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A Origem do Mundo – Parte I

Lena Leal

30 de março de 2025
star5 (17 avaliações)

A primeira divisão de trabalho entre os sexos é frequentemente
descrita
de uma forma muito simplificada e deformada (…)
toda a atividade industrial estava na mão das mulheres.

Por exemplo, o cozinhar não deve ser entendido como nós o entendemos na família moderna.
Evelyn Reed, Sexo contra sexo ou classe contra classe, p.39

A primeira vez que me deparei com a estatueta da Vênus de Willendorf foi na capa do livro da Evelyn Reed (1905-79) no início dos anos 80. Enigmática, a figura da mulher com seios fartos, ventre largo e vulva exposta é vista como símbolo das sociedades matriarcais em tempos longínquos. Atualmente faz parte do acervo do Museu de História Natural de Viena. Quanto ao livro, o tenho como um pequeno tesouro que procuro deixar sempre à vista. Ler “Sexo contra sexo ou classe contra classe” sacode as estruturas de pensamento e revela a história apagada sobre o papel das mulheres nas sociedades primordiais.

Sua primeira publicação no Brasil foi em coedição pela Proposta Editorial/Versus (1980) e reeditada em 2008 pela Sundermann. É um compêndio de estudos realizados pela antropóloga marxista em que as pesquisas, extremamente consistentes, se debruçam sobre um passado da humanidade que eu nunca havia aprendido na escola. Se pensarmos em centenas de milhares de anos de evolução, nossa espécie viveu cerca de ⅔ em sociedades cujas condições materiais de existência garantiam a convivência igualitária entre homens e mulheres.

A autora discorre sobre estudos de F. Engels, James Frazer, Margaret Mead, Dan Mackenzie e Gordon Childe, entre outros.

Nesses importantes trabalhos em que várias ciências se cruzam – antropologia, arqueologia, etnomedicina, etc. – camadas da história de nossa espécie foram desveladas. Como não estavam nos currículos escolares?

Da produção do fogo à Revolução Agrícola

Descoberta em 1908 onde hoje fica a Áustria, a pequena estatueta da Vênus, feita há cerca de 30.000 anos não é a única. Pelo contrário, há milhares como ela espalhadas pelos quatro cantos do mundo e suas existências refletem esse largo período histórico em que as mulheres eram chefes, sacerdotisas, médicas e deusas.

Os vestígios arqueológicos permitiram evidenciar – apesar das lacunas evolutivas em aberto – que a condição de maternidade (ao contrário de hoje, que gera desigualdade) garantia lugar de destaque nas relações sociais. Como nessas sociedades os meios de produção eram propriedade coletiva, a divisão de trabalho se dava a partir das características dos membros do grupo. Nada mais distante da realidade do que aqueles desenhos com o homem de tacape na mão arrastando a mulher pelos cabelos. A ausência de propriedade privada sobre os meios de organizar e manter a vida possivelmente garantiam também condições igualitárias na vida sexual e na socialização das crianças. Por outro lado, essa divisão simples de trabalho permitiu que fossem as mulheres as primeiras a dominar o fogo (elemento crucial para a sobrevivência da espécie humana) e as responsáveis por mais tarde realizarem a Revolução Agrícola – processo de domesticação de plantas e animais que permitiu a sedentarização da espécie.

Relações entre opressão e exploração

Os inúmeros dados arqueológicos e análises antropológicas apresentados pela autora servem de suporte para sua tese central, que bebe da fonte das socialistas revolucionárias desde a I Internacional – a de que a opressão das mulheres está intimamente vinculada ao surgimento de desigualdades, castas e classes em diferentes sociedades ao longo do tempo.

Tal hipótese obviamente não pode ser analisada de forma linear nem mecânica, porque a história não se move por uma reta infinita em direção a um futuro previsível. Longe disso, a vida borbulha de forma desigual e combinada, em que o contraditório, o velho e o novo estão sempre em movimento. Nesse sentido o papel da luta contra as opressões como parte da luta anti-capitalista é fundamental pois se é verdade que não será possível acabar com as opressões nesta sociedade, tampouco sua derrubada por si só resolverá algo que tem atravessado a história da humanidade a alguns milhares de anos. Como exemplo dramático, vimos no século XX os retrocessos nas conquistas de direitos das mulheres na antiga URSS e outros Estados Operários burocratizados.

O que a HQ de Liv Strömquist tem a nos ensinar

E por falar em opressão ao longo da história da humanidade, a obra da cientista política e quadrinhista sueca nascida em Lund, em 1978, parece complementar e trazer um frescor irreverente para assunto tão espinhoso. Usando de bom humor aliado a rigor científico, a HQ se dedica à história cultural da genitália feminina, trazendo novas informações e enfoques.

Hino à Deméter

Liv passeia com desenvoltura por diferentes períodos históricos e garimpa textos e pistas em obras de arte que mostrem como as mulheres eram percebidas. Na parte sobre o berço da civilização ocidental, por exemplo, ela traz o mito de Deméter, presente nos “Hinos homéricos” ( 33 poemas datados entre 600-500 a.C. ).

Deusa grega da fertilidade e da colheita, ela tinha uma filha, Perséfone, que foi raptada e levada ao reino da morte, no submundo. Em desespero, Deméter vagueia pelo mundo sem comer nem beber e à medida que seu corpo enfraquece todas as plantas e vegetais morrem. Com fome, o povo bate à porta e pede ajuda aos deuses.

Eles não conseguem reanimá-la e aí entra em cena o que Liv chama de “personagem interessante”.

Também conhecida como Baubo, era originalmente uma deusa da Anatólia que os gregos adotaram. Na mitologia grega ela é uma velhinha. Baubo recebe Deméter como sua convidada, e por meio de “travessuras hilárias” consegue fazer a deusa da colheita voltar a comer e beber. A autora indaga que travessuras hilárias seriam essas e continua o relato mítico.

Nele consta que depois de falar Baubo levanta suas vestes, expõe as partes íntimas à deusa, que ri e volta à vida. Segundo Strömquist, “a exposição ritual da vulva era um componente recorrente das celebrações em homenagem à Deméter, assim como de outros cultos religiosos com predominância feminina entre seus adeptos.

Quer saber mais? Acompanhe a próxima resenha

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