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O tema da redação do Enem foi um acerto, mas governo Lula segue errando feio com os afro-brasileiros

“Desafios para a valorização da herança africana no Brasil” foi o tema da redação do Enem 2024

Hertz Dias, Membro da Secretaria de Negros do PSTU e vocalista do grupo de rap Gíria Vermelha

4 de novembro de 2024
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Matérias foram usadas nas provas de linguagens e geografia | Foto: Reprodução

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio  (Enem) foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Um tema que por si só deve provocar muitos debates nas redes sociais e acho importante que provoque. Se vivêssemos numa sociedade sem opressão e opressores, sem explorados e exploradores, todos os elementos culturais atribuídos a qualquer grupo específico, seriam diluídos na própria sociedade, pertencendo, indistintamente, a todos. Infelizmente não é essa a realidade que vivemos, muito particularmente nós afro-brasileiros. Daí a importância do tema da redação do Enem deste ano.

Africanos e afrodescendentes, os negros nascidos no Brasil, foram a base da formação da classe trabalhadora brasileira. Essa força de trabalho escravizada não só executou todos os tipos de ofícios (agricultura, mineração, manufatura, pesca, comércio, etc), mas, trouxe altíssimos conhecimentos científicos, tecnológicos, filosóficos, religiosos e artístico para o Brasil.

A grande maioria dos africanos não era capturada em tribos de “homens nus”, como querem nos fazer pensar, mas de povos altamente desenvolvidos com um grau de conhecimento altamente complexo. Eram desde pessoas simples como camponeses até comerciantes, passando por artistas, generais, clérigos, filósofos de diversas culturas.

Porém, esses elementos culturais foi motivo de muita preocupação por parte dos senhores de escravos e seus intelectuais orgânicos. Estes buscavam identificar a origem étnica e cultural de cada grupo para tentar caracterizar seus comportamentos, quando na verdade o comportamento rebelde se explicavam, não somente pela origem africana dos escravos, mas pela condição escrava a qual o africano estava submetido.

Os mesmos colonizadores que defendiam a ideia de uma África uniforme, homogênea, bárbara e selvagem, para justificar a escravidão, eram os mesmos que evitavam, preventivamente, colocar uma grande quantidade de africanos da mesma nação ou etnia dentro de um mesmo espaço. Nos primeiros anos de escravidão, essa rica diversidade cultural, tão negada pelos colonizadores, dificultou a organização dos escravos para enfrentar a escravidão. E o maior desses obstáculos era a linguagem, mas não era absoluto.

Para forjar sua auto-organização, os africanos, muito provavelmente, criaram uma linguagem geral que possibilitou a sua organização política e social. Isso mesmo, é bem provável que os nossos antepassados tenham criado um “dialeto das senzalas” ou talvez até um “dialeto dos quilombos”. Ante o inferno das senzalas, a renovação linguística se tornou um dos atos políticos mais importantes do Brasil colonial. Foi ela que possibilitou a organização preta para insurgir contra a senhores. E neste aspecto, as religiões de matizes africanaa cumpriram um papel de primeira ordem.

Por isso, que quem olha para a cultura negra como folclore, algo exótico, sem racionalidade, não entendeu nada sobre a formação politica do nosso país. Não por outro motivo, a religião afro foi caracterizada como fetiche, perigosa, maligna, pois não se tratava apenas de manifestações religiosas, mas de um instrumento de luta antiescravista, tal como o cristianismo foi contra o Império Romano. Só que nesses quase 400 anos de escravidão, foi o cristianismo, sob o controle dos colonizadores, que serviu de instrumento opressor. Nesta direção, a demonização da religião africana ocorria porque era a Igreja Católica quem possuía o monopólio daquilo que era considerado como sagrado, mas também apresentava os argumentos que justificava aquele tipo de sociedade como um designo dos deuses. Uma classe opressora, uma religião opressora, um deus opressor.

Nesse sentido, bem diferente do que se costuma pensar, o sincretismo religioso não foi produto de uma troca cultural amigável entre africanos e europeus, mas uma tentativa das elites escravocrata penetrarem no interior das religiões africanas para desarticulá-la simbólica e politicamente. Não foi um sincretismo de mão dupla, mas um “sincretismo” autoritário e unilateral. Foi uma invasão para esvaziar a religião afro dos seus “perigosos” elementos anti-regime e antissistema.

Na luta contra as rebeliões escravas, não bastavam chibatas, pelourinho e balas. Os santos, os padres e a bíblia também foram utilizados como instrumentos de guerra contra os escravizados. O sincretismo tinha por objetivo promover o desaparecimento da religião afro como projeto de genocídio cultural. Tal projeto não vingou, mas segue até os dias atuais, daí a importância do tema da redação do Enem. As culturas africanas seguem sendo perseguidas, mas, principalmente os seus seguidores. Em razão disso, que o que muitos chamam de intolerância religiosa, nós chamamos de racismo religioso.

Na ausência de museus, livros, universidades, meios oficiais de difusão, as culturas africanas foram preservadas e desenvolvidas, sobretudo, nos quilombos e nos terreiros. Pois bem, os quilombos seguem sendo perseguidos e sem o direito a titulação territorial. Seguem sendo ameaçados e mortos por jagunços e pistoleiros a mando de latifundiários e empresários da agroindústria. O que Lula (PT) prometeu nas eleições de 2022 até o momento não saiu do discurso, assim como não saiu nos seus governos de outrora. E foi isso que motivou os quilombolas do Maranhão a ocuparem o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) uma semana antes da realização da primeira etapa do Enem.

Do mesmo modo, recentemente, 87 terreiros de candomblé assinaram uma carta que foi enviada ao presidente Lula denunciando os descasos do seu governo e do Ministério de Promoção da Igualdade Racial em relação a essa manifestação religiosa preta.

E por fim, percebe-se que não há nenhum esforço por parte deste e demais governos em garantir, materialmente e pedagogicamente, a implementação da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura e da história africana e afro-brasileira no currículo das escolas das redes públicas e particulares do fundamental até o ensino médio. Segundo pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto Alana e Geledés Instituto da Mulher, cerca de 71% dos municípios brasileiros não cumpre com a lei. Na mesma direção segue o Novo Ensino Médio (NEM) que aprofunda o apartheid na educação pública brasileira.

Tudo indica, que a redação do Enem foi um acerto, mas Lula continua errando feio com os afro-brasileiros.

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