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Comunidades Terapêuticas: nome bonito, realidade feia

Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

5 de abril de 2024
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As comunidades terapêuticas (CTs) existem por todo o país, tendo como público-alvo preferencial, mas não exclusivo, os usuários de drogas legalizadas (álcool) e ilegais como maconha, cocaína, crack, K2/K9, ectasy e outras. Existem desde os anos 80, mas tomaram muito impulso nos últimos anos. São frequentemente ligadas a grupos religiosos, particularmente evangélicos. A maioria das CTs cobram uma taxa para internação, mas algumas sobrevivem com financiamento estatal

O tratamento é diversificado entre cada CT, mas grande parte tem em comum a ênfase na doutrinação religiosa, algum tipo de atividade de trabalho e uma disciplina extremamente rígida para os internos. Embora afirmem ter supervisão médica, na prática a medicação é trazida pelos familiares, com prescrição feita por médicos externos à comunidade e com pouca ou nenhuma atualização da prescrição.

O financiamento estatal às CTs não é feito através do Ministério da Saúde, e sim pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Em 2020, por exemplo, a verba repassada para as CTs foi o dobro daquela repassada pelo Ministério da Saúde para os centros de atenção psicossocial para pacientes dependentes químicos, os CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas ). Esta situação do financiamento das CTs não ser feito pelo Ministério da Saúde é uma verdadeira aberração e segue firme no governo Lula/ Alckmin. A estimativa é de que o Governo Federal subsidie 15 mil vagas em comunidades terapêuticas. São verbas que deveriam ser integralmente transferidas para o Ministério da Saúde para financiamento dos CAPS AD pelo país.

Há inúmeras denúncias contra as CTS pelo Brasil. Há casos de morte por maus tratos ou até excesso de medicação, muitas denúncias de violência contra os internos, doutrinação religiosa permanente, dificuldade de acesso das famílias para visitar os pacientes, castigos físicos aos internos que se rebelem e a lista vai longe. Já houve casos de prisão de donos de CTs após a constatação de morte de internos, quando os familiares tiveram condições financeiras e interesse para levar os casos para a justiça. Muitas denúncias não são sequer investigadas pela polícia, seja por corrupção, seja por identidade religiosa em comum entre os donos de CTs e delegados.

Cenas de abusos em comunidades terapêuticas Foto Reprodução

O financiamento estatal às CTs se dá dentro de um contexto político maior. Faz parte da guerra cultural, política e financeira promovida e incentivada por setores da direita e ultradireita do país. Estes setores descobriram que os temas relacionados a costumes e segurança pública polarizam a sociedade e são porta de entrada para uma doutrinação política e religiosa nos diversos extratos sociais. Eles se aproveitam da crescente fragilidade social dos setores mais pauperizados, e dos setores oportunistas e fanatizados da classe média, que usam a religiosidade como meio de ascensão social.

No caso específico da drogadição e marginalidade social, estes ditos conservadores se aproveitam das dificuldades e limites que a atual abordagem de saúde tem para responder ao problema. A eficácia do uso de medicamentos e abordagens psicoterápicas ainda é frustrante. A questão do tráfico crescente, dominado por facções como o PCC, associado à falta de perspectiva de emprego e à desestruturação das famílias, torna o tratamento da dependência química em estabelecimentos de saúde muito difícil. O subfinanciamento da saúde promovido pelos diversos governos (de direita e os que se dizem de esquerda), para responder às exigências de arrocho fiscal, debilita muito o trabalho em saúde mental dentro de uma perspectiva mais digna de uma abordagem multiprofissional desta população de usuários de álcool e outras drogas. 

Uma evidência atual desta tática do campo conservador é a votação que está se dando no Senado de criminalização total do uso de drogas ilícitas, para se contrapor ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que caminhava para liberar o porte de pequenas quantidades de Cannabis para uso recreativo. A proposta conservadora é de uma hipocrisia gigantesca, pois nada fala do uso de bebidas alcoólicas, que são legalizadas e tão ou mais danosas que a Cannabis.

É neste terreno minado que a saída oferecida pelas CTs , de tirar o paciente de seu meio social e fazer uma doutrinação religiosa pesada acaba sendo atraente para muitas famílias e mesmo para alguns usuários. É atraente porque retira o dependente de seu meio social por um período longo e, principalmente, porque a doutrinação religiosa coloca o mal como algo externo ao paciente. “O mal é promovido pelo diabo e a fé pode salvar o usuário”, esta é a mensagem. A sensação de que o problema é externo pode ser muito atraente para um usuário que tenha alguma motivação para interromper seu vício.

Assim, o apelo desta proposta é realmente atrativo para as famílias. Imagine conseguir internar um filho ou um marido dependente químico, que bate nos familiares, que não consegue se fixar em nenhum emprego, que vende objetos da casa para comprar drogas, que chega em casa fedendo por ficar dias na Cracolândia sem tomar banho ou até mesmo jogado na rua sem forças para se erguer e voltar para casa.

A direita e as diversas denominações evangélicas oferecem esta falsa resposta, usando o dinheiro dos impostos recolhidos por toda a população, cuja maioria não comunga com seu ideário religioso e político. Assim eles crescem e vão adquirindo poder político cada vez maior.

Uma abordagem científica, racional e humanitária é diretamente oposta a isso. Em primeiro lugar, é preciso identificar a questão do uso abusivo e da dependência de álcool e outras drogas como um importante problema de saúde pública. Este problema vem sendo agravado pela política criminosa de transformar as drogas em problema essencialmente de segurança, imitando o modelo americano que leva a um círculo vicioso infernal. 

Como o uso de drogas é supostamente um problema de segurança, vai sendo criado toda uma visão de que a repressão é a única saída, que todo o problema de violência e crime de nossa sociedade se dá por culpa do tráfico e a única resposta a isso é prender usuários e traficantes e que é fundamental investimento público cada vez maior para as polícias. E quanto mais assistimos este investimento crescer, maior é a necessidade de aumentar este investimento, pois a criminalidade só cresce.

Ao identificarmos a questão da drogadição como de saúde pública, temos de oferecer alternativas de tratamento aos usuários. Este tratamento pode ser feito em diversos níveis de acordo com a gravidade de cada caso. A rigor, deveríamos ter programas sérios de psicoeducação e psicoterapia breve nas unidades básicas de saúde, além de suporte medicamentoso para estes pacientes. Em um nível mais especializado, os CAPS AD deveriam trabalhar com os casos de gravidade média e parte dos de maior gravidade. Os casos muito graves demandam internação, seja em hospital geral, devido aos problemas físicos causados pelo uso abusivo e dependência, seja em enfermarias psiquiátricas. As internações deveriam ser de curta ou média permanência, dependendo de cada caso. 

É perigoso e contraprodutivo um discurso de reivindicar o tratamento somente “em liberdade”. Inclusive não é isso o que prevê a lei 10216, a lei da Reforma Psiquiátrica, que foi um grande avanço contra o atraso que eram os manicômios no Brasil. A lei prevê internações voluntária, involuntárias e judiciais. A voluntária se dá a pedido do próprio paciente. A involuntária se dá por indicação médica e a judicial por ordem do juiz. Negar a possibilidade da internação “em geral” pode ser muito danoso no caso de dependentes químicos. Quando um alcoolista suspende o uso da bebida alcoólica, é muito comum apresentar sintomas de abstinência, que podem ser leves, mas também chegam a ser extremamente graves, colocando o paciente em risco de morte. Indivíduos que usam drogas alucinógenas ou em abstinência alcoólica podem apresentar alucinações visuais ou auditivas que os levam a ter comportamento de risco.

Poder acolher temporariamente estes casos mais graves em internação hospitalar ou no próprio CAPS além de diminuir bastante estes riscos, é um alívio para os familiares. O discurso de ser contra internações “por princípio” tem o efeito de jogar as famílias nas mãos da direita.

Como conclusão, é urgente o governo Lula parar imediatamente de financiar as CTs. Lula tem que derrubar a lei de financiamento das CTS, parar de enviar dinheiro que é da saúde para fora do SUS.É urgente também revogar a criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. 

O Governo Federal deveria ter como obrigação o aumento qualitativo do financiamento dos serviços de saúde mental pelo país.  Enquanto estas medidas não forem executadas, fica evidente que também na saúde mental Lula quer ter um pé na canoa humanista e o outro pé na canoa conservadora. Em resumo, acaba por alimentar ainda mais o campo conservador, sendo cúmplice do atraso e de uma visão anticientífica que cresce devido à crise crônica do capitalismo em nosso país.

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