Meio ambiente

Raça, gênero e classe na luta pela justiça ambiental (Parte II)

Na parte I deste artigo sobre as dimensões de gênero, raça e classe da luta ambiental, apontamos como as mudanças climáticas afetam de forma diferente aos sectores mais pobres e mais oprimidos e aos países periféricos. Com base nestes fatos, algumas organizações políticas e sociais têm afirmado que a perspectiva de gênero deve ser incorporada nas políticas contra as mudanças climáticas, o que é totalmente verdade. Para isso, pedem a colocação de mais mulheres nos órgãos de gestão internacionais dos grandes acordos sobre mudanças climáticas – onde os homens ocupam atualmente 80% dos cargos de responsabilidade –, como ocorre nos conselhos de administração das grandes empresas energéticas que, na verdade, são extremamente “masculinizados”.

Laura Requena and Erika Andreassy

25 de dezembro de 2023
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mulheres meio ambiente

A organização She Changes Climate organizou, na COP28, um debate online (bastante polêmico) entre a ex-presidente da Irlanda e enviada especial da ONU para o clima, Mary Robinson, e o magnata do petróleo que preside a cúpula do clima, Sultão Ahmed Al. Jaber. No seu website lemos que: “A crise climática afeta-nos a todos a cada minuto de cada dia, mas as perspectivas e decisões sobre como enfrentá-la foram tomadas principalmente por homens. As mulheres continuam sendo marginalizadas da esfera política devido a estereótipos de gênero, falta de acesso e barreiras socioeconómicas e estruturais. Segundo a ONU Mulheres, mais de 150 países ainda possuem leis que discriminam as mulheres.”

Partindo de fatos absolutamente corretos e com base no fato de que na COP27 as mulheres representavam apenas 35% dos delegados e 20% dos chefes de delegações, estas organizações apresentam-se como uma alternativa para salvar o meio ambiente, colocando mais mulheres em posições de liderança.

Acreditamos que é essencial incorporar a perspectiva de gênero (bem como raça e classe) nos debates sobre o meio ambiente e concordamos que as mulheres trabalhadoras participem ativa e massivamente nestes debates; além de defender a igualdade de oportunidades, inclusive para que possam acessar cargos de liderança. Mas acreditar que as mulheres (genericamente falando) podem mudar o clima, ou que uma maior participação feminina (burguesa) em organizações internacionais (também burguesas) de gestão de acordos climáticos e/ou na administração de empresas capitalistas de energia, vai para salvar o ambiente, é muita ingenuidade

Por que “empoderar” as mulheres não vai libertar as mulheres trabalhadoras nem salvar o planeta

Basta olhar para a realidade para comprovar que as coisas são muito mais complexas do que o que estas organizações propõem. Em primeiro lugar, dizer que o objetivo de ter cada vez mais mulheres (burguesas) ocupando cargos de gestão como forma de acabar com a desigualdade de gênero tem sido proposto há anos por organizações internacionais (burguesas) como a ONU, sem que realmente se concretize. As mulheres continuam a ser a exceção nesses cargos. Mas o que é ainda mais contundente é que a vida de quem mais sofrem com a desigualdade e a opressão, as mulheres trabalhadoras e pobres, do campo e da cidade, que por sua condição de classe são duplamente oprimidas e exploradas, continua sendo a mesma.

Isto porque a taxa de participação das mulheres em posições de poder nada mais é do que uma expressão da condição social das mulheres no capitalismo e não a sua causa. A opressão de gênero não é um simples resquício do sistema patriarcal passado, mas no capitalismo ganhou outro significado e outra função. As opressões, com todos os seus componentes – desigualdade, violência, coisificação – fazem parte da lógica capitalista porque servem para mantê-lo. A estratificação dos trabalhadores não só permite aumentar os lucros capitalistas através da superexploração do trabalho feminino (e/ou negro, imigrante, etc.), mas também reduzir o valor da força de trabalho através da existência de um exército de reserva pressionando os salários e o padrão de vida de toda a classe.

Já a naturalização dos cuidados da casa e dos filhos/as pelas mulheres, por outro lado, permite economia de custos com a reprodução da força de trabalho assalariada por meio do trabalho gratuito realizado pelas mulheres no âmbito doméstico. Além disso, as opressões mantêm a nossa classe dividida, impedindo a unidade necessária para destruir o sistema de dominação capitalista burguesa que promove e reproduz todas as opressões. Que para isso é necessário que a burguesia mantenha uma parte da sua própria classe (as mulheres burguesas) longe de certos privilégios e/ou numa condição inferior, é apenas um detalhe desta conta capitalista.

A abordagem de enfatizar as desigualdades de gênero, sem ligá-las à questão de classe, e sem explicar como o modo de produção capitalista – isto é, a propriedade dos meios de produção e o monopólio do poder nas mãos da classe burguesa – produz e alimenta todos os tipos de desigualdade (de classe, mas também de raça, gênero, entre os países, etc.); não nos permite responder adequadamente à questão feminina (e racial) e muito menos aos problemas que as mudanças climáticas impõem aos sectores oprimidos da classe trabalhadora e à humanidade como um todo.

Mas serve para cooptar as lutas e as direções dos oprimidos e daqueles que estão realmente preocupados com os efeitos do desequilíbrio ambiental sobre os mais pobres e as mulheres, tirando as suas reivindicações das ruas e trancando-as em escritórios e departamentos universitários, que se dedicam cada vez mais a produzir teorias e políticas que retiram o conteúdo de classe destas reivindicações – procurando revitalizar a economia burguesa, à custa da incorporação massiva das mulheres sem questionar, ou questionando apenas de passagem, mas sem apresentar soluções, o papel da mulher trabalhadora na sociedade de classes: a dupla jornada, a sobrecarga de cuidados, a superexploração, etc. –. Há todo um sector da burguesia que há muito percebeu que a retórica da “igualdade” ou do “verde” pode ser muito lucrativa.

Para fazer isso, baseiam-se em teorias e políticas diretamente burguesas, como a do empreendedorismo feminino. Ou em teorias reformistas que se apresentam com um verniz aparentemente mais progressista, como o do “empoderamento” – vendido como sinônimo de mais autonomia –, com discursos como o “papel fundamental que as mulheres desempenham na resposta às mudanças climáticas”.

Ou em outras teorias de setores feministas que até têm uma visão crítica do capitalismo, mas ao afirmarem que a dominação do patriarcado sobre os corpos das mulheres e a dominação do capitalismo sobre a natureza têm raízes comuns, concluem que a sociedade como um todo, está marcada por relações patriarcais em todas as áreas e dimensões que confrontam homens e mulheres, acabando por encobrir o próprio capitalismo, uma vez que a principal contradição que deve ser superada segundo elas é de gênero e não de classe. Alguns chegam mesmo a ter posições reacionárias ao postularem, a partir de um essencialismo naturalista, que as mulheres, devido à nossa biologia mais próxima da natureza, são mais sensíveis, e por isso estamos mais conscientes dos problemas ambientais.

Deixando de lado a discussão climática, teríamos que perguntar até que ponto o governo israelita de Golda Meir foi mais “sensível” ao povo palestino, ou se a “sensibilidade” de Margaret Thatcher a impediu de esmagar os sindicatos na Inglaterra, ou onde está a “sensibilidade” da vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, com a questão da imigração em seu país.

Nenhuma destas teorias e políticas vai libertar as mulheres trabalhadoras, nem salvar o planeta, porque não vão à raiz do problema. Neste sentido, o “empoderamento” feminino ou o “capitalismo verde” como estratégias para reverter os efeitos das mudanças climáticas nada mais são do que uma ilusão. O que o imperialismo tenta com estas políticas é convencer-nos de que é possível alcançar a igualdade e salvar o meio ambiente sem enfrentar e romper com um sistema que destrói mais do que produz e que NECESSARIAMENTE implica relações de produção e reprodução social de exploração, dominação, alienação e a subordinação da maioria e da natureza da qual fazemos parte, a um punhado de capitalistas, sejam homens ou mulheres.

Como dissemos no artigo anterior: governos de todos os matizes políticos (com homens e mulheres nas suas equipes) realizam há anos cúpulas e conferências sobre o clima nas quais se aprovam medidas e se assumem compromissos, que não só são totalmente insuficientes, mas que nem sequer são colocados em prática posteriormente. Isto porque para além da sua retórica e demagogia, todos eles são cúmplices das multinacionais e das políticas responsáveis ​​pelo problema ambiental às que servem, cujos interesses defendem e dos quais em muitos casos acabam por fazer parte.

Embora o capitalismo seja forçado a colocar em marcha uma indústria baseada em energias renováveis, da mesma forma que incorporam mulheres e pessoas racializadas nas suas fileiras para ludibriar e parecerem mais igualitários aos sectores oprimidos, estamos perante um sistema econômico que se apoia na opressão e na desigualdade de todos os tipos para se perpetuar. Que tem como objetivo o crescimento ilimitado, que não respeita os ciclos naturais e em que o sistema de produção é caótico, porque não é produzido para satisfazer as necessidades humanas, mas fundamentalmente para que alguns possam manter os seus lucros e continuar acumulando imensas fortunas, ao custo do crescente empobrecimento de uma maioria e da destruição do meio ambiente.

A dimensão de classe das lutas ambientais e contra a desigualdade de gênero e raça

Sendo verdade que a dimensão de gênero e raça, etc., agravam a opressão de classe que a classe trabalhadora e os pobres sofrem em todas as áreas da vida neste sistema capitalista, esta questão não pode esconder que a principal contradição em que se baseia a sociedade capitalista burguesa e, portanto, o que produz e reproduz todas as desigualdades e opressões, é a divisão de classes. Portanto, incorporar mais mulheres (burguesas) em posições de poder em governos, instituições ou organizações (burguesas) sobre o clima ou nos conselhos de administração de multinacionais (capitalistas), onde as decisões econômicas ou políticas ambientais são tomadas dentro deste sistema capitalista, não é a solução.

Mais uma vez repetimos que não se trata de negar a importância de incorporar a perspectiva de gênero e raça nos debates sobre meio ambiente nem a necessidade de as mulheres trabalhadoras participarem ativa e massivamente nestes debates. Nem acreditar que a defesa da igualdade de oportunidades, mesmo para que as mulheres possam aceder a cargos de liderança, seja algo menor. Mas se compreendermos que a luta pela igualdade e pelos direitos das mulheres, bem como a luta contra as mudanças climáticas e em defesa da água, dos solos e dos habitats, tem de fazer parte de uma luta estratégica, de classe, pela destruição do capitalismo e pela construção de uma sociedade socialista.

Uma sociedade baseada em novas relações sociais de produção e reprodução e não apenas numa distribuição “mais justa” de riqueza e recursos. Que planifique a economia e que revolucione as forças produtivas, colocando no centro a vida, as necessidades sociais e a justiça social, em vez dos benefícios privados.

Uma nova sociedade que permita superar a atual separação entre o campo e a cidade, que lance as bases para estabelecer uma relação equilibrada com a natureza e para que possam florescer novas relações humanas igualitárias, sem qualquer tipo de opressão. Só um governo operário e popular é capaz de fazer tudo isto. É neste sentido que concordamos que a luta pela emancipação das mulheres é um elemento fundamental. Porque não é possível realizar uma revolução operária e popular ou construir essa sociedade socialista, sem incorporar homens e mulheres em pé de igualdade nesta tarefa estratégica que a classe trabalhadora tem pela frente.