Toinho Melodia: Tudo no seu tempo, sem pressa, nem correria, só na malemolência
Quando se encontra alguém repentinamente, com quem se tem uma ligação de raça e de classe, e com suas críticas sociais musicadas de forma tão brilhante, como escrever e homenagear se você recém o conheceu e de pronto se apaixonou? E, ao mesmo tempo, descobre que ele não está mais entre nós?
Sinceramente, não sei prever como terminará este artigo, mas tenho certeza de que preciso redigir algumas linhas sobre Toinho Melodia, o qual encantou tardiamente tanta gente boa.
Esse pernambucano de origem e paulista de coração completaria 74 anos neste dia 5 de junho. Tornou-se pintor de paredes aos 13 anos de idade, escreveu e interpretou composições que revelam a disparidade social e racial e também a dureza da vida nordestina e todos os preconceitos que passam no processo de migração forçada para as grandes metrópoles. Mas resistem, lutam e superam essas dificuldades.
Mesmo tardiamente, evocam o que há de melhor nas suas vidas: um talento absurdo, que muito traduz nossas vidas sertanejas, nordestinas, periféricas e negras neste país. A carreira de Toinho foi recebida de modo fraterno, junto a tantos compositores e artistas, como o coletivo Kolombolosp, que o acolheu em momentos difíceis de sua vida, e especialmente o Conjunto Picafumo, parceiro de 2013 até 2021, ano em que Toinho partiu. Sustentaram todo o projeto de gravação de seu primeiro registro, em 2018, Paulibucano, em parceria com a comunidade do samba paulista e o financiamento coletivo desse marco.
Afinal, quem foi Toinho Melodia?
Em 1950, no dia 5 de junho no Recife (PE), nascia Antônio Freire de Carvalho, filho de Eugênia Freire Ramos e neto de Dona Isaura. De família musical, a avó de Toinho Melodia era autodidata em gaita, e sua família participava da Escola de Samba 4 de Outubro, do bairro de Casa Amarela, no Recife. Como milhares de famílias nordestinas, aos 11 anos, em 1962, mudaram para a capital paulista e ocuparam o Morro de Vila Maria, na Vila Sabrina, Zona Norte de São Paulo.
Apaixonado pelo futebol e torcedor fanático (como tem de ser) do Santa Cruz, o Santinha, Toinho sempre se autodenominava, com orgulho, “o melhor lateral direito do seu tempo”. Desde os 14 anos, frequentava as rodas de samba ao lado do campo do Universal Futebol Clube. Morava nos fundos de uma escola de samba, a qual dizia não resistir “aquele batuque todo”, frequentava escondido de sua mãe as noitadas de samba. E não demorou pra ser levado para a Escola de Samba Unidos do Morro de Vila Maria para tocar caixa e a cantar.
A partir daí, sua convivência com os baluartes da escola e bambas do mundo do samba, como Toniquinho Batuqueiro, Dito Caipira, Talismã, Jangada e outros, e sua paixão pelo samba só aumentaram e renderam frutos. Toniquinho, ao ver seu talento, malemolência e melodia o batizou com o nome artístico de Toinho Melodia. Ele passou a integrar a Velha Guarda do samba paulista, as comunidades como o Samba da Vela, Terreiro de Compositores, Samba de Todos os Tempos e Kolombolo Diá Piratininga.
Sua carreira transcorreu entre diversas escolas de samba, principalmente a Unidos de Vila Maria, mas também Vai-Vai, Peruche, entre outras, sempre com a marcante participação nas alas de compositores e intérpretes. Porém, por algumas desavenças com a diretoria, desligou-se da Vila Maria e ficou distante das escolas de samba por quase 25 anos.
Nesse período, ao ser diagnosticado com câncer de próstata aos 50 anos, o qual o impossibilitou de trabalhar, tomou a decisão difícil de morar nas ruas de São Paulo por acreditar que não podia mais ajudar sua família como deveria. Foi resgatado das ruas por amigos do samba, como Chapinha, do Samba da Vela, e retomou sua carreira em 2009. Em 2013, veio o grande auge de sua carreira junto aos parceiros do Conjunto Picafumo.
Por isso, é impossível passar pela arte do Mestre Toinho e não reverenciar seu talento particular para composição de sambas em junção aos mais diversos ritmos e tradições musicais do nordeste brasileiro. E que ele faz lembrar a aparição tardia para a música e outras artes, como foi o caso de Cartola, Dona Ivone Lara, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Candeia, Jovelina Pérola Negra, Geraldo Filme, Jackson do Pandeiro (que tanto inspirou e influenciou Toinho) entre diversos outros artistas, compositores de peso e essenciais na música popular negra e brasileira. Viva Toinho!
Musicalidade e identidade de classe e raça
Ao iniciar a pesquisa sobre sua obra e vida, deparei-me com uma conversa, que seria breve e dura até hoje, com minha camarada Irene Maestro, liderança do movimento por moradia Luta Popular em São Paulo. De pronto, ela revelou outra arte do Mestre Toinho, sua solidariedade, ligação em apoio ao movimento e seus semelhantes nordestinos, em sua maioria nas ocupações e periferias de São Paulo.
Perante um incêndio que abalou a comunidade Esperança, em Osasco, no dia 13 de setembro de 2016, Toinho Melodia fez questão de ir até o local reerguer a moral e fortalecer a disposição para a luta com sua arte e seu samba em dezembro daquele ano, próximo às comemorações natalinas, junto com seus parceiros do Conjunto Picafumo.
Foram recebidos carinhosamente pelas mulheres da ocupação com seu samba “Desfecho Cruel”, composição de Rodolfo Gomes, Toinho Melodia e Ricardinho Olaria. A música trata desses eventos nas grandes favelas de São Paulo, principalmente nos anos 1990, quando o início da expansão e da especulação imobiliária caminhava à beira de crimes muitas vezes. O encontro se tornou uma verdadeira roda de samba e palco de muitas conversas, prosas e protestos noite adentro e foi documentado.
Combate ao racismo e injustiça social
Toinho sempre foi engajado, sabedor das mazelas sociais e da necessidade de seu combate. O racismo e a violência policial eram coisas que mais o incomodavam em sua vivencia desde o Recife. Em entrevista ao site Elástica, da editora Abril, em julho de 2020, Toinho Melodia fez extenso relato de algumas ocorrências em sua vida e sobre a juventude negra.
Ele relata que vivia levando “enquadro” da PM e, em um deles, relatou: “Eu comprei um Dodge Polara vermelho [moderno veículo pequeno-médio], zero quilômetro e tinha dois serviços para fazer. Abri a porta do carro para pegar ferramentas, uns policiais viram e acharam estranho um preto abrir um Polara. Eu estava no meio de muita gente, mostrei meus documentos, mas eles revistaram mesmo assim. Reviraram, não acharam nada e saíram com aquela cara de merda”. Sob a indignação desse ato racista recorrente até os dias de hoje, nasceu um de seus sambas, “Liberdade Sofrida”.
Já sobre a morte violenta de negros e jovens pela polícia, Toinho dispara sua irritação e indignação (no dia da entrevista, lamentava a morte de Guilherme Silva Guedes, 15 anos, suspeito de ter sido assassinado com dois tiros na cabeça por um policial militar em São Paulo): “Um jovem parado na frente de casa é morto desse jeito. Isso me mata, cara. Lembro também dos caras ‘encurralados’ no baile funk em Paraisópolis… Fico triste de ver o extermínio da juventude negra”. Tornou essas lamentáveis mortes em um de seus sambas mais ouvidos e reverenciados, “La Bolivia”, em que ao final faz um verdadeiro desabafo: “Aqui não é Hollywood, as balas não são de festim. Se foi mais um filho de Maria, essa história está longe do fim! Essa história do genocídio da juventude negra do Brasil, precisa acabar!”.
Parcerias, projetos e canções
Como era impossível conhecer Mestre Toinho sem encontrar o Conjunto Picafumo, foi outra imersão nessa parceria que me revelou todo seu talento e fez brotar seu primeiro álbum, aos 68 anos de vida, com composições mescladas de uma brasilidade e um toque de África, jamais ouvidos por este sujeito aqui. Destaque para os arranjos perfeitos de suas composições, liderados por Rodolfo Gomes, Felipe Siles e Matheus Nascimento, do Conjunto Picafumo.
Essa interação e produção musical com a juventude fizeram nascer variações muito interessantes que lhe agradaram muito. Foi uma incursão na música jamaicana, em um projeto batizado de Toinho Dub, o qual deu nova roupagem às suas composições com a malemolência do reggae.
Conheci algumas fontes de suas inspirações, parcerias e sucessos com nomes de peso, como Seu Carlão do Peruche (grande amigo e parceiro), Osvaldinho da Cuíca, Padeirinho, Tantinho da Mangueira; seus mestres Toniquinho Batuqueiro, Talismã e Jangada; além das obras de Jackson do Pandeiro e João Nogueira, que inspiraram sua vida e obra.
Ao longo do trajeto da pesquisa, os cantos e encantos só se multiplicam. Suas parcerias com cantoras e intérpretes da vida do samba paulistano se tornam marca própria de sua generosidade e companheirismo. Entre elas, está Roberta Oliveira, agraciada com um lindo samba, “Canção para Roberta”; Adriana Moreira e sua linda voz em um de seus clássicos com traços nordestinos, “Aboio”; Raquel Tobias, personalidade marcante na comunidade do samba, compositora, intérprete de vasto repertório do samba a black music, além de escritora (Aqui, tudo é samba, Raquel Tobias, Editora Kazuá).
Bom, a lista é imensa, mas resumo nessas três parceiras em nome de todas as demais. Parceiras de música e de vida de Mestre Toinho. E essas interações para justificar a paixão repentina pela sua obra, vida e generosidade e localizar a grandeza do compositor, intérprete e cantor que foi Antônio Freire de Carvalho Filho, nosso Toinho Melodia.
A imortalidade de Mestre Toinho
Em meados de 2020, Toinho foi diagnosticado com mieloma múltiplo, um tipo raro de câncer, que não tem cura ainda. Passou por um tratamento de quimioterapia de altos e baixos. Toinho encarou mais essa batalha na vida, com muita confiança e vontade de viver, sempre remetendo suas crenças e esperança por uma vida melhor aos seus iguais.
Lamentavelmente, o Mestre Toinho Melodia teve uma parada cardíaca no dia 11 de novembro de 2021 e não resistiu. Lutou bravamente uma vida inteira, deixando belos sambas e relatos de vida fundamentais para encararmos as mazelas sociais, ainda mais fortes, e celebrar nossa ancestralidade negra e guerreira com sua arte e obra.
Toinho deixou quatro filhos e sua sempre presente companheira nas batalhas, Claudia, que foi sua parceira nos melhores e mais desafiadores anos e momentos de sua vida, principalmente no seu auge profissional, quando finalmente ele viveu o reconhecimento artístico que tanto merece de todos nós. A ela, deixamos nosso carinho e solidariedade por compartilhar conosco o “Veinho”, como ele mesmo gostava de se autodenominar.
O caso de Toinho e de tantos outros artistas negros, que tardiamente conseguem alcançar algum grau de reconhecimento ao seu talento e sua arte, revelam as desigualdades e os privilégios do capitalismo e da burguesia branca que dominam o cenário da música e das artes em geral. Enquanto isso, artistas como Toinho passam a maior parte da vida entre a miséria e a pobreza na luta incansável pela sobrevivência.
Por isso, a luta por reparação histórica pelos quase 400 anos da escravização de negros e negras no Brasil, traficados do continente africano, também é a luta por memória, reconhecimento, arte e talento da nossa classe e do povo negro, que resistem a tudo isso e bravamente reluzem em Toinho, Cartola, Dona Ivone Lara, Jackson do Pandeiro e tantos outros mestres e bambas, com seus legados e histórias e no fortalecimento do talento e da luta da juventude negra em nosso tempo.
Homenagem à imortalidade de Toinho
Em homenagem à obra de Toinho, inclusive com composições inéditas, o Conjunto Picafumo se apresentou em memória de seu nascimento (5/6/1950) e à sua imortalidade, na Casa de Francisca, em São Paulo, no mês de junho. Lá encontrei esta juventude e seus contemporâneos para saudar esse negro, nordestino, sambista de tantas qualidades mais, Antônio Freire de Carvalho, nosso Toinho Melodia.
E quem sabe essa história de vida, de luta, talento e paixão (com a qual nos identificamos como negros, nordestinos, periféricos) seguirá em outro artigo… Aguardem!
Viva Toinho Melodia, hoje e sempre!