Sobre a crise do PCB e o “movimento comunista internacional”
Como boa parte dos ativistas no Brasil sabe, existe uma crise no PCB, com a expulsão de dez membros de seu Comitê Central (inclusive Ivan Pinheiro e Jones Manoel). A partir daí, existe uma ruptura em curso para formação de outro partido (PCB-Reconstrução Revolucionária).
A vinda à tona dos debates públicos das duas frações explicitou diferenças caracterizadas por ambas como irreconciliáveis. Os temas em debate transcendem os limites da crise do PCB, por interessarem a toda a vanguarda, como a relação com o governo Lula, o centralismo democrático e outros.
Queríamos aqui tratar de um deles, sobre a crise atual do chamado “Movimento comunista internacional”, que se expressa no EIPCO (Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários) e a criação da Plataforma Mundial Anti-imperialista.
Trata-se, nos parece, de uma discussão de grande importância para a vanguarda mundial, envolvendo temas como a caracterização dos estados de China e Cuba, a guerra da Ucrânia, a relação com os chamados “governos progressistas” e outros.
Como já nos referimos em outros artigos, não temos nenhum acordo com a direção majoritária do PC que impõe expulsões arbitrárias a serviço de uma política de conciliação de classes. Mas queremos nesse artigo nos dedicar a discutir também nossas diferenças com a ala esquerda desse processo, em particular a partir desses temas internacionais programáticos e ideológicos.
A gênese da crise atual
O internacionalismo sempre foi uma caraterística do marxismo revolucionário. Isso é uma consequência do entendimento de que a revolução socialista deve ser necessariamente internacional, porque só assim se pode avançar em uma planificação econômica internacional que permita o avanço para o socialismo.
Os bolcheviques associaram desde o início a revolução russa a esse projeto internacionalista, e por isso construíram a III Internacional. Os quatro primeiros congressos da III (de 1919 a 1922) seguem sendo até hoje verdadeiras aulas de marxismo revolucionário para os ativistas de todo o mundo.
No entanto, as derrotas da revolução na Europa deixaram a revolução isolada, o que favoreceu a contrarrevolução política stalinista que levou a burocratização da URSS. O stalinismo abandonou a estratégia internacionalista da III, em função de sua concepção do desenvolvimento do “socialismo em um só país” na URSS.
A partir daí, a III passou a ser a expressão dos interesses da burocracia governante na URSS. Houve um curto período com um ziguezague ultraesquerdista (o “terceiro período”) que possibilitou a vitória fascista na Alemanha, com o PC se negando a uma frente única com a socialdemocracia.
Depois, no congresso da III, em 1935, foi aprovada a tese da Frente Popular, apresentada por Dimitrov, que segue sendo a ideologia predominante não só nos PCs, mas em grande parte dos partidos reformistas em todo o mundo. A ideologia da aliança com “um setor progressivo da burguesia” é a base das derrotas de grande parte dos processos revolucionários do século XX e XXI.
Em 1943, Stálin finalmente dissolveu a III Internacional no final da II Guerra Mundial, como expressão da política stalinista de “coexistência pacífica” com o imperialismo.
O aparato stalinista mundial, no entanto, seguiu funcionando, atrelando os partidos comunistas de todo o mundo à burocracia soviética. Seguiu sendo aplicada a mesma estratégia de frente popular em distintos países, com as mesmas derrotas como consequência. Ocorreram distintas crises nesse aparato, incluindo as rupturas maoístas e outras.
A experiência histórica comprovou o fracasso da estratégia stalinista do “socialismo em um só país” na URSS. A burocracia governante afinal conduziu a restauração do capitalismo na URSS, com Gorbachev em 1985. Um processo semelhante veio antes com Deng Xiaoping na China em 1978. A restauração do capitalismo avançou em ritmos desiguais, mas abarcou o conjunto desses estados na década de 90, incluindo Cuba.
A crise causada pela derrubada das ditaduras stalinistas foi gigantesca e afetou profundamente, em maior ou menor medida, o conjunto dos partidos comunistas em todo o mundo. Uma das consequências disso foi a desarticulação do aparato stalinista mundial, que estava atrelado às burocracias governantes dos antigos estados operários.
Em 1998, por iniciativa do PC grego (KKE), foi inaugurado o Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários, com conferências anuais. Essas conferências reúnem, além do Partido Comunista da Grécia, o PC Venezuelano, o Partido Comunista Chinês, o Partido Comunista da Federação Russa, o Partido Comunista Cubano, e outros partidos de dezenas de países. Do Brasil participam o PCB e o PCdoB.
A 21ª conferência em 2021, contou com 74 partidos de 58 países. A última (22ª) foi realizada em Havana, em 2022.
Ou seja, o EIPCO expressa uma reorganização dos PCs de todo o mundo. Mas em uma nova situação histórica, em que os partidos da China, e Cuba expressam os interesses já não mais de burocracias stalinistas, mas de burguesias governantes. Só mantiveram o “comunista” nos nomes desses partidos. Existe um debate na vanguarda de todo o mundo, assim como na LIT, se a China é hoje ou não um país imperialista. Mas é evidente que se trata de uma potência capitalista.
O PC da Federação Russa não é diretamente uma expressão do governo russo, mas capitula diretamente a Putin, como se pode ver na guerra da Ucrânia.
Existem diferenças de toda ordem nas estratégias e políticas desses partidos, como se poderia esperar. Alguns desses partidos seguem defendendo a estratégia clássica do stalinismo das frentes populares, e uma visão etapista do processo revolucionário. Outros, como o PCB, fizeram uma ruptura parcial com essa estratégia e o conjunto da ideologia stalinista. Mas só a existência do EIPCO e a participação de um partido que se considere revolucionário em um Encontro Internacional com o PC chinês já expressa toda uma visão do mundo.
Como produto das contradições causadas pela guerra da Ucrânia em toda esquerda reformista mundial, foi lançada em 2022 a chamada Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI). Essa plataforma é uma iniciativa, na realidade, do PC da Federação Russa e do PC chinês, apesar de ter sido chamada pelo desconhecido Partido da Democracia do Povo (Coréia do Sul). Tem como objetivo a defesa da agressão russa contra a Ucrânia, e já realizou quatro encontros internacionais nesses pouco meses de existência. O último deles foi realizado na Venezuela, sob o patrocínio do PSUV, partido governante do país.
Foi a participação do PC nos encontros dessa PMAI, através de seu secretário de relações internacionais (Eduardo Serra) que deflagrou a crise no PCB. Isso veio a público com o questionamento aberto de Ivan Pinheiro, ex-secretário geral desse partido. Foi denunciado e demonstrado que as participações do PCB na PMAI foram abertas violações das resoluções anteriores do partido.
O conteúdo real da crise é que a agudização da luta de classes causada pela guerra vai causando uma grande crise política no “movimento comunista internacional”. Ou, mais precisamente, nesse ajuntamento heterogêneo de partidos que assim se intitula. A crise do PCB é parte desse processo, e não deve ser a única.
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Antes de mais nada, gostaria de apontar o acordo que temos com uma afirmação contida no “Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB”, que explicita a ruptura do PCB, ao falar da PMAI:
“Essa articulação internacional, que admite abertamente entre seus objetivos a organização do apoio político da esquerda mundial ao bloco Rússia-China, defende a tese de “que a principal contradição no mundo de hoje é aquela entre o bloco imperialista da OTAN liderado pelos EUA e a massa da humanidade sofredora” (vide a “Declaração de Seul”) – e não, como defendem os comunistas revolucionários, a contradição entre capital e trabalho.”
Além do questionamento da posição sobre a guerra da Ucrânia, os que assinam esse manifesto afirmam que, ao contrário da “PMAI”, a contradição fundamental no mundo é entre o capital e o trabalho, ou entre a burguesia e o proletariado. Isso, como veremos, tem enorme importância para o conjunto da discussão. Nos parece necessário que os que se propõem à reconstrução revolucionária do PCB apliquem essa lógica de independência de classe em todos os temas envolvidos nessa discussão.
Isso implicaria não só na ruptura com a PMAI, mas com o próprio EIPCO, que reúne partidos burgueses como o chinês e o cubano. Como participar de um encontro com representantes do governo chinês que dirige uma ditadura burguesa, impôs a restauração capitalista e conseguiu ajudar o imperialismo a nível mundial a rebaixar os salários do proletariado, seguindo o “patamar chinês”?
Como participar de um encontro com o PC cubano que restaurou o capitalismo na ilha e dirigiu a repressão contra as manifestações populares de 11 de julho de 2021 contra o plano neoliberal de Dias-Camel?
Será que a lógica de que a “principal contradição no mundo de hoje é aquela entre o bloco imperialista da OTAN liderado pelos EUA e a massa da humanidade sofredora” não está sendo usada também pelo PC-RR na avaliação de Cuba? Não estão ignorando o papel do imperialismo espanhol na restauração do capitalismo e nos complexos turísticos na ilha? Não estão desconhecendo o surgimento de uma burguesia cubana ao redor do aparato de Estado e associada ao imperialismo europeu?
Até hoje o governo cubano mantém centenas de jovens que participaram dessas mobilizações do 11J como presos políticos, acusando-os de “aliados do imperialismo”, a acusação clássica do stalinismo contra seus adversários.
Até poucos anos atrás, o PC brasileiro apoiava o governo Maduro na Venezuela, um governo da chamada boliburguesia, a burguesia corrupta que cresceu a partir do aparato de Estado venezuelano. Só agora o PC brasileiro está criticando o governo venezuelano, a partir dos ataques contra o PC venezuelano.
Se tivessem se guiado pela lógica de classes, do proletariado contra o conjunto dos setores burgueses, o PC brasileiro não participaria não só da PMAI, mas desses encontros do EIPCO.
Na verdade, essa correta lógica de independência de classes questiona os limites da “reconstrução revolucionária” do PCB.
No documento “Socialismo: Balanço e Perspectivas”, do IV congresso do PCB, reivindicado nesse Manifesto pela Reconstrução Revolucionária, se diz sobre a China que as “reformas de Deng Xiao Ping, iniciadas em 1978, introduziram elementos de capitalismo”. E depois conclui: “Mesmo assim, o Partido Comunista Chinês segue na liderança do processo, e anuncia, para 2015, a retomada da construção de estruturas coletivas e públicas no rumo socialista. Esta experiência deve ser analisada com atenção, assim como a trajetória do Vietnã, cautelosa, de modernização e abertura com a manutenção da base socialista, e mesmo da Coreia do Norte, que, com problemas diversos, com destaque para o seu isolamento internacional e uma estrutura rígida de poder, atingiu um elevado padrão de igualdade social, mantendo-se no campo socialista e fazendo um importante contraponto à política imperialista dos Estados Unidos e seus aliados.”
Estamos falando de um dos documentos centrais da “reconstrução revolucionária” do PC, o que assume o balanço das experiências “socialistas”. Ou seja, o que faz o balanço dos desastres stalinistas.
Não por acaso, em julho de 2021, o PCB fez uma saudação pública aos cem anos do PC chinês. Não por acaso, Jones Manoel fez uma série de vídeos sobre a China, terminando por afirmar que “não sabia se a China ainda era socialista ou não”. Pode ser que ele tenha evoluído desde então. Seria muito importante. Mas bastaria reconhecer que isso não foi só um erro da maioria do CC do PCB.
Sobre a guerra na Ucrânia
A invasão militar russa sobre a Ucrânia é um centro da luta de classes no mundo e um enorme desafio para toda a esquerda mundial. Não por acaso, a crise do PCB tem esse tema com um de seus centros mais importantes.
No manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária é afirmado: “No início da guerra, o PCB emitiu uma nota (“Declaração Política sobre a crise militar na Ucrânia”) que, em um árduo esforço de unidade, tentou conciliar o inconciliável. Ao mesmo tempo em que a nota afirmou, sob pressão da luta interna da ala esquerda partidária, que ‘os interesses das burguesias estadunidense e russa são evidentes nessa luta pela partilha do mundo capitalista e a guerra não interessa aos trabalhadores’; a nota hesitou em uma caracterização rigorosa do imperialismo, atribuindo o termo reiteradamente apenas como adjetivo do bloco sob hegemonia estadunidense. Foi o suficiente para que o Secretário Geral e o Secretário de Relações Internacionais, à revelia do Comitê Central, se sentissem livres para agitar em suas redes sociais a celebração das vitórias militares russas contra a OTAN”.
Esse manifesto do PCB sobre a Ucrânia, na verdade, não é bem assim. Ele começa afirmando: “O conjunto de operações militares especiais realizadas pela Rússia, desde a manhã do dia 24 de fevereiro, em território ucraniano, representa, nesse momento, o esgotamento das tratativas diplomáticas de resolução do conflito que envolve Rússia e Ucrânia e que tem, como razão primeira, a anunciada possibilidade de ingresso da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN –, o que colocaria em risco a segurança da Rússia, como alega o governo desse país.”
Ou seja, o Manifesto do PCB começa reproduzindo a propaganda do governo de Putin, inclusive usando os termos “operações militares especiais” para mascarar a invasão da Ucrânia. Depois, denuncia os interesses imperialistas e a OTAN, assim como diz que “A Rússia é, hoje, um país capitalista, cujo governo atual tem pretensões expansionistas”. Termina com uma posição do tipo “nem um nem outro”.
É essa posição que a maioria da direção do PCB violou, participando da PMAI, ou seja, da plataforma que defende a invasão russa sobre a Ucrânia. A nosso ver, é correta a denúncia contida no Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária sobre a posição da maioria do CC do PC de apoio à invasão russa.
No entanto, isso não significa ter acordo com a posição anterior do PC sobre a guerra, que segue existindo no nanifesto atual. Em uma guerra, que é produto de uma invasão por uma potência capitalista como a Rússia sobre um país periférico como a Ucrânia, ter uma posição “nem um nem outro” é defender o imobilismo que reforça, na prática, o invasor.
Existem grupos fascistas na Ucrânia? Existem. Assim como existem, aliás em maior número, na Rússia. O famoso grupo Wagner, protagonista da última crise entre as forças militares russas, usa diretamente símbolos nazistas em suas roupas e símbolos.
Hoje existe uma resistência heroica das massas ucranianas que fez retroceder a invasão russa. Apoiar a resistência das massas ucranianas não tem nada a ver com apoiar o governo burguês de Zelensky, ou as manobras da UE e da OTAN. A Liga Internacional dos Trabalhadores, LIT, assim como a CSP-Conlutas e a Rede Internacional de Solidariedade e Lutas estão promovendo uma campanha de apoio à resistência ucraniana diretamente ligada ao Sindicato Mineiro de Krivor Roig. Ou seja, uma luta independente do proletariado ucraniano contra a invasão russa.
O neostalinismo de Losurdo
Domenico Losurdo é um historiador italiano que se notabilizou pela defesa e propagação do neostalinismo. Ou seja, uma defesa não muito envergonhada do stalinismo nos dias de hoje. Com livros como “Stálin, história crítica de uma lenda negra”, Losurdo fez sucesso em muitos setores da esquerda.
Segundo Losurdo, Stálin teria um papel histórico fundamental de concretização do socialismo real, impondo um desenvolvimentismo necessário para se contrapor à escravização nazista. Para isso, segundo Losurdo, era necessário superar as concepções “igualitaristas” de Marx, Engels e Lênin.
Losurdo ganhou popularidade defendendo a ditadura de Stálin e comparando sua repressão com as atrocidades imperialistas pelo mundo. Esconde que a repressão não foi dirigida contra a burguesia, mas contra os trabalhadores comunistas. Cerca de um milhão de bolcheviques foram mortos pela contrarrevolução stalinista, justificada por Losurdo.
Ele também defende a repressão contra Trotsky, um defensor “das teses utópicas igualitaristas de Marx e Engels”. Losurdo reproduz a calúnia clássica stalinista de que Trotsky teria se envolvido em conspirações terroristas associadas ao imperialismo.
Ao reivindicar esse papel “desenvolvimentista” de Stálin (o “socialismo real”) , Losurdo chega a elogiar Den Xiaoping, o que avançou na restauração do capitalismo na China.
Jones Manoel teve sua projeção nas redes sociais a partir de uma entrevista de Caetano Veloso em 2020 no programa “Conversa com Bial”. Nessa entrevista, Caetano cita Jones Manoel e Losurdo, e explica que, por ler os dois, deixou suas “posições liberalóides”. Jones Manoel foi um grande divulgador e defensor de Losurdo no Brasil.
A relação de Jones Manoel com o stalinismo é bem típica desse neoestalinismo. Em dezembro de 2020, ele fez uma matéria de elogio ao aniversário de Stalin: “Hoje (18/12) é aniversário de Josef Stálin. E como de praxe, acho importante lembrar sua principal contribuição para o mundo: seu papel na vitória sobre o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial”. Depois seguia: “Fazer uma menção positiva a Stálin não significa concordar com tudo, não significa achar bons os Processos de Moscou, a perseguição a artistas, o encarceramento em massa, certa formalização do marxismo etc. etc. etc.”
Ou seja, segundo Jones Manoel, Stálin foi uma figura chave do marxismo, com coisas boas e ruins, como todos. Além de tudo, Jones Manoel reproduz outra das fábulas stalinistas: seu grande papel na derrota do nazifascismo. Ignora assim a história real.
Stálin temia a oposição política dos oficiais vitoriosos na guerra civil pós revolução russa. Por isso, estendeu a repressão stalinista ao Exército Vermelho na véspera da Segunda Guerra, executando Tukhachevsky, seu principal comandante e outros quinze mil oficiais.
Além disso, em agosto de 1939, assinou o Pacto Molotov-Ribbentrop com Hitler, quando era evidente que a Alemanha se preparava para a guerra. Em junho de 1941, três milhões de soldados alemães invadiram a URSS tomando o país completamente desprevenido.
A vitória contra a invasão nazista não foi produto do “grande líder” Stálin, mas da resistência heroica do proletariado soviético e da força do Estado Operário, apesar dos desastres de Stálin.
Stalin não pode ser caracterizado como “tendo coisas boas e ruins”. Foi a expressão de uma contrarrevolução política que burocratizou a URSS, e destruiu a III Internacional. Na verdade, esse é todo um símbolo da não-ruptura real de Jones Manoel, assim como do PC-Reconstrução Revolucionária, com o stalinismo.
Esse tema é muito mais do que uma referência histórica, ou um “mi-mi-mi entre trotsquistas e stalinistas”, como costuma se referir Jones Manoel. O stalinismo é a base ideológica da teoria da Frente Popular, do etapismo, da conciliação de classes. Ou seja, da ideologia assumida, consciente ou inconscientemente, pela maioria dos partidos reformistas e, a partir daí, pela maioria dos ativistas de todo o mundo.
Uma ruptura real com o stalinismo seria uma necessidade para a reconstrução revolucionária do PCB, assim como para sua correta relocalização no cenário mundial da luta de classes.
Anti-Dimitrov
Uma parte importante das rupturas parciais com o stalinismo encontram em Francisco Martins Rodrigues, o autor do livro “Anti-Dimitrov”, uma base de apoio importante. Ele foi um quadro do PC português, que rompeu com esse partido e dedicou-se à construção de outras organizações, no início maoístas, e depois também em ruptura com o maoísmo.
O “Anti-Dimitrov é um texto importante que analisa o sétimo congresso da III Internacional, já sob comando de Stálin, que formulou pela primeira vez a tese da “Frente Popular”.
Francisco Martins Rodrigues critica a estratégia da frente popular, com a unidade do proletariado e da burguesia, e afirma corretamente sobre sua força: “Tão forte é o seu poder de convicção, que tem sobrevivido aos reveses que a História não cessou de lhe infligir, desde as Frentes Populares de 1936 à Unidade Popular no Chile e ao 25 de Abril em Portugal. E com esta particularidade curiosa: de cada vez que fracassa uma destas experiências democráticas e populares, os seus promotores podem atribuir sempre a derrota à insuficiência da Unidade, não à fórmula em si mesma”. O dimitrovismo goza assim do privilégio raro de “provar” a sua justeza à custa dos seus próprios fracassos.
Por que esta vitalidade singular? Porque o dimitrovismo vai ao encontro do bom-senso político elementar das massas nesta época dos horrores do imperialismo. Não necessita de demonstração. Ninguém no campo popular sente qualquer dificuldade em admitir espontaneamente que “a unidade da esquerda é a melhor arma contra a direita”.
Ou seja, apoiada no senso comum da defesa da “unidade contra a direita”, a estratégia da frente popular se recria em cada situação, sem ter de prestar contas dos balanços de seus desastres. Essa crítica à política da maioria dos partidos comunistas de todo o mundo tem enorme validade. Em particular perante os chamados governos chamados “progressistas” em todo o mundo, como Lula, Boric, ou Petro na América Latina, que não será tema desse artigo.
No entanto, param aí nossos acordos com o texto de Francisco Martins Rodrigues. Apesar de criticar o dimitrovismo, ele é incapaz de romper completamente com o stalinismo. Opõe como alternativa à estratégia da frente popular a política assumida no sexto congresso da IC do “terceiro período”, com posturas ultraesquerdistas que negavam, na prática, a política de frente única do movimento operário (só frente pela base) e defendia os “sindicatos vermelhos”. Ele nega a responsabilidade política dessa política na ascensão de Hitler na Alemanha.
Francisco Rodrigues não viu Stálin como o dirigente da contrarrevolução política na URSS, mas um “prisioneiro” do processo de aburguesamento que levou à constituição de um capitalismo de Estado no país.
Não avaliou o processo de burocratização da URSS que possibilitou a contrarrevolução política stalinista e nem questionou a estratégia do “socialismo em um só país”. Não por acaso, em nenhum momento se dedicou à construção de uma internacional. Mais uma ruptura parcial com o stalinismo.
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Uma reconstrução revolucionária apoiada em um reagrupamento internacional?
A ruptura do PC para a construção do PC-Reconstrução Revolucionária aponta para um reagrupamento internacional alinhado com o PC grego (KKE), PCs turco, espanhol e mexicano, no marco do EIPCO, negando a PMAI.
Não pretendemos, evidentemente, duvidar das intenções revolucionárias dos militantes envolvidas nesse objetivo.
As observações que fazemos nesse texto tampouco partem de visões professorais que ignoram as crises e rupturas que cada uma de nossas organizações já sofreram. O PSTU, por exemplo, como todos sabem, sofreu uma ruptura à direita (ao contrário da evolução à esquerda dessa ruptura do PC), que hoje se localiza na direita do PSOL.
O que queremos, nesse momento em que essas questões internacionais programáticas e ideológicas se impõem na discussão, é afirmar que não nos parece que uma reconstrução revolucionária no plano nacional e internacional possa se dar sem uma ruptura completa com o stalinismo. E isso não vemos nem nos textos do PCB-RR, assim como tampouco nos do KKE e os outros partidos.
Na ruptura completa com o etapismo stalinista, é necessário afirmar a estratégia da revolução permanente, com a incorporação das tarefas democráticas e mínimas no processo da revolução socialista.
O balanço dos desastres do Leste Europeu precisa explicitar o que foram as ditaduras stalinistas, o que tem sérias consequências na estratégia dos partidos. Em um momento em que a esquerda revolucionária tem a necessidade de reconstruir, na consciência da vanguarda e do proletariado, a estratégia da revolução socialista, o PCB-RR vai reivindicar Losurdo e o neostalinismo redivivo? Vai reivindicar a ditadura cubana, a repressão aos jovens negros do 11 J, da mobilização LGBTQ em 2021?
Não existem só como estratégias a negação do leninismo da maioria do CC e a via neostalinista de Losurdo. Existe também a reivindicação de Marx, Engels, Lênin e Trotsky. Essa é a contribuição que queremos dar a essa discussão.