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RS: Por que a suspensão do pagamento da dívida por 3 anos é medida insuficiente? Quem deve pagar a conta da reconstrução?

Vania Gobetti, de Porto Alegre (RS)

14 de maio de 2024
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A destruição fabricada por este sistema irracional, que é o capitalismo, está mostrando sua cara | Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Da lama ao caos
Do caos a lama
Um homem roubado
Nunca se engana”
(Chico Sciense)

Enquanto a chuva não para de cair no estado e o nível dos rios, Arroios e Lagoa dos Patos continua crescendo, a tarefa mais importante segue sendo salvar, acolher e alimentar as pessoas e animais vítimas da enchente. Mas o debate sobre de onde saem os recursos para o socorro e a reconstrução do estado já iniciou.

Se nos pautarmos pelo que aparece na grande imprensa, a aparência é que todos – governos, Congresso Nacional, Assembleia Legislativa – estão agora unidos em torno da solidariedade à catástrofe que estamos vivendo e estão adotando todas as medidas possíveis.  Eles afirmam: “Nós reconstruiremos o estado. Não faltarão recursos!¨.

O Senado, de Pacheco, por exemplo, aprovou a decretação do estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul. O Congresso Nacional irá analisar nesta semana uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Orçamento de Guerra, a exemplo do que há havia sido feito durante a pandemia. O governo vai fazer apelo para que a bancada gaúcha, majoritariamente ligada aos ruralistas e megaempresários da agroindústria, redirecione as suas “emendas parlamentares” – R$ 480 milhões – para a reconstrução. Ou tentam viabilizar a liberação das “emendas PIX” cujos valores entram direto no caixa das prefeituras.  E, há também os 89 milhões arrecadados pelo fundo PIX do governo estadual

A dívida é uma sangria

Ontem (13/5), o presidente Lula (PT) e Eduardo Leite (PSDB) acertaram a suspensão do pagamento da dívida do estado com a União durante 3 anos, o que liberará R$ 3,5 bilhões do caixa do estado este ano e totalizaria R$ 11 bilhões nos 3 anos.

Porém, o que se trata aqui é da maior operação de socorro e reconstrução na história do Brasil, seja pela quantidade de cidades, extensão do que foi afetado e pelo tempo do evento, que não sabemos ainda quanto tempo irá perdurar.

Estamos falando, até o momento, de 2,1 milhões de pessoas afetadas, em 450 municípios. São mais de 80,8 mil pessoas apenas em abrigos, sem falar naquelas que estão na casa de parentes e amigos. Se pegarmos os estragos em apenas edificações residenciais das cidades mais atingidas, chegaremos a 84,5 mil em Porto Alegre; 65,7 mil em Canoas; 38,6 mil em São Leopoldo; 13,5 em Lajeado; e, 13,4 mil em Eldorado do Sul ( 70% da cidade foi atingida). Além disto, há dezenas de hospitais, mais de mil escolas, postos de saúde, estradas, pontes destruídas.

Não há cifras exatas sobre o valor necessário para a reconstrução porque a destruição ainda está em curso. Mas já se fala em R$ 100 bilhões.

Neste sentido, a suspensão do pagamento da dívida do estado com a União, anunciada ontem, é uma medida insuficiente, que não resolverá o tamanho do problema. Além do que implicará logo ali adiante em maior endividamento e planos de ajuste neoliberal com cortes de gastos sociais para manter esse mecanismo da dívida, que remunera bilionários capitalistas, banqueiros e grandes investidores com a maior taxa de juros do mundo, em detrimento de investimentos públicos e gastos sociais.

As obras de reconstrução e de prevenção para novos eventos demandarão anos. Para se ter uma ideia,  a arrecadação do estado em um ano inteiro (por exemplo 2023) foi  de R$ 78 bilhões.  Estes recursos precisam estar integralmente direcionados para garantir os serviços públicos funcionando.

Já vivíamos uma crise gravíssima na saúde do estado, antes das enchentes, particularmente na Região Metropolitana de Porto Alegre. Imaginemos o que não teremos pela frente, com os já anunciados surtos de doenças em decorrência de águas poluídas espalhadas por boa parte do território. É necessário cancelar essa dívida, que como sempre denunciamos, é uma verdadeira sangria (cresceu 13% em 2023 e soma R$ 92,8 bilhões).

A dívida pública da União

Mas os recursos arrecadados pelo estado são uma pequena parte do que necessitamos. Ainda mais importante que a dívida do estado, é a dívida pública da União. Em 2023, por exemplo, a União pagou 1,89 trilhão entre amortizações e juros da dívida. Será um verdadeiro absurdo permitir que este dinheiro continue indo para os bancos e bolso dos bilionários rentistas, detentores dos títulos da dívida, que nada produzem e deixar à mingua 80 mil pessoas que estão em abrigos provisórios, e mais de 600 mil desalojados.

Será fundamental também colocar abaixo toda política de contingenciamento fiscal que limita as políticas de investimento, seja localmente, como o Regime de Recuperação Fiscal do estado, mas principalmente colocando abaixo o arcabouço fiscal. Não foi por menos que o vice-presidente Alckmin (PSB) afirmou, categoricamente, numa reunião com empresários ontem (13/5): “A meta de déficit zero continua e é importante para cumprir o arcabouço fiscal. Cabe a todos nós ajudar, apertar mais o cinto para poder cumpri-la”.

O governo Lula, até este momento, havia anunciado medidas que são mera antecipação de recursos que já são de direito dos trabalhadores (13º, FGTS, auxilio gás, seguro desemprego). Para pequenos e médios produtores rurais, o governo afirma que irá alocar recursos em fundos que cubram calote de empréstimos bancários (fundos garantidores) para reduzir o custo do crédito que continua sendo um dos maiores do planeta. Ou seja, aposta em mecanismos que irão gerar, por um lado, endividamento maior das famílias; e por outro, irá garantir risco praticamente zero para os bancos, pois se houver inadimplência, as dívidas serão quitadas pelos fundos garantidores.

Auxílios limitados

Foram noticiadas na imprensa novas medidas do governo federal: um auxilio de R$ 5 mil por família desabrigada, isto é, um voucher com foco nas famílias desabrigadas para que possam “começar  a reconstruir suas casas”, visando atingir 100 mil famílias .

No caso dos R$ 2 mil de auxilio anunciados pelo governo Leite (cujos recursos sairão do fundo PIX estadual) há uma série de limitações a quem será beneficiado: apenas famílias inscritas no Cadastro Único, Cadastro da Agricultura Familiar ou com renda familiar de até R$ 4.236,00. Ou seja, centenas de milhares de trabalhadores e microempresário, que também perderam tudo o que tinham em casa e muitos suas próprias casas, ficarão de fora. Como pode ver, se deixarmos na mão dos governos e parlamento, eles irão disponibilizar alguns auxílios bem limitados. E, passado esse momento de maior comoção, ficará por conta de cada um a reconstrução das suas vidas.

Por outro lado, grandes empresas, latifundiários agrobilionários estão se organizando, apresentando suas “perdas”, para ter a prioridade no auxílio governamental. E o discurso de todos os governos, inclusive de Lula, é que as empresas tem que ser socorridas “para preservar os empregos”. Ou seja, além de alocar um volume de recursos imenso para aqueles que perderam muito pouco, ao priorizar as grandes empresas, o governo seguirá financiando, com o dinheiro dos nossos impostos, o desequilíbrio da natureza, a tragédia social e ambiental e o desmonte permanente dos serviços públicos, como exige o eterno ajuste neoliberal exigido pelo Arcabouço Fiscal e pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

A conta deve ser paga pelos bilionários

Para nós, uma coisa é certa. A conta da reconstrução das cidades e da reparação às pessoas atingidas deve ser paga pelos bilionários capitalistas e pelo dinheiro que lhes é repassado por todos os poros do Estado capitalista, começando pela dívida pública, mas também pelas isenções fiscais bilionárias, pelas Parcerias Público Privadas (o capitalismo sem risco em que o estado entra com o dinheiro e os grandes empresários com o lucro), pelas privatizações.

Será necessário cobrar a fatura daqueles que foram os principais responsáveis pela tragédia ambiental – grandes empresas responsáveis pela devastação ambiental, particularmente os agrobilionários que atuam no Rio Grande do Sul e em todo o país.

É necessário cobrar imposto fortemente progressivo sobre o capital, confiscar parte do capital das grandes empresas, da fortuna desses bilionários e dos dirigentes e acionistas que recebem os dividendos bilionários dessas empresas, responsáveis pela devastação ambiental. Das empresas que lucram bilhões consumindo os recursos naturais do nosso estado como JBS, BRF, Camil Alimentos, BSBios entre outras.

É preciso reestatizar sem indenização empresas como a CEEE Equatorial, que deixa a população sem luz, desliga eletricidade e bombas sem avisar a população. Incompetente para prestar serviço, competente em lucrar, distribuir dividendos e cobrar caro para um péssimo serviço.

Por isso, entendemos que este não é momento de arremedos. A destruição fabricada por este sistema irracional, que é o capitalismo, está mostrando sua cara. É o momento de nós, trabalhadores, construirmos e apresentarmos um programa nosso e lutarmos por ele.

É o momento que aqueles e aquelas que foram as vítimas desta tragédia se organizem e tomem as rédeas do processo, pois somente assim terão condições de impor um direito básico: o direito de ter a sua casa e a sua vida de volta.

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