Suprema Corte dos EUA acaba com as políticas de ações afirmativas nas universidades
Wagner Miquéias F. Damasceno, da Secretaria Nacional de Negras e Negros do PSTU
Nessa quinta-feira (29/06), por seis votos a três, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América decidiu que as universidades estadunidenses não podem mais utilizar a raça como critério para admissão de estudantes. A decisão veio do julgamento da ação contra a Universidade de Harvard e da Carolina do Norte movida pela organização conservadora e racista Students for Fair Admissions – SFFA (Estudantes pela Admissão Justa, em inglês).
Com essa decisão, a Suprema Corte acaba com uma política de ações afirmativas no ensino superior estadunidense.
Em pouco mais de um ano, o judiciário estadunidense retira dois direitos emblemáticos dos trabalhadores e oprimidos. Isso porque, em junho do ano passado, a Suprema Corte derrubou a decisão do caso “Roe contra Wade”, de 1973, que garantia o direito ao aborto às mulheres nos Estados Unidos.
Ao contrário do que comumente se pensa, nos EUA não existe uma política de cotas, mas uma política de ações afirmativas que começou a vigorar em 1978. Essa política surgiu, justamente, no bojo de uma decisão da Suprema Corte sobre o caso Regentes da Universidade da Califórnia vs Allan Bakke. Na época, a Suprema Corte decidiu em favor de Bakke, um homem branco de 35 anos que havia sido rejeitado duas vezes no curso de medicina da Universidade da Califórnia (UCLA) e responsabilizava a reserva de 16 vagas – num universo de 100 vagas – para estudantes pobres, negros, indígenas, latinos e asiáticos feita pela UCLA.
Mas, apesar de declarar inconstitucionais a políticas de cotas raciais, nessa mesma decisão, a Suprema Corte dos EUA abriu a possibilidade do uso da raça como critério para admissão nas Universidades. Agora, a decisão tomada nesta quinta-feira reviu essa decisão.
Estados Unidos, um histórico de ataques aos negros
Os Estados Unidos da América são o país mais rico e poderoso do mundo e não cansam de reafirmar isso, nos filmes e séries que vemos por aí. Mas o que muito pouco se conta é que essa riqueza foi construída em base à exploração dos negros escravizados e dos trabalhadores.
E lá, assim como no Brasil, após séculos de escravidão negra, não houve nenhuma política séria de reparações aos negros e negras, com o fim da escravidão em 1865[1]. Ao contrário, o que houve foram décadas de políticas e leis segregacionistas que só foram derrubadas em 1968, com a luta por direitos civis. Reservas de vagas para estudantes não brancos em universidades como a UCLA, em 1970, só podem ser entendidas como resultado dessas lutas contra a segregação racial.
Contudo, mesmo antes da decisão dessa quinta-feira, as políticas de ações afirmativas já haviam sido derrubadas em vários estados, como na Califórnia em 1996, na Flórida em 2000 e no Arizona, em 2010. E nos estados onde as políticas de ações afirmativas desapareceram, a participação de negros, latinos e asiáticos diminuiu nas universidades e no mercado de trabalho.
Um sistema universitário privatizado e excludente
O sistema universitário estadunidense também é, historicamente, excludente. O processo de admissão universitária não é nada objetivo pois, além de provas, exigem-se coisas como cartas de recomendação e de apresentação. E os estudantes admitidos nas faculdades e universidades estadunidenses, sejam particulares ou públicas, devem desembolsar [muito] dinheiro.
Aliás, a privatização e a elitização do sistema universitário deram seu quinhão para a crise de 2008: muitos trabalhadores nos EUA se endividaram e hipotecaram seus imóveis para custearem os estudos de seus filhos.
Para conseguirem custear seus estudos, os jovens e trabalhadores recorrem a pesados empréstimos financeiros. O resultado é que, hoje, mais de 45 milhões de estadunidenses têm dívidas estudantis que, juntas, somam US$ 1,6 trilhão.
E esse endividamento é maior entre os negros e negras. Afinal, a combinação do racismo, do machismo e do capitalismo empurram os negros para os piores empregos e as mulheres negras para a base da pirâmide salarial. Segundo dados recentes, de 2015 a 2020, a dívida média dos estudantes negros cresceu 51%, em comparação com aumentos de 24% para estudantes brancos, 18% para estudantes asiáticos e 16% para estudantes latinos[2].
Mas, um dia após abolir a política de ações afirmativas, a Suprema Corte derrubou o perdão de U$ 400 bilhões das dívidas do financiamento estudantil.
Alguns analistas reformistas explicam todos esses ataques pelo caráter conservador e até reacionário da atual composição da Suprema Corte dos EUA, o que não é mentira. Afinal, além de seu caráter naturalmente burguês e conservador, o republicano Donald Trump deu o seu quinhão com a nomeação de três juízes mais alinhados a ele. No entanto, o problema desse tipo de explicação é que, além de parcial, preserva o presidente democrata, Joe Biden das críticas e ataques.
No caso das dívidas estudantis, o projeto enviado por Joe Biden para a Suprema Corte, pedia a suspensão de apenas 25% do total de U$ 1,6 trilhão. É importante lembrar que a suspensão das dívidas estudantis era uma das bandeiras da juventude negra estadunidense durante as eleições que deram a vitória para Joe Biden. Ademais, Biden manteve intocado o caráter privatista do ensino superior público dos EUA – lembrando seu correligionário Barack Obama, que não se enfrentou com os conglomerados da Saúde e descumpriu uma de suas grandes promessas de campanha de criação de um sistema público de saúde.
Essas duas recentes decisões da Suprema Corte estadunidense revelam, mais uma vez, o caráter de classe da justiça e que, sob o capitalismo, nenhum direito é intocável para os trabalhadores e oprimidos. Frente a isso, os jovens estudantes negros, latinos e asiáticos, em unidade com a classe trabalhadora devem tomar as ruas para protestar não só contra a Suprema Corte mas também para denunciar a inação e as traições do governo Joe Biden.
– Abaixo a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos contra as políticas de ações afirmativas!
– Por uma política de cotas raciais nos Estados Unidos, já!
– Pela anistia de todas as dívidas de financiamento estudantil nos Estados Unidos, já!
[1] “Andrew Johnson – com a fragmentação da coalização dirigida pelo Partido Republicano – negou qualquer reparação aos negros e negras, o que incluía a expulsão das terras que os ex-escravos ocupavam e a proibição ao voto. Em 1867 os chamados republicanos radicais conseguem imprimir um programa de Reconstrução Radical, com a aprovação da 14ª Emenda em resposta aos chamados códigos negros dos estados sulistas que cerceavam as liberdades dos negros. Ampliam o acesso à educação, e o direito ao voto para os negros e negras. Contudo, a congruência de interesses econômicos e fundiários entre os capitalistas do Norte e os latifundiários do Sul, bem como o temor de revoltas de brancos pobres e negros na esteira da grande depressão de 1873 fizeram com que democratas e republicanos enterrassem a Reconstrução, sem conceder de fato uma política de reparação aos negros pelos séculos de escravidão em solo estadunidense. Assim, o caminho ficou aberto para o fortalecimento do Partido Democrata no Sul e para o surgimento da organização terrorista e supremacista Ku Klux Klan”. Ver: https://teoriaerevolucao.pstu.org.br/sobre-os-escritos-de-marx-e-engels-acerca-da-guerra-civil-americana/. Acesso em: 30 jun. 2023.
[2] Ver: https://www.science.org/content/article/black-students-take-more-debt-and-get-fewer-slots-grants-data-show. Acesso em: 30 jun. 2023.