Trump e Musk versus George Floyd e os rumos da luta antirracista nos Estados Unidos

Dias atrás, Elon Musk fez uma sinalização nas redes sociais de que poderia ser revista a sentença de Derek Chauvin, que foi o policial responsável por colocar o joelho no pescoço de George Floyd, asfixiando-o até o último suspiro. Musk escreveu “algo para pensar” ao republicar a postagem do comentarista Ben Shapiro, que pede que Donald Trump perdoe Derek Chauvin, condenado a 22 anos e meio de prisão.
Essa condenação foi possível devido a rebelião antirracista que sacudiu os Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. Floyd se transformou em símbolo internacional da luta contra o racismo.
Por isso mesmo, essa sinalização de Musk, que é o chefe do Departamento de Eficiência Governamental do governo Trump, deve ser levada muito a sério, pois isso é parte do programa que eles prometeram implementar contra os setores oprimidos, a quem a extrema-direita atribui as causas de todos os males que afetam a sociedade norte-americana. Para eles, a decadência da sociedade não seria produto da crise do capitalismo, mas de uma suposta ascendência dos setores oprimidos e das políticas de diversidade, chamadas genericamente de “agenda woke”.
À época Trump era o presidente e até hoje não engoliu ter sido emparedado por uma multidão, em nome de um preto favelado, desempregado e ex presidiário. Na visão dessa gente, um policial branco não pode ser condenado por ter assassinado um negro plebeu.
A família Musk, o nazismo e regime do apartheid
Musk é parte daqueles que estão reanimando teorias raciológicas defensoras da impossibilidade da existência de igualdade entre seres humanos biologicamente diferentes. Seria isso, e não a opressão histórica, que explicaria a alocação de cada um desses grupos na sociedade. Assim, a situação das desigualdades entre negros e brancos não seria produto da opressão racial, mas consequência da natureza biológica existente entre negros e brancos. O mesmo se aplicaria as mulheres. Já a simples existência de pessoas LGBTIs seria uma invenção cultural da esquerda marxista.
Assim, seria inútil adotar políticas reparatórias, de diversidade ou mesmo ações afirmativas para minimizar ou reparar essas desigualdades, já que a origem das mesmas não seriam sociais, mas naturais, biológicas. E se, para eles, Deus é o organizador da natureza, então, em última instância, os grupos que lutam contra as opressões estariam lutando contra a natureza e o seu criador, Deus. Biologia e Teologia seriam as duas grandes rochas contra as políticas ditas igualitárias. Esse tipo de raciocínio flerta com o darwinismo social, e o histórico da família Musk está umbilicalmente ligada a esse tipo de teoria racista. Aliás, não só o histórico, mas suas riquezas.
O pai de Elon Musk, Errol Musk, declarou em um Podcast que os avós maternos de Musk, Joshua e Winnifred Haldeman, eram “muito fanáticos pelo Apartheid.”. Ele revelou que os mesmos “Foram para a África do Sul, a partir do Canadá, porque simpatizavam com o governo africâner. Eles apoiavam Hitler. Não creio que soubessem o que estavam fazendo os nazistas, mas no Canadá estavam no Partido Nazista [o da Alemanha] e simpatizavam com os alemães”.
Na verdade, Errol Musk esqueceu de falar que os avós de Musk estavam entre os fundadores do Partido Nazista canadense. O avô de Musk chegou a declarar que “África do Sul se tornará o país que liderará a civilização branca no mundo”. Sim, ele estava se referindo ao regime do apartheid.
Errol Musk mostrou-se, ainda, feliz por ver o filho “aceitando quem ele realmente é”, ao entrar no governo Trump. De fato, Musk é isso, um supremacista branco, um burguês racista e machista da pior espécie, tal como foram seus familiares, a ponto de romper relações com a própria filha por ser uma mulher trans. Bem diferente daquilo que muita gente anda falando por aí, Musk não girou para a extrema-direta porque descobriu que sua filha era trans. Ele rompeu com a filha trans pelo histórico supremacista e opressor da sua própria família.
Daí porque essa gente não cansa de falar em meritocracia e livre mercado. Para eles, o mercado seria o ambiente onde as potencialidades biológicas dos indivíduos se manifestariam em toda a sua plenitude, principalmente em razão da divisão do trabalho. Se negros e mulheres estão em posições de subalternidades nesses espaços, isso não teria a ver com opressões históricas, mas com as estruturas biológicas desses grupos. De modo que políticas de diversidades seriam uma forma de o Estado interferir na organização da natureza, impedindo que os homens, os brancos e os héteros desenvolvam suas potencialidades. Por isso, nos discursos deles, são os homens, os brancos e os héteros, os verdadeiros oprimidos e não o inverso.
Um dos principais teóricos que essa nova direita e extrema-direita reivindicam para defender tais aberrações é o economista Murray Rothbard, quem defendia que os grupos oprimidos parasitavam o Estado e, por isso mesmo, se colocava contra qualquer tipo de política de diversidade e de igualdade. E é exatamente isso que Musk e Trump defendem. Por isso, um dos primeiros atos de Musk no governo Trump foi retirar do ar o site da agência de diversidade.
Mas quem de fato parasita o Estado: os oprimidos ou Musk?
Como vimos, a família Musk acumulou riquezas com o apartheid na África do Sul, mas também explorando o tráfico de esmeraldas na Zâmbia, onde compraram ações de minas ilegais. Musk não ficou rico, ele nasceu no “berço de esmeraldas ilegais” de seus pais e se alimentou com o sangue derramado por milhares de negros pelo regime de segregação racial que seus familiares apoiavam.
É fato que de milionário ele se transformou em um bilionário, mas o que ele e Trump escondem é que as empresas de Musk receberam pelo menos US$ 38 bilhões (R$ 221,2 bilhões) em contratos governamentais, empréstimos, subsídios e créditos fiscais, tudo isso do mesmo Estado que Musk promete desparasitar. Eles escondem que Musk se transformou no homem mais rico do mundo parasitando o Estado mais poderoso do mundo. Uma das suas empresas, a SpaceX, é sustentada quase exclusivamente com recursos da NASA, ou seja, com recursos desse mesmo Estado. Na cerimônia de posse do governo Trump, Musk fez um gesto em alusão ao nazismo, mas agora está tentando colocar em prática o que o ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, ensinava: que uma mentira dita 100 vezes se transforma em verdade.
Ao contrário da dinheirama e dos benefícios que Musk ganhou do Estado americano, do regime do apartheid e do tráfico de esmeralda, os afro-americanos nunca foram reparados pelo Estado norte-americano pela escravidão, pelo tráfico negreiro e pela segregação secular do Jim Crow.
Assim como o Brasil, os Estados Unidos fizeram a independência preservando a escravidão. Foi somente com a Guerra Civil (1861-1865) que a escravidão foi abolida. Mas, mesmo assim, uma década depois, organizações como a Ku Klux Klan impuseram o Jim Crow, regime de segregação racial que perdurou por quase um século, de 1877 a 1964. Ou seja, democracia burguesa para todas as raças nos EUA é algo relativamente recente e só foi possível em razão da luta pela derrubada do Jim Crow. Ela não foi produto da benevolência de gente como Musk e Trump. Mesmo assim, a situação dos afro-americanos mudou muito pouco com essa democracia dos ricos e George Floyd é a mais pura expressão do tipo de Estado que Trump e Musk defendem: um Estado que, em vez de reparar, continue assassinando negros pobres.

Foto: Getty Images
E a rebelião antirracista de 2020 foi fechada?
Esse é um bom debate. Uma parte do ativismo olha para a vitória de Trump como se fosse a palavra final a respeito da rebelião de 2020. Acreditamos que o crescimento da ultradireita é um fato indiscutível e que coloca o movimento na defensiva. Não considerar isso seria miopia sectária em direção a uma cegueira política. Mas isso não define tudo a respeito de 2020, muito menos o que pode acontecer mais adiante.
O que ocorreu ali foi uma traição seguida de frustração. Ao Black Live Mathers coube a tarefa de conduzir essas lutas para dentro do Estado com o qual as massas se enfrentavam. Assim, o democrata Joe Biden foi eleito, tendo a afro-americana, Kamala Harris, como vice. Donald Trump foi derrotado naquelas eleições e a rebelião antirracista foi fundamental para isso, mas, ao mesmo tempo, foi desmontada pelos mesmos grupos que apoiaram Biden.
A retórica de que Biden seria o único capaz de derrotar Trump em 2020 é falsa. Afinal Biden seria mais capaz de resolver os problemas históricos dos oprimidos do que um movimento antirracista que envolveu milhões de pessoas e emparedou republicanos, democratas e a burguesia dos Estados Unidos?
Feito o serviço sujo, a situação dos afro-americanos não melhorou, Biden e Kamala financiaram abertamente o genocídio do povo palestino, deportaram milhares de imigrantes, atacaram os trabalhadores, os oprimidos e não fizeram nenhum tipo de política séria de Reparação.
Porém, é importante fazer um lembrete histórico. A rebelião de 2020 foi diferente de quase todas as rebeliões antirracistas do passado (as de 1833, 1863 e 1943), mas com características parecidas com a rebelião de Detroit de 1967. Nas outras foram confrontos armados diretos de grupos negros contra supremacistas brancos. A Rebelião de 1967 estourou 3 anos após a queda de Jim Crow e das promessas de melhoria das condições de vida dos afro-americanos e foi a mais importante do país. Frustrações também podem ser precedentes de rebeliões.
2020, assim como Detroit de 1967, não foi um confronto armado entre afro-americanos e supremacistas brancos, mas confrontos de massas contra o poder, contra o Estado e tudo o que representava a opressão e a exploração capitalista. E não foram rebeliões exclusivamente raciais, mas antirracistas atravessadas pela pandemia, desemprego, e muito ódio de classe. Isso não quer dizer que, inevitavelmente, vai acontecer uma nova rebelião antirracista contra Trump. Não é isso, até porque somos marxistas e não visionários ou teleológicos. Mas, estamos colocando uma possibilidade que pode ou não se realizar, assim como não está descartada a possibilidade de confrontos raciais armados, pois já há registro de resistência armada de afro-americanos em Ohio contra manifestações de grupos nazistas, tal como uma onda de manifestações e ataques as lojas da Tesla, empresa automobilística e de armazenamento de energia de propriedade de Musk. Mas, se tais manifestações se massificarem, o mais provável é que sejam processos mais próximos daqueles ocorridos em 1967 e 2020 do que os de 1833, 1863 e 1943.
O refluxo, que é um fator objetivo, não implica dizer que o processo se fechou. Donald Trump, mais que ninguém, sabe disso, e por isso mesmo está tentando ganhar tempo para fechar o processo que o obrigou a se esconder num bunker da Casa Branca quatro anos atrás.
No inicio do seu segundo mandato, Trump anistiou os dois policiais que assassinaram em 2020 um homem negro de 20 anos, Karon Hylton-Brown. Porém, absolver Chauvin não parece uma atitude sem riscos. Trump vai precisar, sim, destruir com a simbologia antirracista que George Floyd imprimiu na consciência de milhões de americanos. Essa é uma guerra simbólica de conteúdo essencialmente politico, que eles precisarão travar, porém o problema é: como fazer isso sem desatar uma nova rebelião antirracista? Absolver Chauvin significaria condenar George Floyd a uma segunda morte e minimizar o significado politico da rebelião de 2020. É muito importante acompanhar esses processos e seus desdobramentos com bastante atenção.