Por que Lula deveria escolher uma mulher negra para o STF

A discussão sobre a próxima indicação de Lula ao Supremo Tribunal Federal (STF) reacende um tema que ultrapassa a mera disputa institucional. O fato de o país com a maior população negra fora da África jamais ter tido uma mulher negra no mais alto tribunal é uma denúncia em si: a de que o racismo atravessa também as instituições da chamada “justiça”.
Em toda a história da mais alta corte do país, formada por 173 ministros desde 1822, apenas três mulheres foram indicadas — Ellen Gracie, Carmen Lúcia e Rosa Weber — e nenhuma delas era negra. Esse dado sintetiza a exclusão sistemática de mulheres e negros das instâncias decisórias do Estado. Trata-se de um racismo e de um machismo reproduzidos no próprio funcionamento das instituições que, em tese, deveriam garantir igualdade e justiça.
Há juristas negras plenamente capazes, técnica e politicamente, para ocupar o cargo. Nomes como Lívia Sant’Anna Vaz (promotora de Justiça da Bahia), Vera Lúcia Santana Araújo (advogada e ministra substituta do TSE), Karen Luise Vilanova (juíza no Rio Grande do Sul), Adriana Cruz (juíza federal no Rio de Janeiro) e Edilene Lôbo (ex-ministra substituta do TSE) são apenas alguns exemplos de mulheres negras com notório saber jurídico, reputação ilibada e trajetória marcada pela defesa dos direitos humanos e do combate ao racismo. Ou seja, não se trata de falta de nomes, mas de vontade política.
Uma justiça de classe — mas que expressa relações sociais
Nós, socialistas, não temos nenhuma ilusão na chamada “justiça burguesa”. O poder judiciário é uma instituição de classe. O STF não é neutro: é parte do Estado capitalista. As decisões da Corte, em sua maioria servem para garantir os interesses do capital e o regime político que o sustenta.
Foi o Supremo que manteve as privatizações, que atacou o direito de greve dos servidores, que protegeu bancos e grandes empresários. Quando se trata de defender a propriedade privada, os interesses do agronegócio ou dos ricos, o STF é célere; quando se trata de assegurar direitos do povo trabalhador, hesita, posterga ou julga contra.
Por isso, não depositamos confiança na nomeação de uma nova ministra como se isso fosse mudar o caráter do Judiciário. Mas é justamente por compreender o papel de classe da justiça que precisamos dizer que a ausência de mulheres negras no STF é também um retrato de como a própria dominação de classe se constrói no país: por meio da opressão racial e de gênero.
Representatividade não é política, mas representação é avanço social
Nós não defendemos a “política de representatividade” como substituto da luta de classes. Não basta ter uma mulher negra no poder se a política que ela defende é a mesma que oprime o povo. Mas isso não significa que a representação não importe. A presença de uma mulher negra numa corte dominada historicamente por homens brancos de elite é expressão de avanço social e político, resultado de séculos de luta das mulheres e do povo negro por reconhecimento, direitos e voz.
O símbolo é político. Num país em que as mulheres negras são maioria entre as vítimas de feminicídio, estão entre as mais pobres e precarizadas, e sub-representadas em todos os espaços de poder e decisão, ver uma delas no STF é romper uma lógica de exclusão.
É afirmar, para milhões, que o Estado brasileiro precisa refletir a cara do seu povo — não para mascarar as contradições, mas para denunciar o que foi negado até agora.
A disputa política dentro do governo
Lula, que já teve a oportunidade de corrigir esse desequilíbrio quando Rosa Weber se aposentou, escolheu na ocasião mais um homem branco para o STF. Agora, tem mais uma vez a chance de corrigir uma injustiça: indicar uma mulher negra não como favor, mas como reparação histórica. Não como gesto individual, mas como resposta às vozes que, há séculos, exigem igualdade e reconhecimento.
O argumento de que é preciso escolher alguém “de confiança” apenas reforça o caráter patrimonialista da política brasileira: o Supremo não pode ser extensão de um grupo político, mas tampouco pode continuar sendo território de uma elite branca masculina.
Sua escolha, portanto sinalizará até que ponto o governo está disposto a enfrentar as pressões dos setores mais conservadores ou se continuará reproduzindo a velha lógica de conchavos e acordos de bastidor.
Um gesto simbólico — e um campo de luta
Indicar uma mulher negra ao STF não muda o caráter de classe do Judiciário, mas pode abrir uma brecha para fortalecer o debate público sobre o racismo institucional, sobre o machismo que permeia as instituições, sobre o tipo de “mérito” que sempre serviu para excluir os mesmos de sempre.
Pode inspirar jovens juristas negras, estudantes de Direito, trabalhadoras, que enxergam, nesse gesto, um espelho possível. E pode dar visibilidade à luta cotidiana de milhares de mulheres que, nos bairros, nos sindicatos, nas escolas, enfrentam a violência e o preconceito. Por isso, não é uma pauta identitária isolada, mas parte da luta por uma sociedade que questione todas as formas de opressão e desigualdade.
O PSTU e o movimento socialista não alimentam ilusões nas instituições da democracia burguesa. Mas também não ignoramos as contradições vivas que nela se expressam. A escolha de uma mulher negra para o STF não vai transformar a justiça brasileira, mas pode marcar uma virada simbólica importante, expressando o acúmulo de lutas sociais e políticas travadas por mulheres negras no Brasil.
E que essa escolha sirva não para pacificar, mas para abrir caminho a novas lutas — por uma justiça realmente popular, que só será possível com o fim deste sistema de exploração e opressão.