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A natureza do governo Lula

Mariucha Fontana

26 de outubro de 2023
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O quinto governo do PT, e o terceiro de Lula, mostra um governo sempre e cada vez mais adaptado e subalterno à ordem/desordem mundial imperialista e gerente dócil do sistema capitalista em seu status quo neoliberal.

A mais recente demonstração diz respeito à subserviência ao Estado Sionista de Israel, repetindo a versão de que no dia 7 de outubro teria havido um “ataque terrorista” por parte do Hamas, ignorando que um campo de concentração a céu aberto, como Gaza, tem todo direito a se insurgir de forma armada contra seu agressor.

O surgimento da extrema direita no Brasil, como subproduto das relações sociais dos últimos quarenta anos, leva boa parte da esquerda, contraditoriamente, a fechar os olhos e a relevar o papel do PT e dos seus governos como sujeito das circunstâncias que propiciaram e seguem propiciando a germinação do bolsonarismo.

Para esses setores, o PT seria mera vítima de circunstâncias, nas quais ele não poderia fazer nada. Eterna vítima da famosa e mágica “correlação de forças”. Uma visão determinista e cômoda para, por exemplo, justificar um processo de “petização” do PSOL e sua participação explícita no governo de Frente Ampla, por mais que algumas correntes de esquerda desse partido insistam em uma versão que tenta dissimular essa condição.

Ao mesmo tempo, muitos ativistas e militantes combativos e socialistas das correntes de esquerda do PSOL e mesmo do PT, ainda seguem no mínimo em dúvida se esse governo realmente não pode vir a estar em disputa, com um maior ascenso dos trabalhadores. Ou se, mesmo sendo muito limitado, não seria progressivo e poderia vir a cumprir um papel no sentido de levar ao avanço na organização e na consciência da classe trabalhadora, da juventude e dos setores populares.

A verdade é que isto é impossível de ocorrer e nos remete a uma discussão sobre a natureza do governo Lula e do próprio PT nos dias de hoje.

Os tipos de governos de colaboração de classes

Existiram muitos tipos de governo de colaboração de classes na história. Alguns, como parte de uma situação abertamente revolucionária, com a existência de uma dualidade de poderes, como ocorreu no caso clássico da Rússia de 1917, em que ao mesmo tempo em que existiam sovietes, os reformistas de então, os mencheviques (partido operário reformista) e socialistas revolucionários (partido dos camponeses pobres), conformavam um governo burguês com parte da burguesia. Os revolucionários bolcheviques denunciavam esse governo como burguês e pró imperialista. E chamavam os mencheviques e os socialistas revolucionários a romperem com a burguesia, e os sovietes a tomarem o poder. Uma das fórmulas foi exigir a saída dos ministros burgueses do governo.
Trotsky dizia que era uma hipótese altamente improvável que os reformistas, que queriam apenas uma revolução democrática e não socialista, viessem a conformar naquelas circunstâncias um governo apenas dos trabalhadores ou operário e camponês, ainda que nos marcos do capitalismo. Se o fizessem, ainda que não fizessem um governo propriamente revolucionário, facilitariam a tarefa dos sovietes e dos trabalhadores e seus aliados auto-organizados no rumo da insurreição e da instauração do poder operário e popular.

Nos anos 1930, com o advento do nazi-fascismo e da abertura de situações revolucionárias em vários países, o stalinismo foi do esquerdismo na Alemanha – em que se recusou a fazer unidade de ação na luta e autodefesa com a social democracia contra o nazismo –; para logo em seguida adotar a famosa política das “Frente Populares”. As derrotas na Alemanha, França e Espanha têm a responsabilidade do stalinismo. E desde a França de 1934, como muito bem assinala Nahuel Moreno no livro Os governos de Frente Popular na História, o que para os mencheviques foi uma política empírica, a partir do stalinismo passou a ser orientação geral: governos de conciliação ou de frente entre partidos e organizações operárias e partidos burgueses, adquirindo diversas formas.

Os tipicamente de “Frente Popular” são em geral instáveis. São governos burgueses anormais, em que os trabalhadores acreditam ser um governo seu e a burguesia, que participa do governo, no máximo o tolera, o vê com desconfiança. É em geral o último recurso para tentar desmobilizar, desmoralizar e derrotar as massas, ou prevenir um possível ascenso, que possa colocar em xeque o regime e o sistema.

Em 1989, se Lula tivesse ganhado as eleições, teríamos um típico governo de Frente Popular no país. Naquela época houve um grande debate e dois projetos em disputa dentro do PT. Um deles, sintetizado na proposta de “Governo dos Trabalhadores sem patrões”, defendido pela então Convergência Socialista e outros setores, e o da corrente majoritária, liderada por Lula, que defendia um “Governo Democrático e Popular”, onde cabia um setor “progressista” da burguesia.

A origem do PT

A direção majoritária do PT não era revolucionária. Mas o PT nasceu apoiado em uma ampla vanguarda operária e trabalhadora jovem, de centenas de milhares de lideranças que brotavam das greves e das lutas, e mesmo sua direção majoritária, foi obrigada a se ancorar, quase uma década, numa proposta de independência de classe para forjar o PT, que nasceu dizendo que patrão de oposição e patrão de situação eram a mesma coisa.

Nasceu contra o regime e se opôs a votar a favor da Constituição de 1988. O PT de 1989, já com a sombra da burguesia na vice de Lula e defendendo a Frente Popular, tinha, no entanto, como centro a campanha nas ruas, a campanha militante e defendia o socialismo na TV. Dizia: “Nós não prometemos mudanças. Nós lutamos por elas há muito tempo e as reafirmamos em cada momento de nossa prática. Não é possível imaginar que se constituam governos renovadores a partir de campanhas conservadoras, baseadas e, cabos eleitorais remunerados, financiamentos milionários, conchavos de bastidores e perfumaria populista”.

Se Lula tivesse vencido em 1989, pelas circunstâncias, mas também pelo que representava então o PT e pela relação do imperialismo e da burguesia com ele, com certeza seria um governo bastante anormal, em que a classe veria como seu e que a burguesia rejeitava profundamente. As ocupações de fábrica em 1988 e mesmo a Greve Geral de 1989 davam mostras da força não apenas do ascenso, mas de avanço na consciência de classe e do proletariado. A burguesia, por sua vez, não topava ter o PT governando o país. Mário Amato, então presidente da Fiesp, declarou que se Lula ganhasse as eleições, 800 mil empresários fugiriam do país.

Um governo Lula em 1989, provavelmente abriria uma dinâmica em direção ao surgimento de organismos de poder operário. Ao não ocorrer, a direção do PT teve como ir operando suas mudanças pró-capitalistas mais acentuadas, dirigindo parcelas do Estado burguês.

Lula perdeu por pouco para Collor. E, acelerou radicalmente um processo de mudanças, transformações internas e de domesticação para poder ser governo da burguesia e do imperialismo.

Começou por aderir ao pacto social e colocar a CUT a participar de forma negociada com a patronal em câmaras setoriais de reestruturação produtiva e de negociação de reformas neoliberais. Depois, negando-se a defender o impeachment de Collor e expulsando do PT a Convergência Socialista e outras correntes.

É preciso dizer também que o movimento feito pela direção do PT internamente ao país, não deixou de ser acelerado pelos acontecimentos internacionais, em que as burocracias dos antigos estados operários degenerados se transformaram em burguesias, promovendo a restauração capitalista na ex-União Soviética e em todo Leste Europeu, coisa que já havia ocorrido na China de forma meio desapercebida por toda esquerda. E que acoplado a esse processo aumentou a intensidade e generalização do projeto neoliberal pelo mundo em diferentes graus.

Mas o PT não é vítima ou ator passivo das circunstâncias. O PT foi sujeito ativo e parceiro, ainda que indireto, da aplicação do projeto neoliberal no Brasil.

Até chegar em 2002 e concluir suas mudanças expressas na “Carta ao Povo Brasileiro”, escrita para os banqueiros apoiarem o então Lula preparado para a “alternância de poder” com o PSDB de Fernando Henrique Cardoso. Os governos do PT passaram a ser então sujeito direto da aplicação do projeto do Banco Mundial no país, em essência o mesmo projeto aplicado por FHC.

2002: O primeiro ciclo de governos petistas

O governo do PT de 2002 já não tem a oposição da burguesia que teria em 1989. Tanto que, Delfim Neto, o emblemático ex-ministro da ditadura militar, declarou logo depois da eleição:

“A sociedade brasileira vive um momento histórico. Até recentemente o Partido dos Trabalhadores tinha fortes restrições ao mercado, exatamente como o Partido Social Democrata alemão até o Manifesto de Bad Godesberg (1959) e o Partido Trabalhista Inglês até a reunião de Westminster Hall (1995), quando tiraram de seus programas todos os resquícios de marxismo que os infectavam. No seu último programa (que chamamos de Carta de Ribeirão Preto), o PT percorreu o mesmo caminho. E na Carta ao Povo Brasileiro, de junho deste ano, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva reafirmou os mecanismos de mercado para a administração econômica. (…) A eleição de 2002 lhe da a oportunidade para que se consagre definitivamente a incorporação do Partido dos Trabalhadores ao corpo político nacional”. (Revista Carta Capital, 23/10/2002)

A “Carta ao Povo Brasileiro” foi uma carta à Faria Lima, na qual o PT se comprometia a manter a política macroeconômica do Consenso de Washington.

Como afirma Lincoln Secco no livro História do PT, 2002 não foi o início de uma virada, senão a consequência de uma política conscientemente construída pelo menos desde 1995, pela coalizão dominante na direção do PT.

O novo governo do PT em 2023

O tipo de governo de conciliação de classes do PT com a burguesia em 2002 e mais ainda agora, em 2023, não guarda semelhança com o tipo que emergiria em 1989. Ainda que todos eles tenham como elemento comum e genérico a colaboração de classes e carreguem ilusões em maior ou menor grau da classe e das massas (apesar que também expectativas, esperanças e níveis distintos de consciência), não são governos que a burguesia ou o imperialismo tomem com desconfiança ou apenas tolerem.

E isto não diz respeito apenas à correlação de forças objetiva entre as classes (mais ou menos lutas, ainda que também), mas diz respeito também e especialmente à transformação que sofreram esses partidos. Alguns, como os da social democracia europeia ainda no pós-guerra, outros com a restauração capitalista ou após ela, como China etc. E outros através simplesmente pela via da administração do Estado Burguês, como aconteceu, por exemplo, com a direção pequeno burguesa da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) na Nicarágua, que se transformou via o Estado na fração dominante da burguesia no país.

O PT brasileiro também se transformou, embora com suas especificidades, de maneira diferente, em circunstâncias históricas e sociais diferentes. Mas se transformou o suficiente para que não tenha hoje nenhuma eficácia dirigir a esse partido de conjunto a política que os bolcheviques lançavam aos mencheviques, do tipo: rompam com a burguesia, fora os ministros burgueses do governo. Por quê?

Porque não seria apenas improvável, mas impossível que o PT de conjunto o fizesse. Teria que romper consigo próprio. Por exemplo: adiantaria exigir fora José de Alencar do governo e manter Palocci em 2002?

O PT percorreu em 22 anos, em circunstâncias diferentes, o caminho que a social democracia europeia levou uns 80 para percorrer. É o desenvolvimento desigual e combinado. Opinamos que o PT se converteu em uma Frente Popular em forma de partido, só que, parodiando Chico de Oliveira, às avessas. Mas este é assunto para outro artigo.

O que é necessário e urgente entender é que para reconstruir, avançar e superar as condições de luta, consciência de classe e organização da classe trabalhadora, é preciso construir um partido revolucionário, numa luta pela independência política das organizações da classe do governo e da burguesia. Sabendo é claro fazer toda unidade na luta, necessária e possível contra a patronal e a direita. Explicando pacientemente se necessário a valorosos companheiros de luta. Mas a unidade de ação para lutar tão necessária, não pode significar apoiar ou ficar a reboque de um governo e de um campo de conciliação ao serviço da burguesia e do imperialismo. Porque a necessidade é justamente de mudar esse sistema social.

Os sucessivos governos do PT levaram ao retrocesso na consciência, na organização e na luta da classe trabalhadora, na mesma proporção em que cooptaram lideranças da classe para ajudar a gerir o capitalismo.

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