Debates

Por que não ir às manifestações convocadas para 23 de março?

Zé Maria and Júlio Anselmo

6 de março de 2024
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Manifestação da Frente Povo Sem Medo Foto Tiago Macambira

A “Frente Brasil Popular” e a “Frente Povo Sem Medo” (compostas por organizações dirigidas pelo PT e PSOL, que fazem parte do campo político de apoio ao governo Lula/Alckmin) convocaram manifestações que, inicialmente, iriam ocorrer no dia 24 de março, tendo como mote a exigência da prisão de Bolsonaro. Depois que a direção do PT e o próprio Lula vetaram este tema, as organizações mudaram a data da atividade (para 23) e o mote passou a ser a “defesa da democracia”.

Se agregamos, aí, as últimas declarações de dirigentes do PT, apoiando o Supremo Tribunal Federal (STF), e a declaração de Lula, que diz que o golpe militar de 1964 e a ditadura que governou o país por 21 anos, são coisas do passado e devem ser esquecidas e deixadas para trás, fica perfeitamente nítido o caráter dessas manifestações: apoio ao governo Lula, usando como argumento a necessidade de enfrentar a ultradireita. Não por acaso, os organizadores das manifestações fazem questão que o Presidente da República esteja presente nos atos.

Combustível pra ultradireita

Veja, se formos tomar essa questão – o combate à ultradireita – somos obrigados a registrar que o governo Lula já nos deu inúmeras provas de que não se dispõe a fazê-lo. É o que salta aos olhos, por exemplo, em sua postura escandalosamente conciliadora em relação à cúpula militar das Forças Armadas (FFAA), depois da evidente participação desta na tentativa de golpe do “8J”, em 8 de janeiro de 2023, (seja ativa ou passivamente).

Algo confirmado por sua não menos escandalosa declaração sobre a ditadura que governou nosso país por 21 anos, numa demonstração impressionante de desrespeito pela memória daqueles e daquelas que lutaram contra o regime e às famílias dos mortos e desaparecidos.

Mas há outro aspecto que precisa ser destacado, aqui, talvez ainda mais importante: o governo Lula segue aplicando ao país um modelo econômico que ataca direitos e interesses dos trabalhadores e trabalhadoras, para beneficiar os mesmos banqueiros e grandes empresários da indústria e do agronegócio que foram beneficiados pelo governo Bolsonaro. Todos sabemos que isso vai gerar desagaste e servir como alimento político à ultradireita bolsonarista junto à população.

Nos episódios do “8J”, o país sofreu uma tentativa de golpe de Estado que, caso se consumasse, levaria a um retrocesso do regime político vigente, com a implantação de uma ditadura, abolindo as já escassas liberdades democráticas que temos no país. Naquele momento, foi absolutamente certo chamar à mobilização dos trabalhadores para defender a democracia, pois tratava-se de evitar um retrocesso que atingiria especialmente a nossa classe.

Que “democracia” é essa?

A situação atual não tem nada a ver com isso. Bolsonaro e o bolsonarismo estão acuados, com o ex-presidente correndo risco de ser preso. Não há nenhuma tentativa de golpe, nem ameaça imediata nesse sentido. E enfrentar a ameaça que a ultradireita representa a longo prazo é, exatamente, tudo que o governo, que essa manifestação pretende apoiar, não faz. Diante disto, restam uma série de perguntas aos organizadores dessas manifestações.

Quais seriam os motivos pelos quais os trabalhadores deveriam ir às ruas para defender essa “democracia” que temos em nosso país? Devemos tomar as ruas pelos milhares de jovens negros que são chacinados nas periferias dos grandes centros urbanos de nossos país, todos os anos, pela polícia dessa “democracia”? Devemos ir às ruas pela continuidade do genocídio dos povos indígenas que essa “democracia” segue patrocinando, ano após ano?

Ou iremos marchar saudando a desigualdade social abismal a que esta “democracia” condena a população, num sistema que, quanto mais rico, mais pobreza e violência impõe à maioria da população? Ou iremos às ruas pelo racismo que nela perdura contra negros e negras, o machismo e a misoginia contra as mulheres e os crimes contra as pessoas LGBTI+? Ou, ainda, marcharemos pela repressão às lutas dos trabalhadores, dos sem-terra, dos sem-teto?

Sequer a reivindicação de que não haja anistia para os golpistas se pode levantar de forma séria defendendo um governo que prega o esquecimento dos crimes de um ditadura militar que matou milhares de brasileiros e cujos chefes continuam, todos, absolutamente todos, impunes.

Descomemoração

Lutar contra os crimes da ditadura para que não mais aconteçam. Prisão para todos os golpistas do 8J!

Manifestação em São José dos Campos em resposta ao 8J foto Sindmetal/SJC

Sim, os trabalhadores e trabalhadoras precisam ir às ruas. Mas, para exigir punição aos crimes e criminosos da ditadura e punição aos crimes e criminosos da tentativa de golpe do 8J. E isso começa por denunciar declarações como essa do Presidente da República e por exigir do governo medidas sérias e imediatas para – naquilo que está sob sua responsabilidade – punir esses criminosos.

Exonerar e processar toda a cúpula das FFAAs está sob sua responsabilidade. Assim como adotar iniciativas para revogar o artigo 142 da Constituição (no qual os golpistas têm se apoiado, para tentar vender a ideia de que as FFAA podem exercer um “poder moderador”) e para desmontar o aparato militar repressivo que segue praticamente intacto no país.

Também é preciso denunciar o apoio do governo à aprovação da nova Lei Orgânica das Polícias Militares, que vai agravar, ainda mais, o papel nefasto dessas polícias em nosso país, e exigir a desmilitarização das PMs e da Segurança Pública. Essas demandas precisam estar presentes nas atividades de descomemoração do aniversário do golpe de 1964, que completará 60 anos em 2024. Nestas, sim, estaremos presentes.

Não faltam motivos para tomarmos as ruas

E trabalhadores e trabalhadoras precisam ir às ruas não apenas por estas razões. Estão, aí, os elementos de continuidade de uma política econômica – cujos parâmetros fundamentais foram dados pelo Arcabouço Fiscal, proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso Nacional.

As consequências? A impossibilidade de se investir em políticas públicas, como saúde, educação, moradia, saneamento básico etc., algo que seria necessário (e possível, dado o volume de recursos que o país tem), para melhorar a vida do povo; o reajuste-zero para o funcionalismo público federal; a continuidade das privatizações através das Parcerias Público-Privadas (PPPs); o escandaloso projeto de lei elaborado pelo governo que “regulamenta” a situação de trabalhadores de aplicativo, mas, que, se estendida  simplesmente acaba com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); e um longo etcétera.

Tudo isso para alocar quase metade do orçamento do país para encher os cofres de banqueiros e para assegurar benefícios e lucros ainda maiores para as grandes corporações econômicas, da indústria ao agronegócio, passando pelos serviços. Ou seja: para que os ricos fiquem cada vez mais ricos, esse modelo condena os pobres a estarem cada vez mais pobres.

Também contra isso os trabalhadores precisam ir às ruas. É preciso cobrar das organizações da classe trabalhadora, das grandes centrais sindicais deste país, uma atitude frente a essa situação. Em pouco mais de um mês, estaremos no “1º de Maio”. Qual vai ser a marca das atividades promovidas para lembrar o dia internacional de luta da classe trabalhadora? Atos políticos de apoio ao governo Lula, como as grandes centrais sindicais organizaram no ano passado? Ou teremos manifestações que preservem a independência política da classe e que sejam momentos de luta, de denúncia das mazelas que são impostas à nossa classe por esse governo e pelo sistema capitalista, de exigência para o atendimento das demandas da nossa classe?

Enterrar a ultradireita

Para derrotar o bolsonarismo é preciso enfrentar a burguesia e o capitalismo

Ao governar com e para a burguesia, o governo Lula seguirá alimentando o capitalismo e os setores burgueses que dão base para o bolsonarismo, além de, ali na frente, poder perder o apoio que ainda tem de parte importante dos trabalhadores, dando mais espaço para um retorno do próprio Bolsonaro ou algum outro representante da ultradireita.

Somente os trabalhadores podem levar a luta contra o bolsonarismo até o fim. O que significa mobilizar os locais de trabalho, de estudo e moradia contra qualquer tipo de golpismo da ultradireita. Mas, também, combinar isso com a luta por melhores condições de vida e contra os ataques do governo Lula.

Manter-se politicamente independente dos dois blocos burgueses diferentes que se enfrentam, construindo uma oposição de esquerda ao governo Lula e também uma dura luta contra a oposição de ultradireita, é o caminho para construir uma alternativa política para os trabalhadores que derrote, de uma vez por todas, a ultradireita, o capitalismo e todos os responsáveis pelas mazelas sociais que afligem o nosso povo.

A luta dos trabalhadores e trabalhadoras neste caminho torna possível não apenas derrotar as ameaças autoritárias como, de fato, responder aos problemas estruturais do país, possibilitando, inclusive, a substituição dessa democracia dos ricos por um regime de verdadeira democracia operária, sustentada pelo poder dos trabalhadores, construída com suas organizações democráticas e sob os escombros do poder dos capitalistas.

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Para ter educação, salários dignos e emprego decente para os trabalhadores, precisamos enfrentar os bilionários capitalistas