Sobre o Lollapalooza: Contradições do Capital e o direito a ter e fazer Arte
Ocorreu ao longo do final de semana o festival Lollapalooza, em São Paulo. Presença marcada no calendário de eventos do Brasil, os três dias recheados de shows movimentam em torno de si fãs de todo o Brasil, uma cobertura na íntegra nos canais da Rede Globo e diversas figuras das redes sociais. O festival, inevitavelmente, é um dos assuntos mais falados na semana do evento, tornando-se o principal em diversos momentos nos três dias.
Essa edição, porém, chama a atenção dada a decisão do TSE em aplicar uma multa de R$ 50 mil a manifestações políticas a favor ou contra qualquer candidato no pleito de 2022. A medida é consequência de manifestações marcantes no sábado contra o governo Bolsonaro, em especial da cantora Pabllo Vittar, que além de puxar o grito no final do show, desceu em meio à plateia enrolada em uma bandeira de Lula.
Temos profundas diferenças políticas contra o governo do PT e a candidatura de Lula, expostas em diversos materiais do partido (lançamos, inclusive, um especial sobre a trajetória do partido até sua degeneração). Porém, não podemos ser coniventes diante de uma manifestação arbitrária com o objetivo claro de censura.
Bolsonaro tem plena consciência que seu governo enfrenta um desgaste, fruto do aumento brutal da desigualdade no país. O aumento nos combustíveis, preços galopantes nos alimentos e o grau de submissão aos interesses do capital internacional tem um reflexo explícito no nosso cotidiano.
Nesse sentido, aplausos a opiniões contrárias a seu projeto autoritário, corrupto e entreguista de poder, transmitidos em rede nacional, certamente não são de seu interesse. Vale lembrar que não é a primeira vez que Bolsonaro é autoritário contra artistas denunciando seu governo. É comum a troca de farpas entre ele, seus parentes e ministros de seu governo contra a cantora Anitta, que já afirmou ficar espantada com “o tempo livre do governo para ficar no Twitter discutindo com uma cantora”. Outro caso famoso é o do Caetano Veloso, que inclusive venceu um processo contra o guru intelectual do bolsonarismo, Olavo de Carvalho.
Também vale lembrar quando o então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, proibiu a execução de um tradicional festival Punk em Belém, o “Facada Fest”, alegando que o nome (anterior ao atual governo) e o cartaz do evento ameaçavam a integridade física do presidente, obrigando os organizadores a prestar um depoimento para a Polícia Federal. Isso sem contar o incentivo à repressão cada vez mais violenta contra eventos como os Bailes Funk nas favelas Brasil afora, alegando um suposto acinte aos costumes e incentivo ao crime por parte dos frequentadores do “fluxo”.
Saudamos todos os artistas dispostos a enfrentar essa medida autoritária e os chamamos a manifestarem suas insatisfações contra esse governo: não dá mais! Até o momento em que este texto era escrito, a banda Fresno e o cantor Lulu Santos já haviam se manifestado contra o governo e a censura.
Porém, outra discussão corre sobre o festival, levantada edição após edição: para quem é o Lollapalooza? A intenção do texto a seguir é pontuar as críticas sobre essa pergunta, e levantar o direito que os trabalhadores devem ter não só de consumir, mas produzir cultura.
Um festival democrático?
Uma das grandes bandeiras do festival e dos patrocinadores envolvidos é a luta contra as opressões. É comum diversas empresas, assim como na Parada LGBTI e em outros eventos, se engajarem em vender o capitalismo como uma forma possível de enfrentar a LGBTfobia, o racismo, o machismo e outras opressões que a nossa classe sofre cotidianamente. Porém, concretamente, não é o que ocorre. Como toda empresa, a proposta do Lollapalooza gira em torno do lucro, maximizado no caso por meio dos trabalhadores que fazem o festival e no acesso aos inúmeros shows.
Críticas aos valores absurdos dos ingressos, distantes da realidade da classe trabalhadora brasileira, sempre surgem assim que as vendas abrem. Ficou famosa a fala de um ambulante há alguns anos, quando negou um desconto a um jovem na cerveja: “Você está pagando um salário-mínimo para ver um show e não tem dinheiro pra beber?”. Ainda que cômica, essa frase traduz bem o sentimento de diversas pessoas que não podem ir ao festival, e tem que se contentar com a transmissão na internet e em canais fechados da TV.
Esse lado, porém, é apenas a ponta do iceberg dos problemas relativos ao evento. Ano após ano, a Tickets4Fun (T4F), empresa responsável pelo festival, é alvo de críticas nas contratações de trabalhadores para a montagem e manutenção das estruturas. Segundo o Sated/SP (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Estado de São Paulo), a empresa se recusou a assumir a responsabilidade sobre qualquer acidente com os funcionários envolvidos. Em nota, o sindicato relembra o caso da empresa no espetáculo “Fantasma da Ópera”, quando se recusou a pagar o atestado médico de gestantes que atuavam no evento.
Além disso, são comuns as denúncias contra o trabalho análogo à escravidão. Diversas figuras públicas, como o Padre Júlio Lancelotti, denunciam a TF4, sem consequências aparentes. Em postagem do Instagram, o padre, referência no trabalho social em São Paulo, relatou: “Hoje mais um irmão em situação de rua pediu um par de tênis para poder trabalhar na montagem das estruturas do Lollapalooza. Vários estão trabalhando na montagem do festival!”. Veículos da imprensa também já denunciaram a prática. Em 2019, a Folha de S. Paulo entrevistou diversos trabalhadores da montagem do festival, que afirmaram receber R$ 50 por uma jornada de 12 horas sem nenhum equipamento de segurança.
Perguntamos: um evento que claramente existe sob a exploração predatória da nossa classe é capaz de abalar as estruturas de fato contra esse governo? Acreditamos que não. A exposição que vem sendo realizada em torno das manifestações contra Bolsonaro no Lollapalooza não pode vedar os olhos para o fato que não se trata só de um festival que diz exaltar a diversidade, mas de um gigante no setor do entretenimento que atua como qualquer grande empresa. O figurino pode até ser bonito e jovem, mas no final o massacre sobre nossa classe é o mesmo.
É possível um evento assim sem essa estrutura?
A superexploração dos trabalhadores jogados na miserabilidade não são exclusividades do Lollapalloza. Pelo contrário, denúncias acerca de trabalho análogo à escravidão vem de todos os setores. Denunciamos ano passado o resgate recorde de 116 trabalhadores e trabalhadoras, da Fazenda Araçá, em Água Fria de Goiás (GO), onde estavam em situação extremamente precária, análoga à escravidão, a serviço da empresa mineira Souza Paiol. Infelizmente, a realidade nos mostra que esses números tem tudo para serem superados a qualquer momento.
É natural que trabalhadores e trabalhadoras dos setores mais pauperizados da sociedade se movam primeiro pela sua sobrevivência. Em um momento de crise, onde esse contingente de trabalhadores cresce ainda mais, a burguesia se aproveita para eliminar qualquer direito trabalhista possível. É o que vem acontecendo há anos no Brasil com sucessivas reformas, que não impactam em nada nossas vidas a não ser negativamente.
Assim, de um lado, temos que trabalhar cada vez mais para ter cada vez menos. Esse tem sido o cotidiano do brasileiro, que agora, após dois anos de quarentena, mal pode ter acesso a um entretenimento, por conta de valores absurdos que só servem o interesse de poucos empresários. Do outro lado, deixamos de dedicar nosso tempo a atividades que também compõe a produção cultural. Quantos trabalhadores e trabalhadoras, empurrados pelas condições materiais, deixam de ser músicos, pintores, poetas, escritores, entre muitas outras tarefas fundamentais que nos compõem enquanto humanos? No final, o destino do trabalhador no capitalismo é ser apenas uma máquina, sem direito a manifestar sua criatividade, e tampouco acessar a cultura. Somente trabalhar para uma classe parasita que não produz nada, apenas nos suga.
Portanto, falar em uma revolução é também falar do direito à manifestação criativa. Quando afirmamos que no capitalismo não é possível exercer nossa plenitude enquanto seres humanos, é justamente baseado em exemplos da gestão de um evento como o Lollapalooza no contexto atual. Em um governo dirigido por trabalhadores, não só a democratização à cultura deve ser garantida, como as condições para as manifestações criativas individuais também devem ser construídas. Um bom exemplo disso é a Rússia revolucionária, que ao longo do processo de transformação da sociedade na época, se empenhou em ampliar ao máximo o número de teatros nas cidades, além de estimular a poesia, a pintura e a literatura. Esse processo infelizmente foi deturpado pelo stalinismo, que sob a alegação da necessidade de uma estética “proletária” também perseguiu manifestações contrárias ao seu governo.
Uma revolução por cultura para todos e por todos!
Gostaríamos, portanto, de chamar as manifestações dos artistas e do público não só contra o governo Bolsonaro, mas contra todos que nos oprimem e exploram, como a T4F. Afinal, a cultura não pode ser um privilégio de poucas pessoas, ou um investimento pago à penúria de meses de parcelamento, ou até pior, ser fruto de condições de trabalho desumanas.
Lutamos para que ela seja um direito de todos os trabalhadores e trabalhadoras. E só conheceremos todo o nosso potencial criativo com uma revolução. Como disseram Trotsky e o pintor André Breton: “O que queremos: a independência da arte – para a revolução. A revolução – para a liberação definitiva da arte”. Convidamos a todos e todas, para além de gritar “Fora Bolsonaro” vendo seu show favorito, ou nas manifestações Brasil afora, a compor uma luta em prol de um futuro onde possamos ser quem realmente podemos ser, seja tendo direito a consumir arte, seja sendo um artista. Venceremos!