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Por que milito num partido revolucionário?

Diego Cruz

22 de março de 2024
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Foto Sérgio Koei

Minha memória, confesso, não é lá das melhores. Tenho memória de barata. Já ouviu que barata tem uma memória tão curta que, depois que você dá um peteleco nela, ela corre e depois pára, porque se esqueceu do que estava correndo? Pois bem, mas uma das coisas que me lembro bem é de quando atuava no movimento estudantil, e como essa militância era vista pelos demais estudantes.

No período do início das aulas, nas “calouradas”, nós, do movimento, voltávamos bem antes do término das férias para organizar as atividades de recepção dos calouros. Isso causava um certo espanto em quem não era próximo do movimento. Isso sem falar nos períodos de mobilização por restaurante universitário, moradia e demais direitos estudantis, ocupações, em que entrávamos madrugadas adentro em assembleias e atividades diversas. 

Alguns estudantes viam aquele esforço com certa perplexidade e já cravavam: “vocês são pagos pelos partidos para fazerem isso”. Ainda mais que a grande maioria de nós do movimento morávamos numa das regiões mais pobres da cidade. Lembro que, numa dessas discussões, uma companheira da corrente O Trabalho respondeu com ironia: “quero meu dinheiro, então, porque ainda não caiu na conta”. Acredito que isso ocorra hoje também, e é bastante compreensível. É inconcebível, nessa sociedade que vivemos hoje, alguém despender algum esforço sem nenhuma perspectiva de um benefício imediato, principalmente pecuniário. É a ideologia neoliberal individualista incrustada em nossa forma de perceber o mundo e agir nele. Uma espécie de lei de Gerson capitalista.

Peço um pouco de paciência para fazer um relato que, penso, ajuda a explicar a escolha que fiz para a minha vida.

Comecei a militar no movimento secundarista, onde fiz o então Ensino Médio numa escola estadual sucateada por anos de governos tucanos. Naquele ambiente, minha percepção da desigualdade social aumentou ainda mais. Veja, morei até os 12 anos numa rua sem asfalto, num bairro de periferia que não era bem um exemplo de segurança. Com cinco anos, vi um homem da vizinhança esfaqueado pelo próprio pai, agonizando no esgoto a ceu aberto, em frente à minha própria casa. Também vi linchamentos, tiros, e tudo o mais o que compõem o cotidiano de uma periferia. 

Para mim, na época, aquela realidade era o normal. E não me vitimizo de nenhuma forma porque nunca passei fome ou qualquer dificuldade do tipo, única e exclusivamente por conta dos meus pais. Meu pai, metalúrgico, teve que se aposentar precocemente por invalidez e passou a fazer bicos de pedreiro no bairro. Minha mãe foi trabalhar na cozinha da Santa Casa da cidade, fez um supletivo, emendou num curso técnico e conseguiu virar auxiliar de enfermagem. Trabalhando à noite em dois empregos. De forma que, eu e meu irmão, fomos, de certa maneira, “blindados” daquela realidade, na medida do possível, às custas dos esforços, e da saúde, de nossos pais.

Na escola pública, porém, se eu não tivesse nunca questionado meu passado ou meu presente, comecei a pensar sobre o futuro. Por que os playboys tinham o direito de fazer um cursinho caro e entrar numa universidade, e a gente não? Ficávamos anos sem professores de física, por exemplo, ou química, matemática. Professores, e, principalmente professoras, muitas vezes com graves problemas psicológicos provocados por aquela situação massacrante. Enfim, fazer faculdade sequer era cogitado pela maioria dos alunos ali.

E aqui, sob o risco de cometer alguma injustiça, preciso citar dois professores que tiveram um papel simplesmente heroico naquele período. A saudosa professora de português e literatura Fátima Fernandes, e então dirigente do PSTU de Ribeirão Preto, e o professor Gilberto Pereira, de história, que foi o melhor professor que já tive na vida. Junto a outros docentes, formaram um grupo que oferecia aulas extras para o vestibular. Larguei o curso técnico que fazia na época e me integrei ao projeto.

Junto a isso, me aproximava do Grêmio da escola e de alguns militantes do PSTU, que me vendiam o Opinião Socialista. Já tendia a concordar com as denúncias que o partido fazia sobre o capitalismo, desigualdade e tudo o mais, mas compartilhava daquele senso comum de que o PSTU era muito “radical”, um tanto caricato, sem propostas, que era a visão que eu tinha fundamentalmente a partir dos poucos segundos que via na TV durante as campanhas eleitorais. Aos poucos, esses preconceitos foram se desvanecendo.

Atuava, então no Grêmio, mas hesitei por um tempo em entrar para o PSTU. Via os militantes discursando, liderando greves e manifestações, e eu não me achava capaz de fazer nada daquilo. Lembro de um diálogo que, para mim, foi definidor. “Olha, apoio vocês, mas eu não falo em público, não sirvo para militar”. Uma militante, então, me respondeu assim: “Conhece o Cláudio, né? Já ouviu a voz dele? Provavelmente não. Pois então, o Cláudio não discursa, mas cuida das finanças, organiza tudo, e não existiria partido sem isso”. Minha cabeça explodiu. Entendi que poderia ajudar, com minhas limitações, no que sabia e poderia fazer. Hoje o Cláudio mora perto da minha casa em São Paulo, e sempre que o vejo me lembro dessa história.

Minha admiração foi se estendendo a outros militantes, como o Wilson Honório que vocês provavelmente conhecem. Aliás, cobrem dele um relato sobre a sua história de vida. Wilson é um patrimônio, não só do PSTU, mas do movimento negro e LGBTI+, de uma inteligência aguçada e um conhecimento enciclopédico, não só sobre a luta contra as opressões, mas de cinema, arte, etc.

Cheguei em São Paulo bem jovem, já com a tarefa de compor a redação do Opinião Socialista, então dirigida pelo Eduardo Almeida. O Edu, quem conhece sabe, é ligado no 220V, 24h por dia. De uma capacidade política impressionante, é um cara que te ouve atentamente, mesmo você falando as maiores atrocidades do mundo. Muitas vezes, em reuniões, durante alguma “intervenção” minha, eu olhava o Edu, sempre atento, com a mão apoiada sobre o queixo, observando, e pensava “ele está ouvindo esse monte de abobrinha que estou falando”. 

A também dirigente Mariucha Fontana, por sua vez, é uma das pessoas mais inteligentes que já pude conviver. Obsessiva em compilar e precisar dados, em analisar de forma mais objetiva possível a realidade, preocupada em escutar, sobretudo os operários, e definir a melhor política para o momento. Tem um jeito “durão”, que pode intimidar as pessoas, mas é uma das pessoas mais sensíveis que existem. Ela provavelmente não vai gostar de ser citada aqui, mas essa é a minha coluna, não é?

O Ricardo, que você talvez não conheça, é uma espécie de bússola moral. Aqui entre nós, num duro momento de disputa e embate interno, decidi assinar um documento de debate quando vi seu nome ali entre os signatários. Assim como o Nelsinho, um militante mineirinho cuja dedicação e talento inato a gambiarras salvadoras são não menos que impressionantes. Uma inteligência prática ímpar. O saudoso Giba e a sua alegria contagiante. Poderia citar muitos outros valorosos militantes, como a Marta, a Rô, mas sempre sob o risco de ser injusto com tantos outros, como com os quais não tive a oportunidade de conhecer, inclusive de outras regiões.

Mas essa coluna não é para enaltecer as qualidades dos militantes. Mas, simplesmente, colocar a seguinte questão: por que pessoas tão capacitadas, com tanta potencialidade, que poderiam, muitas vezes, estar ocupando cargos de direção de alguma grande empresa, ou simplesmente estar cuidando da vida, dedicam a maior parte de seu tempo a militar. E militar aqui significa acordar cedo para panfletar em porta de fábrica, abdicar de grande parte do tempo com a família, com entretenimento ou tantos outros projetos pessoais?

E aqui me vem à mente uma fala que o Zé Maria sempre diz: nosso tempo de vida é tão curto nesse planeta, e não existe nada mais lindo que dedicá-lo a mudar essa realidade, acabar com toda a exploração e opressão, de forma a nos tornarmos seres humanos cada vez mais plenos.

E é impossível, por exemplo, não lembrar do meu pai, um sujeito de uma criatividade fora do normal, que poderia ter sido, talvez, um engenheiro, ou um arquiteto, mas que não pôde estudar e teve de se matar de trabalhar para sustentar a família. Ou de tantos colegas de infância que se perderam nas agruras desse sistema odiento.

Aliás, falando em Zé Maria, talvez muitos de vocês não saibam, mas lá nas eleições de 2002, no primeiro turno, ele era o candidato a presidente pelo PSTU, e aparecia com 1% nas pesquisas. Exatamente o que Lula precisava para consumar sua vitória logo na primeira volta. Ninguém menos que José Dirceu ligou para o Zé a fim de convencê-lo a desistir de sua candidatura, prometendo mundos e fundos. O partido, por óbvio, não aceitou, já que, naquele momento, o programa do PT já apontava para a conciliação com a burguesia e o imperialismo, e que era a nossa responsabilidade apresentar à classe trabalhadora uma alternativa socialista e revolucionária.

Imaginem o desperdício de, ao invés de um histórico dirigente operário revolucionário, termos um ministro, ou um secretário no primeiro escalão, quiçá um parlamentar, comprometido com um programa e um governo que se limitaria a administrar um capitalismo em crise, e inevitavelmente ajudar a impor ataques à classe trabalhadora, a retroceder a consciência da classe? 

E é aqui que muita gente não entende, como alguns dos estudantes lá da universidade. Qual a ambição maior? Acumular patrimônio, status e reconhecimento que, ao final, você não levará ao túmulo, ou ajudar a mudar esse mundo? Transformar essa realidade, para agora e para as futuras gerações? Para mim, a resposta é óbvia.

Dias desses, uma aguerrida ativista me disse o motivo pelo qual decidiu entrar na militância: “comecei a militar quando tive um filho, e quero que ele viva num mundo melhor”. Aquilo me impactou, porque sempre tentei ver o mundo e as coisas da forma mais objetiva possível, fora, ou acima, de uma questão meramente moral, por exemplo. Mas ali entendi que a famosa frase de Guevara, que “o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor”, tem, de certa forma, a sua verdade.

Resumindo, sou um revolucionário porque tenho uma ambição muito, mas muito maior que qualquer investidor em criptomoeda, ou um faria limer tentando juntar bilhões no mercado financeiro. Quero ajudar a mudar o mundo, com o pouco que posso, e as limitações que carrego, que não são poucas. Mas sabendo que, mesmo depois que eu morrer, esse pouco vai continuar reverberando na luta pela revolução socialista. Por isso que, quando algum camarada morre, dizemos sempre “presente”!

Sou revolucionário e sou do PSTU porque, depois de mais de 20 anos de militância, tenho a plena convicção de que é o partido mais coerente na luta pela revolução socialista neste país. Entre erros e acertos, talvez mais erros que acertos, sempre se manteve fiel à independência de classe, ao horizonte da revolução, ao combate ao oportunismo e ao reformismo em que, desgraçadamente, sucumbiram grande parte da antiga esquerda revolucionária. E que pagou um alto preço por isso, amargando períodos de profunda marginalidade, ataques diversos e uma estigmatização nada inocente entre a tal “vanguarda”. Isso com todos os defeitos que qualquer agrupamento humano carrega, inserido nessa sociedade capitalista, e que não atua sobre as nuvens, descolado da realidade e seus problemas.

Mas, também, confesso que tem um aspecto egoísta nessa escolha de vida. Depois de tantos anos, mesmo com tantos defeitos, sinto que sou uma pessoa melhor. Sinto orgulho de meu pai ser um operário, a classe responsável pela produção de todas as riquezas deste mundo, que vai estar à frente da revolução e instaurar um outro sistema, mais justo. Também a compreensão sobre a necessidade da luta contra o machismo, o racismo, a LGBTIfobia e toda forma de opressão, e como isso se relaciona com a questão de classe. Ter aprendido que as nacionalidades não nos dividem, que os palestinos massacrados em Gaza, ou os argentinos que lutam contra Milei, são nossos irmãos, e que temos o mesmo inimigo.

Ser revolucionário, por fim, me torna de certa forma mais humano, resistindo à desumanização e à degradação que a barbárie capitalista nos impõe diariamente.

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