Debates

Reparação histórica de gênero, raça e classe em contraponto ao “Bem Viver”

Este texto foi elaborado para a Plenária de Mulheres do Quilombo Raça e Classe, como formação e preparação para a participação na II Marcha Nacional de Mulheres Negras, intitulada "Reparações e o Bem Viver". Queremos oferecer, com ele, contrapontos críticos e as necessidades para o avanço na luta das mulheres negras pela sua emancipação, sem opressão, exploração e na perspectiva de uma sociedade socialista

Vera Rosane, da Secretaria de Negras e Negros do PSTU

19 de setembro de 2025
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Precisamos estudar a origem e a construção histórica do conceito de Bem Viver, como ele foi trabalhado ao longo dos tempos, como ele é trabalhado hoje em dia, e quais são as concepções que utilizam esse conceito.

Como nasceu e desenvolveu o conceito de Bem Viver

Assim, nós vimos que o conceito vem da cosmovisão das comunidades tradicionais da América do Sul, os Sumac Kawsay, na língua quéchua, e foi, inclusive, incorporado nas constituições do Equador e da Bolívia.

Essa visão é crítica em combate ao capitalismo, porém, essa ideia, que foi elaborada a partir de movimentos organizados dos povos originários, acabou sendo incorporada pelos governos ditos progressistas como Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, e por líderes políticos como Alberto Acosta, além de ecologistas e intelectuais como Boaventura de Sousa Santos.

Essa visão denuncia a exploração, a crescente desigualdade social e a destruição da natureza, que estão na essência do sistema capitalista. Também denuncia a lógica da acumulação interminável de bens no capitalismo, onde os teóricos e filósofos do Bem Viver, ainda que com abordagens diferenciadas, concordam que o ser humano e não o lucro deva ser o centro da preocupação social.

Propõe-se uma economia solidária, inclusiva, sustentável e democrática, que defende o estabelecimento de uma relação dinâmica entre o mercado, o Estado e a sociedade. Defendem os direitos dos povos originários e a constituição da pluralidade, da descentralização e a reorganização territorial como o fundamento dos Estados.

Defendem ainda os direitos da natureza e também propõem a democracia participativa como forma de organização do Estado e a cidadania universal como forma de igualar todos os cidadãos, natos e imigrantes, em todos os países do mundo.

Nesse sentido, o que se percebe é que esta concepção começa a ingressar no Brasil, em primeiro lugar, nos governos ditos progressistas do PT. Na verdade, pegam uma forma maior nesta época, na década dos Fóruns Sociais Mundial, que tinham essas concepções como uma sociedade onde um novo mundo é possível, a partir da concepção desta igualdade inclusiva, com um capitalismo humanitário menos selvagem.

É importante perceber que, mesmo esta concepção tendo surgido pelos povos originários como indígenas negros, foi incorporada por governos reformistas que têm como objetivo a manutenção da sociedade sem o rompimento com o sistema capitalista.

Estamos totalmente de acordo com a concepção original do Bem Viver, no sentido da crítica do sistema capitalista imperialista como gerador de exploração, opressão, desigualdades e de destruição da natureza, e também que o ser humano deva ser o centro da sociedade.

As tentativas de humanização de um capitalismo selvagem

Da mesma forma, estamos totalmente a favor dos direitos nacionais e de território dos povos originários, da proteção da natureza e de combater a exploração e as opressões. A nossa pergunta é: qual é o problema que está por trás desta concepção? Ou seja, é possível combater toda esta lógica através do progressismo e da ilusão da solidariedade dos países imperialistas sem acabar com o capitalismo? A partir daí começam as nossas diferenças.

É possível implantar uma economia solidária, inclusiva, sustentável e democrática pelo exemplo de alguns ou de muitas comunidades ou cooperativas dentro do sistema capitalista? O que vimos na prática é o que o PT, por décadas, em especial na década de 1990, construiu, através de projetos de economia solidária, do orçamento participativo (que teve como expoente por 15 anos de experiência a cidade de Porto Alegre), onde a economia solidária, os fóruns sociais mundiais na busca deste novo mundo possível não mudaram em nada a realidade da classe trabalhadora, dos oprimidos e dos excluídos.

E mais, não mudou a essência do capitalismo que é o lucro, a exploração e a opressão, mantendo sua lógica de barbárie. A experiência histórica tem demonstrado que isso é absolutamente impossível, pois o capitalismo destrói todas as formas de produção que resistem à lógica da produção por meio da propriedade privada dos meios de produção, da obtenção do maior lucro possível. A troca e a acumulação e reprodução do capital é o que acaba, ao fim e ao cabo, sempre imperando.

A propriedade privada segue intacta nos governos progressistas e na teoria do Bem Viver

Assim, enquanto houver essa propriedade privada dos meios de produção e troca, como fábricas, grandes bancos, comércios, cujo objetivo é produzir mercadorias e colocá-las à venda no mercado para conseguir o maior lucro possível, vendendo sempre mais e mais, é impossível competir entre as empresas. A concentração de capitais acaba sempre sobrepujando e destruindo os menores e a produção coletiva, com todas as experiências históricas que percebemos até hoje.

Continua imperando a exploração desenfreada dos recursos naturais, como vimos hoje, através do agronegócio, com o desmatamento, a crise ambiental e social. Ou através da exploração dos territórios indígenas, quilombolas e dos camponeses.

E os trabalhadores e o mercado de trabalho, com esta lógica de exploração máxima, onde o sistema, em nome do lucro, explora cada vez mais, seja pela superexploração direta nos postos de trabalho formal, seja através da terceirização, da quarteirização ou através dos trabalhos informais e precários, como a uberização, o trabalho doméstico e a superexploração, ou ainda a escala 6×1, continuam com sua condição de vida absolutamente precarizada.

A ideologia do Bem Viver, que no sistema capitalista é impossível se manter, mantém como lógica o empreendedorismo num capitalismo onde é impossível ser humanizado. O sistema que a burguesia impõe à classe trabalhadora é de uma alienação a setores inteiros da nossa classe através dessa ideologia, ou seja, da ideologia da democracia universal e de outras como o Bem Viver.

Quando o que sabemos é que nós vivemos em uma democracia burguesa, a democracia do lucro e do capital, que nos tira direitos como a reforma trabalhista, a reforma previdenciária, o Arcabouço Fiscal, que acaba com verbas para a saúde, para a educação, para a assistência, e impõe uma política absolutamente neoliberal.

Democracia burguesa não garante igualdade entre as mulheres negras e não-negras

Se por um lado, então, nós vemos os reformistas falando desta inclusão de uma democracia ampla, onde é possível um capitalismo humanizado, onde, através de cooperativas, de relações entre o Estado, a sociedade e o mercado possam ser harmonizados. O que percebemos, na verdade, é que, na sociedade capitalista, é impossível condições dignas de vida com a opressão e a exploração, onde a classe trabalhadora de conjunto, homens e mulheres, brancos e negros, são explorados e oprimidos. Em especial as mulheres negras, que são a base de todo esse processo, e que passaram por quase 400 anos de escravidão, de abuso de seus corpos, sem direito a constituir família, e que continuam sendo a base deste sistema.

Reparação histórica questiona a propriedade privada, o Estado, governos e a democracia burguesa

Somente, então, com reparações históricas, de raça e classe, conseguiremos acabar com esta sociedade de classes, com esta sociedade onde os meios de produção privada determinam a lógica, e onde a exploração e a opressão, constituem a base de toda a organização social. E, nesse sentido, não adianta as filosofias pós-modernas, não adianta o discurso reformista de que nós conseguiremos um Bem Viver.

Nós não conseguiremos isso sem uma revolução socialista, onde se acabe com a sociedade de classes, com a exploração e a opressão, onde, na verdade, o ser humano seja o sujeito social de sua própria história.

Precisamos, com uma política de reparações históricas, deixar muito nítido que são as mulheres negras que vivem e moram nos piores lugares, sem saneamento, com moradias precárias. São elas que recebem os piores salários, que ocupam os piores postos de trabalho (como as faxineiras, as domésticas, as diariastas), que sofrem com a ausência de postos de saúde ou escolas adequadas para seus filhos, e com a violência cotidiana do Estado. Os nossos filhos vivem sob um verdadeiro genocídio, assassinados pela polícia todos os dias. Somos nós, mulheres negras, as que mais sofrem com a violência, seja doméstica, seja social, porque a mulher negra é a que mais é assassinado em nosso país.

Nós lutamos e resistimos a 400 anos de escravidão, e lutaremos, resistiremos e venceremos este sistema de opressão e de exploração.

Por mais que a ideologia do Bem Viver, apropriada pelos governos neoliberais, tente nos fazer acreditar que a saída é individual, de que nós temos de fazer a nossa parte, nós entendemos que a saída é coletiva, e não através do empoderamento, do empreendedorismo, e sim através da nossa luta e organização com o conjunto da classe trabalhadora, de homens e mulheres. E por isso, a Segunda Marcha das Mulheres Negras de Brasília tem esta responsabilidade e esta perspectiva frente a este governo de coalizão de classes do PT e do governo Lula.

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