A Conferência de Durban e a Politica de Reparação: Uma contradição inconciliável
A política de Reparação originou-se nas mobilizações de libertos e escravos que se envolveram na Guerra Civil norte-americana (1861 e 1865). Acredita-se também que é nesse contexto que se inicia a luta pelos direitos civis.
Do ponto de vista legal, a política de Reparação foi adotada no EUA sob o nome de “Reconstrução” (pós-guerra Civil), principalmente depois da vitória dos “Republicanos Radicais” sobre os democratas escravistas nas eleições em 1866. A Reparação da “Reconstrução Radical” ordenava que as terras confiscadas ou abandonadas pelos escravistas fossem redistribuídas para os libertos.
A participação de um exército de 200 mil negros ao lado da burguesia nortista que via a escravidão como um entrave para seus negócios, possibilitou a radicalização dessa política que levou os republicanos e as massas a destituírem governos civis em diversos estados do Sul escravista e estender os direitos políticos existentes para os ex-escravos.
Os negros queriam mais, queriam chegar ao poder, sobretudo em cidades em que representavam um contingente expressivo da população como em Mississippi e Carolina do Sul, 47% na Louisiana, 45% no Alabama, e 44% na Geórgia e Flórida. Os afro-americanos já realizam mobilizações e elaboravam petições exigindo sufrágio universal, saúde e educação pública, gratuita e universal, etc,. Em razão da “Reconstrução” em vários estados do sul foi possível constituir governos birraciais, num contexto em que no Brasil a abolição sequer havia sido consumada.
Todo esse rico processo foi contido pela reação dos “Redentores” (republicanos sulistas contrários a Reconstrução) que se aproveitaram da depressão econômica de 1873 e reagiram brutalmente através de organizações paramilitares como Ku Klux Klan, a Liga Branco e os Camisas Vermelhas que banharam com sangue negro a política de Reparação. Centenas de parlamentares e eleitores negros foram mortos por essas organizações.
Após retomar o controle político do país essa burguesia branca impôs as leis separatistas que ficaram conhecidas como Jim Crow- que vigorou de 1876 a 1965- e jogou os afro-americanos para a exclusão e para miséria durantes décadas. Assim, institucionalizaram a “supremacia branca” no Sul dos Estados Unidos que estabelecia um conjunto de medidas que definiram os espaços públicos que deveriam ser frequentados por brancos e negros separadamente.
O estopim dessas lutas contra o Jim Crow aconteceu em dezembro de 1955, na cidade de Montgomery (Alabama), quando a costureira negra, Rosa Parks, desobedeceu as leis separatista ao se negar a dar seu lugar em um ônibus para um homem branco.
Durban: a conferência que não terminou, mas engavetou a Reparação Histórica
Foi nesse contexto que o movimento afro-americano retomou a política de Reparação com impressionante magnitude colocando o Estado norte-americano na defensiva. Por isso, desde aqui a burguesia yankee já começa a operar suas manobras para esvaziar o conceito de Reparação e confundi-la com qualquer outra politica menos ofensiva. Antônio Neto (2018), alerta que:
“A direita do país, formada por tradicionais defensores da escravidão, alguns casos com o apoio dos liberais do Partido Democrata, tratou de ofuscar a questão das reparações colocando em evidência ações afirmativas, tais como aumento do número de políticos negros, o controle das ações policiais contra negros, liberdades civis, entre outras. Ou seja, tudo vale quando se impede o desenvolvimento da luta por reparações.”
Contudo, na esteira da repercussão mundial dessas lutas, as Reparações passaram a ser também a principal reivindicação das organizações do Movimento Negro Brasileiro. O ano de 1988 foi um marco na luta por Reparação racial no Brasil e de denúncia do centenário da abolição que o governo Sarney pretendia comemorar para reforçar a ideologia de que vivíamos em uma democracia racial. Então, o que aconteceu para que a maioria das entidades do Movimento Negro brasileiro abandonasse as bandeiras da Reparação histórica?
Os caminhos tomados foram vários e os contextos bastante distintos. Mas, sem dúvida alguma os dois acontecimentos que simultaneamente contribuíram para que a maioria das organizações do Movimento Negro abrissem mão das exigências reparatórias foram: 1-a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, no ano de 2001 e 2- a subida do PT ao poder no ano seguinte (2002).
A Conferência de Durban, patrocinada e conduzida por instituições como Banco Mundial, ONU, FMI, UNESCO, manobraram a direção das organizações movimento negro lá presentes, fazendo com que recuassem da Reparação limitando-se a exigir políticas compensatórias que, apesar da importância que tem para os negros, não tocam nos problemas centrais da questão racial.
Até a expressão “raça” foi bastante questionada nessa Conferência, sob a alegação simplória de que só existe uma raça, a humana, mesmo que todos os participantes daquela Conferência soubessem que a categoria “raça” é uma construção social e que serviu, inclusive, como base para a unificação de países europeus com a Alemanha.
O objetivo seria rechaçar um conceito que inevitavelmente remete as bases teóricas da expansão imperialista e neocolonialista que beneficiaram as nações europeias através do saque das nações africanas, americanas e asiáticas. Vale lembrar que essa categoria também é amplamente usada em dados censitários para aferir fenômenos econômicos, políticos e sociais, para ue, a partir daí, se tenha condições de propor políticas para combater desigualdades e discriminações.
Esses países só recuaram desse ataque porque o mesmo se chocava diretamente contra a temática da Conferência que se propunha a “combater o racismo”. O recuo foi tático, porque a política prosseguiu pós-Durban, tanto é que o conceito de “raça” foi completamente excluído do “Estatuto da Igualdade Racial” aprovado pelo governo Dilma em 2010 que, ao afinal e, infelizmente, contou com o apoio da maioria das entidades do Movimento Negro brasileiro que estiveram em Durban.
Esta Conferência se negou também a reconhecer a questão de gênero, deficiência e orientação sexual como agravante para as vítimas de discriminação. As nações indígenas também não tiveram muito que comemorar sobre os resultados desta Conferência.
A caracterização das delegações dos países árabes de que o sionismo é uma forma de racismo, não foi aceito pelos EUA em nome da defesa do Estado de Israel. Contudo, essa rejeição já havia sido manifestada pela maioria das delegações, inclusive pela brasileira, no Comitê Preparatório desta Conferência. Mesmo com os EUA e Israel abandonando a Conferência, a mesma votou a favor de suas posições reacionárias.
As tramas do imperialismo em favor de seus interesses foram tantas e descaradas. Não é de se estranhar esse fato, já a que Conferência de Durban aconteceu no contexto de ataque militar dos EUA e seus aliados aos países do Oriente Médio como o Iraque e o Afeganistão, sob a desculpa de guerra contra o terrorismo, mas também no bojo da Segunda Intifada Palestina, que começou em 2000 e se estendeu até 2005.
Nesse mesmo contexto, a América Latina vinha de um forte ascenso de massas que derrotou a ALCA, derrubou governos e mais governos neoliberais em países com a Argentina, tomou o poder por 24 horas no Equador e abriu os caminhos para a subida vários governos de Frente popular ao poder como Hugo Chávez, Evo Morales e Lula que cumpriram o papel de frear os ascensos e trair as massas.
Ao imperialismo caberia desarmar o movimento negro mundial de modo que o mesmo não se transformasse em obstáculo para adoções das políticas neoliberais e nem colocasse a Reparação nesse caldeirão de lutas e revoluções. Não foi por acaso que as ONGs tiveram participação expressiva nessa Conferência que se absteve de tratar a Reparação como medidas estruturais por emprego, trabalho e renda e demais políticas públicas pelos mais de quase 400 anos os afrodescendentes ficaram submetidos à escravidão em vários países.
Em síntese, a Conferência Durban foi o palco do estrangulamento das reivindicações históricas do povo negro de todo o mundo.
A reparação histórica, por mais democrática que seja, tinha como centro o questionamento frontal da dominação imperialista, a acumulação de capital com base no tráfico negreiro e a escravidão africana. Nessa Conferência, os países africanos signatários exigiam que os países europeus perdoassem suas dívidas como forma de reparar a escravidão colonial e o neocolonialismo que praticaram ao longo da história do capitalismo. Intransigente quanto a isso, as delegações das nações imperialistas chegaram a ameaçar uma retirada coletiva da Conferência.
Depois de muitas manobras, tendo a delegação brasileira à frente, a Conferência de Durban se limitou a identificar as “vítimas” do racismo de maneira muito vaga, sem qualquer proposta de repará-las. A responsabilidade de erradicar o racismo limitou-se a educação, como se essa fosse uma esfera decisória na hierarquia de poderes do Estado para eliminar uma desigualdade que tem suas raízes assentadas em bases econômicas e sociais. Em um dos artigos das resoluções aprovadas em Durban está escrito:
“Com vistas a dar por encerrados esses capítulos sombrios da história e como um meio de reconciliação e cicatrização de feridas, convidamos a comunidade internacional e seus membros a honrar a memória das vítimas dessas tragédias. Ademais notamos que alguns têm tomado a iniciativa de lamentar ou de expressar remorso ou de pedir perdão, e instamos a todos que ainda não tenham contribuído para restaurar a dignidade das vítimas que procurem meios apropriados de o fazer. Nesse sentido, expressamos nossa apreciação pelos países que já o fizeram”
Os países imperialistas se limitaram a pedir “desculpas” pelo colonialismo, sem assumir qualquer responsabilidade. O termo “perdão” ou suspensão da dívida externa, proposto pelos países africanos vítima da escravidão e do neocolonialismo, foi transformado em um pedido sentimental como se a cobrança fosse um simples ressentimento.
Da mesma forma, a expressão “escravidão como crime praticado contra a humanidade” não foi aceita porque poderia implicar em exigência de “Reparações”, palavra que foi relegada ao ostracismo.
Admitiram apenas a expressão “escravidão como crime praticado contra humanidade” se praticado na atualidade. Passava-se, assim, uma borracha no passado e nos crimes cometidos pelos países europeus contra a África e a Ásia, crimes que prosseguem até hoje provocando migrações em massa para a Europa, onde os governos reagem com xenofobia.
A Conferência de Durban ficou conhecida como “a conferência que não terminou”, pois suas principais resoluções foram votadas quando a maioria das delegações já estava retornando aos seus países de origens.
O mais grave nisso tudo é que, em vez de denunciar tais manobras, a maioria das organizações do movimento negro transformou essa conferência num marco da luta contra o racismo, sobretudo no Brasil. No livro “Coordenadoria dos Assuntos da População Negra: 20 anos de contribuição para as políticas públicas e Etnicorraciais do município de São Paulo está dito que:
“III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata de Intolerância é um dos marcos históricos para as reivindicações do movimento negro contemporâneo e para a implementação de Políticas de Ações Afirmativas”
Na verdade, esta Conferência serviu apenas para esvaziar programaticamente as bandeiras históricas do movimento negro mundial que passou, quase que de conjunto, a defender ideologias neoliberais como a do “empoderamento individual” como saída para problemas que estão estritamente relacionados ao desenvolvimento do capitalismo seja em sua fase de acumulação primitiva ou em sua fase imperialista.
Reivindicar Durban é negar a Reparação Histórica. Reivindicar Reparação Histórica é negar Durban. Digamos mais, ao se chocar com a Conferencia de Berlim, onde a partilha da África foi definida pelos países imperialistas, a Politica de Reparação se choca também com Durban, onde o imperialismo tentou asfixiá-la. Não existe meio termo.
Por outro lado, é preciso que as organizações do Movimento Negro tirem as verdadeiras e necessárias lições desta Conferência. Se o racismo contemporâneo é uma criação do imperialismo para justificar a dominação e a espoliação dos continentes Africano e Asiático, porque seria numa Conferência financiada pelo imperialismo que a luta antirracista se fortaleceria? Muito pelo contrário, o salto que a luta antirracista deu nos últimos anos, com todas as suas contradições, foi decorrente das mobilizações de massas diretamente contra o imperialismo, o Estado e suas burguesias.