Corte Interamericana de Direitos Humanos condena Brasil por violar direitos quilombolas no Maranhão

Os quilombolas de Alcântara, no Maranhão, obtiveram uma vitória histórica na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Em sentença divulgada no dia 13 de março, a Corte condenou o Brasil pela violação dos direitos humanos de 171 comunidades quilombolas, em função da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), uma base de lançamento de foguetes, que levou à remoção das famílias.
Para a Corte Interamericana, a não titulação do território quilombola e a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades (principalmente em relação às medidas que poderiam afetá-las), constituíram violações de direitos pelo Estado brasileiro.
O Opinião Socialista conversou com Danilo Serejo, cientista político e bacharel em Direito que atua, desde 2012, como assessor das comunidades atingidas pelo Centro Espacial de Alcântara. Na entrevista, ele avalia que o significado da condenação vai para além da luta dos quilombolas de Alcântara, e destaca a sua importância para ser utilizada na luta pela titulação dos territórios quilombolas de todo o Brasil. “A decisão alcança a agenda quilombola como um todo no país”, sintetizou ele.

Danilo Serejo, cientista político e bacharel em Direito | Foto: Arquivo Pessoal
Recentemente, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violar os direitos humanos de 171 comunidades quilombolas que vivem em Alcântara (MA). Isso tem a ver com a construção e a implementação da base de lançamento de foguetes, certo?
Esse é um caso que tramita no sistema interamericano desde 2001, quando foi apresentado na Comissão Interamericana. Em 2021, a Comissão apresentou o “relatório de méritos”, uma série de recomendações ao Brasil, mas essas recomendações nunca foram cumpridas. Em função disto, a Comissão encaminhou o caso para a Corte Interamericana, que dentro do sistema interamericano é quem efetivamente julga os países e que emite uma sentença.
O caso de Alcântara chegou na Corte Interamericana em 5 de janeiro de 2022. Em 26 e 27 de abril de 2023, ocorreu a audiência pública de julgamento do caso. Quase dois anos após a audiência pública de julgamento, veio a sentença, condenando e responsabilizando o Estado brasileiro pelos crimes e violações ocorridas desde a implantação da base espacial em Alcântara, na década de 1980.
E qual é a importância dessa decisão?
Essa condenação tem vários significados muito importantes para a luta quilombola. Primeiro, porque é a primeira condenação do Brasil no Tribunal Internacional, por crimes, violações e violências praticados pelo Estado brasileiro contra comunidades quilombolas. Segundo, porque é a primeira vez que os militares das Forças Armadas têm os seus interesses e os seus crimes expostos, confrontados e julgados, também no Tribunal, no caso militares da Aeronáutica. Terceiro, a condenação se dá, segundo o entendimento da Corte, porque as violências e crimes ocorreram em função da discriminação étnico-racial das comunidades. O Brasil, pode-se dizer, está sendo condenado pelo crime de racismo institucional, praticado contra as comunidades.
E quarto, mas não menos importante, é que temos, aí, um importante precedente jurídico no sistema interamericano para a proteção de comunidades quilombolas do Brasil, especialmente no que diz respeito à proteção do instituto da propriedade coletiva para a proteção de comunidades quilombolas. Por conta disso, eu avalio que essa é uma decisão que extrapola, que vai para além do seu efeito simbólico e prático mesmo. Vai para além das comunidades de Alcântara. Ela alcança outras comunidades, alcança a agenda quilombola como um todo no país.
E há um prazo para cumprimento dessa sentença?
Em três anos, o Estado brasileiro deverá cumprir a sentença. O Estado, nesse período, vai ficar responsável por mandar um relatório (anual) para a Corte Interamericana, dizendo em que pé está o cumprimento da sentença. Claro, de nossa parte, vamos fazer o nosso contrarrelatório, colocando a nossa versão.
O caso não está encerrado na Corte Interamericana. O caso só se encerra quando ficar comprovado que o Estado brasileiro cumpriu todo o conteúdo da sentença. Portanto, a Corte vai continuar acompanhando o caso pelos próximos anos.
Hoje, segundo o IBGE, o Maranhão é o segundo estado com a maior população quilombola. Está atrás apenas da Bahia. Mesmo assim, a quantidade de territórios quilombolas titulados no Maranhão é de apenas 74 comunidades. Sendo que 71 delas foram tituladas pelo governo do estado, através do Instituto de Terras do Maranhão (Iterma). E apenas três foram tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Por que o governo federal é tão lento nesse processo de titulação?
Isso não é só no estado do Maranhão. Esse dado do Maranhão reflete a realidade nacional. No Brasil, nós temos mais de 6 mil territórios quilombolas e pouco mais de 200 comunidades são tituladas. Isso reflete o racismo. O racismo institucional e estrutural que, neste caso, se materializa pela negação do direito dessas comunidades.
Tem um estudo, de uma organização chamada Terra de Direitos, que diz que se o Brasil continuar nesse ritmo de hoje, vai demorar quase dois mil anos para titular todas as terras. Só o racismo explica isso.
E, aí, quanto mais você não titula, quanto mais você nega o acesso à terra, mais você opera com o critério da insegurança jurídica e você expõe essas comunidades à toda a sorte de violência, especialmente nos conflitos agrários. Quando o Estado não avança no processo de titulação, o capital avança sobre os territórios dessas comunidades, matando e expulsando sua população. Não é à toa que o Maranhão, há anos consecutivos, também vem liderando o ranking dos três primeiros estados que mais assassinam lideranças de povos e comunidades, especialmente quilombolas, em função de conflitos de terra.
O governo Lula, no final do ano passado, anunciou 11 decretos que destinaram a entrega de 21 títulos de domínio de terra às comunidades quilombolas de sete estados, inclusive de territórios quilombolas no Maranhão. Isso foi muito comemorado, principalmente pela Secretaria da Igualdade Racial e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Na época você recomendou cautela na comemoração. Por que?
Recomendei cautela porque o acordo não encara o problema central de Alcântara, que é a titulação. Ele gira em torno de uma concepção que diz que o governo tem, da data de assinatura em diante, até dois anos para assinar e entregar o título de propriedade de Alcântara.
Mas, além de gerar uma expectativa de título (ou seja, da promessa de entrega de título), os termos do acordo não oferecem nem uma salvaguarda de proteção para as comunidades em caso de descumprimento de uma das cláusulas pelo Estado brasileiro, incluindo os militares. Nada assegura que o governo ou que os militares descumpram ou rompam com o acordo que foi feito.
Eu me posicionei contra o acordo que foi feito. Mas, dentro das organizações de Alcântara, fui voto vencido na época.
Há indícios de que este acordo não será cumprindo?
Ao longo desses 40 anos, Alcântara tem um histórico de acordos com o Estado brasileiro, inclusive acordos judiciais, mas que o Estado nunca cumpriu. A ordem judicial de titular territórios de Alcântara já existe desde 2008, fruto do acordo que foi feito entre as comunidades, o Estado brasileiro e a União. O compromisso de não avançar, de não expandir a base espacial sobre o litoral de Alcântara, também é objeto de um acordo judicial. Mas, nada disso foi respeitado.
Esse acordo, enfiado goela embaixo pelo Estado brasileiro, pelo governo Lula, tinha um único objetivo: se antecipar à sentença da Corte, que naquela época, ainda não existia. O objetivo era tentar esvaziar o seu conteúdo, especialmente no que diz respeito à obrigatoriedade, ao reconhecimento da responsabilidade e à obrigatoriedade de titular [os territórios quilombolas] e, ainda, buscava proteger os interesses dos militares.
Tem uma grande diferença, do ponto de vista material, entre você cumprir um acordo que foi feito, um acordo juridicamente frágil, e você cumprir a sentença da Corte. O Estado é obrigado a cumprir a sentença. Já o acordo pode ser rompido a qualquer hora. A sentença, não. É por isso que, agora, o que vai conduzir o debate com o Estado não é mais o acordo. O que vai guiar o debate com o Estado é a sentença. Porque a sentença tem peso muito maior do que o acordo.
A gente está vendo o governo emitir várias concessões de domínio de terra, de uso da terra, mas isso não é titulação de fato, porque é muito frágil. Afinal, quem concede pode, no futuro, também “desconceder”. Vai depender do governo de plantão. Vou citar um exemplo concreto. Em 2023, o território de São Vicente, a ilha de São Vicente, em Tocantis, recebeu um documento com uma concessão de domínio de terra, de posse, mas isso não é titulação. Há outros casos semelhantes. Como é que você avalia isso?
Tem alguns casos aqui no Maranhão, em Alcântara mesmo. Essa não tem sido uma prática só do governo Lula. O governo Bolsonaro fez isso em Alcântara, como no caso das agrovilas. Entregou documentos individuais de terra para as famílias, de concessão de uso. Aí, temos dois problemas. Nós estamos falando de um território reconhecidamente quilombola, então não se pode entregar título individual. E o outro problema é que não é um título individual, é uma concessão de uso.
É uma violação flagrante de toda legislação que trata da regularização e demarcação e titulação de territórios quilombolas.
Voltando ao exemplo do território de São Vicente, no Tocantins, o “Artigo 4” desse decreto, explica que a declaração de interesse social não impede a implementação e operação de infraestrutura para o aproveitamento do potencial energético ou minerário no imóvel. Ou seja, abre a possibilidade para a instalação de hidroelétricas e atividades ligadas a mineração. Como você avalia isso?
É muito difícil porque, se você for pensar do ponto de vista da Convenção 169 da OIT [Convenção da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário], por exemplo, por se tratar também de questão minerária, antes de qualquer coisa, o governo teria que estabelecer uma consulta prévia, livre e informada, para discutir com a comunidade o uso disso. Então é muito complicado.
Mas, essa é uma prática que o governo Dilma também já tinha feito. Na época, quando o governo Dilma foi publicar o decreto de interesse social, do território do Brejo dos Crioulos, em Minas Gerais, ela fez algo parecido. Então é uma lógica recorrente dos governos do PT. Todas as vezes que eles se veem confrontados com os interesses dos grandes empresários, é mais fácil continuar violando os direitos das comunidades quilombolas do que enfrentar os interesses do capital.
Como você avalia o papel do governo do estado, Carlos Brandão (PSB), que, no final de 2023, sancionou a Lei 12.169, apelidada de “Lei da Grilagem”?
A antiga Lei de Terras já vinha sendo objeto de discussão e de reformulação, há muito tempo, ainda no governo Flávio Dino (PSB). Na época, as organizações do campo do Maranhão chegaram a se organizar e criaram uma proposta popular de leis de terras, entregue a Flávio Dino. [A proposta] foi protocolada no gabinete de Flávio Dino, mas foi ignorada por ele. O que deixou todo o caminho pavimentado para o Brandão, que é uma pessoa ligada ao agronegócio. Numa articulação muito rápida, no final de 2023, a Assembleia Legislativa aprovou a lei, depois sancionada pelo governador, eliminando com isso toda e qualquer possibilidade de reação ou de incidência da sociedade civil organizada em torno dessa agenda.
A nova lei de terra veta a regularização de terras que estejam sob a posse de povos e comunidades tradicionais. Por isso, ela é chamada de “Lei da Grilagem”, porque ao vetar a regularização pelos povos e comunidades tradicionais, ela facilita a entrada do grande capital.
A Ilha do Cajual [localizada em Alcântara] é alvo de um projeto para construção de um porto ligado a uma ferrovia, para escoar a exportação de commodities [recursos minerais, naturais, agrícolas]. Mas existe na ilha uma comunidade quilombola. A ilha também abriga um incrível sítio paleontológico. Como é que você avalia isso?
É um projeto gigantesco, um megaprojeto, que vai cortar o Maranhão, conectando Alcântara ao Sul do estado, no município de Açailândia. Vai gerar uma série de impactos. Eles ainda estão buscando financiamento, mas o projeto já está todo pronto e desenhado. Já apresentaram o pedido de licenciamento para operação, realização de estudos ambientais no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Só que a empresa, a Grão-Pará Maranhão (GPM), apresentou dois pedidos separados, um para o porto e outro para a ferrovia. O Ibama pediu para juntar tudo em um só estudo. Pra driblar as dificuldades com o Ibama, a empresa solicitou a abertura do licenciamento na Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Maranhão (Sema), que simplifica o procedimento e facilita a instalação.
Mas isso é um procedimento absurdamente ilegal, porque a Ilha do Cajual é um território de competência do governo federal. Quem tem incidência para atuar ali é o Incra e a União. Aliás, o Estado tem várias obrigações ali.
Primeiro, porque é uma área de proteção ambiental, que está dentro da área de Reentrâncias do Maranhão. Segundo, são comunidades quilombolas. É um território quilombola reconhecido, com processo de realização em andamento e uma ação civil pública, com sentença favorável às comunidades, em primeira instância, que obriga a União a concluir o processo de titulação. Terceiro, é uma área que tem um grande sítio paleontológico. Além disso, é uma área que já está com o decreto de interesse social publicado e já tem a portaria de reconhecimento.
Não é uma área tão fácil (do ponto de vista jurídico) para a empresa se estabelecer, principalmente agora, após a condenação na Corte Interamericana.
Em outubro do ano passado, o Movimento Quilombola do Maranhão ocupou a sede da superintendência do Incra, em São Luís. O movimento forçou o Incra a fazer um acordo que previa a titulação das terras, o avanço de estudos de identificação, entre outras medidas. O que você diria para essas comunidades?
É preciso intensificar a agenda de existência. A gente vê um governo que se autoproclama de esquerda, mas a gente sabe que, na prática, não é isso. Os governos de Lula, todos eles, não avançaram na questão do reconhecimento e da titulação dos territórios quilombolas. E o “Lula 3” está muito pior do que os outros dois anteriores.
Embora resguardadas todas as críticas que eu tenho, particularmente ao PT, mas antes ainda se podia se falar que era um governo do PT. Agora nem isso a gente pode. É um governo de uma ampla coalizão, que foi feito para assegurar uma governabilidade mínima, que não está servindo de nada, a não ser para manter os interesses do grande capital e do agro. Porque a pauta conservadora, a pauta neoliberal, está avançando a todo vapor no Congresso Nacional.
Hoje, estamos vivendo um cenário que é muito complicado, que é a ausência de um projeto político para o país. Estou falando de uma esquerda partidária que, hoje, está no poder, mas que se limita a um projeto que busca apenas a sua manutenção no poder. E isso se reflete diretamente na política fundiária, tanto no campo da reforma agrária, quanto nos territórios quilombolas.
Leia também!
Capitalismo Verde: Manejo de madeira no Amapá é uma ameaça à floresta