel, especialmente no caso da PM, é impor um regime de medo permanente, não sobre os criminosos, mas sobre a população como um todo.

Só isso explica ações como a dos policiais que agrediram uma mulher grávida de oito meses no interior de São Paulo e executaram seu marido, quando ele tentou defendê-la. Só isso explica a morte de uma criança de quatro anos, em Santos (SP), pelas mãos de um soldado. Que risco à sociedade essas pessoas poderiam representar?

Outra característica estrutural é a corrupção das forças policiais. Do jogo do bicho às milícias e ao tráfico de drogas, são incontáveis os casos de participação de agentes públicos em atividades que supostamente deveriam combater. Sem falar nos serviços privados de proteção e na prática de formação de grupos de extermínio, que vem desde a década de 1960.

Falta de controle público

Isso nos leva à falta de controle público. Todas as vezes em que essa questão é levantada, representantes da cúpula das corporações se mostram contrários.

A autonomia das polícias anda de mãos dadas com a militarização: para convencer uma maioria de negros e negras a massacrarem seu próprio povo, a hierarquia, a disciplina e a lavagem cerebral são indispensáveis. Vale dizer que esse funcionamento de exército vai na contramão, inclusive, do que apontam pesquisas de opinião junto às camadas mais baixas da PM.

Encarceramento

Finalmente, intimamente ligado a isso tudo, está o superencarceramento. A despeito do senso comum, que aponta a impunidade como a regra no Brasil, ano após ano, só aumenta o número de pessoas presas, especialmente homens negros jovens, mas também um número cada vez maior de mulheres.

Fica a pergunta: Se a população carcerária é cada vez maior, como é possível continuar acreditando que se, simplesmente, prendermos mais gente, vamos resolver a questão da insegurança? Isso não tem lógica.

Aliás, é fato comprovado que as organizações capitalistas do crime levam uma grande vantagem com essa dinâmica, pois os presídios se tornam centros de recrutamento. O resultado é exatamente o inverso do discurso das autoridades e militares de alta patente.

Abuso e ilegalidade

Estado dos ricos dá seu recado

A PEC da Segurança tem uma importância estratégica para Lula: embora seus efeitos não devam ser imediatos, ela pode ser usada politicamente, como exemplo de iniciativa do governo no terreno que, hoje, mais preocupa a população. Com aprovação do governo em baixa, por um lado, e a extrema-direita já acostumada a usar a pauta para eleger seus candidatos, por outro, com esta medida, o PT está olhando para 2026.

Não é acidental que a proposta seja lançada no mesmo momento em que o STF retrocede na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) das Favelas, que previa medidas de proteção a moradores dessas regiões do Rio. Nem que prefeitos, em todo o país, se assanhem em criar polícias próprias, baseados na decisão do Supremo, e governadores (do PL ao PT) sigam firmes na rota do massacre popular.

O Estado burguês se mexe para mostrar “solidariedade” com a demanda por segurança. Só o que consegue, no entanto, é, mais uma vez, nos lembrar que como tudo, as palavras têm significados completamente diferentes para os poderosos e para nós.

E qual é o nosso recado?

Apesar dos relatos de violência policial e judicial do Estado serem chocantes, há um problema incontornável: ainda precisamos convencer a base dos nossos sindicatos, movimentos sociais, vizinhos, amigos, enfim, a classe trabalhadora, de que é urgente superar o atual modelo.

Embora os principais alvos sejam pessoas negras, indígenas e um crescente número de imigrantes (da África, América Latina e Caribe), persiste a ideia de que o Brasil é uma democracia racial. Assim, nossos irmãos de raça e classe não se veem como parte de uma coletividade atacada em seu conjunto: um ataque ao filho da minha vizinha ainda não é (para muitos) um ataque ao próprio filho.

Para avançar nestas tarefas é central amplificar as denúncias. Cada exemplo concreto tem o potencial insubstituível de gerar solidariedade entre os nossos. Há muitos movimentos gritando contra os abusos, em geral liderados por mulheres trabalhadoras e não-brancas.

Essa percepção também deve resultar em organização nas periferias e locais de trabalho. Tal reunião de forças é fundamental para ampliar nossa capacidade de ação e de nos protegermos.

Auto-organização coletiva e proteção

Enquanto não mudamos as atuais estruturas, vamos combinar de nos manter vivos? Para isso é fundamental criar grupos de zap da vizinhança, filmar abordagens violentas, sem se expor, juntar as pessoas para acompanhar enquadros ou baculejos abusivos, entre outras possibilidades de autodefesa.

Toda essa articulação deve pautar o que nenhum governo faz: a desmilitarização da segurança pública, não só da PM. É preciso desmontar toda a máquina de moer carne que vai da rua até os tribunais. Não faremos isso sem tirar das mãos dos poderosos as armas que, hoje, nos matam e a caneta que assina as leis que legitimam essa ordem racista e capitalista. Por nós, só nós.

Secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite Divulgação//SSP-SP

São Paulo

Campanha pela demissão de Derrite é lançada

Movimentos sociais começaram a articular o manifesto “Fora, Derrite! Tarcísio é inimigo do povo. Chega de racismo e mortes nas periferias de todo o Brasil!”. Entre os primeiros signatários estão movimentos como “Os 9 que perdemos” (de familiares de vítimas do Massacre em Paraisópolis), o Luta Popular, o Comitê Brasilândia Nossas Vidas Importam, familiares de vítimas de várias partes do Brasil, dentre outros. O lançamento está marcado para 26 de abril, às 16h, na sede nacional da CSP-Conlutas.

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