Negros

O verdadeiro sentido do 13 de Maio: entre a manobra reformista da burguesia e a luta direta da classe trabalhadora negra 

Rosenverck Estrela Santos, do PSTU Maranhão, Quilombo Raça e Classe e vocalista do grupo de Rap Gíria Vermelha

13 de maio de 2024
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Ato contra a violência às mulheres em SP Foto Romerito Pontes

Neste mês, tradicionalmente “comemora-se” a chamada assinatura da Lei Áurea. Entretanto, quando analisamos a situação das negras e dos negros no ordenamento da formação social brasileira, constatamos que, no pós-13 de maio, esse setor da classe trabalhadora foi extremamente excluída do acesso aos bens sociais e econômicos produzidos no capitalismo brasileiro, inclusive, sendo o grupo étnico-racial mais atingido por processos de exclusão e opressão, sendo alvo de projetos de encarceramento e genocídio  conduzido por todos os governos da República, desde o seu nascimento em 1889.

Nesse sentido, questionamos: a emancipação dos negros e negras no Brasil já foi alcançada, com a abolição formal e reformista do 13 de maio?  Foi resultado da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, ou foi resultado da combinação da luta e resistência dos próprios escravizados em sua luta cotidiana com fugas e formação de quilombos?  

Ou seja, a Lei Áurea, em verdade, foi uma reação reformista, parlamentar, burguesa e burocrática no sentido de evitar uma revolução social que poderia ter sido levada à frente pelos movimentos negros radicais de resistência à escravidão, como havia acontecido no Haiti, no fim do século XVIII. O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão negra, em 13 de maio de 1888. Porém, décadas antes, a burguesia proprietária de terras já empreendia medidas visando a abolição lenta, segura e gradual, a partir de uma série de leis paliativas como a Lei do Vente Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), pois temiam que as revoltas escravizadas, cada vez mais constantes, originassem o mesmo do Haiti em 1793, onde escravos e libertos rebelaram-se expulsando a elite colonial daquela pequena ilha do Caribe.  

Era preciso antecipar com segurança algo que já estava prestes a ocorrer pelas próprias ações de luta direta da classe trabalhadora negra, qual seja, a conquista da emancipação. Na maior parte das grandes cidades o contingente de escravizados já não era expressivo, perto de 1888, devido às leis paliativas, a campanha dos abolicionistas radicais e, principalmente, a luta dos escravizados e negros(as) livres.

A abolição de 1888, portanto, configurou-se como uma manobra da burguesia branca agrária, monocultura e latifundiária, junto com suas parceiras a burguesia financeira, industrial e comercial para antecipar um acontecimento que inevitavelmente se processaria, aparecendo como redentora dos escravizados e preocupada com a busca da “civilidade” e do “progresso” da nação, o que ocorreria apenas, segundo a burguesia branca e sua intelectualidade, por meio do embranquecimento do Brasil e, portanto, da imigração europeia, pois um país civilizado não poderia ter as marcas da escravidão nem tão pouco a presença negra em sua cultura e formação social. O país deveria ser assemelhado à Europa e, nesse sentido, um projeto de eugenização e higienização precisaria ser realizado, no pós-abolição.  

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Diante desse cenário da “onda negra, medo branco” , parte dessa intelectualidade e dos governantes construíram a ideia – para sustentar uma abolição negociada, reformista e sob direção branca, materializada no dia 13 de maio – de que no Brasil não havia conflitos raciais, e que, por isso, era possível fazer uma abolição, desde que gradual, em que brancos e negros passariam a conviver em harmonia.  

A excepcionalidade do Brasil – mesmo contra todos os exemplos na realidade – seria a convivência pacífica e ordeira dos grupos raciais e que, por isso, a abolição não poderia trazer violência ao país. Por conta da colonização portuguesa, mais branda e bondosa – ideia especialmente construída a partir das obras de Gilberto Freire – a classe trabalhadora negra escravizada, e mesmo livre ou liberta, não nutria ódio por “seus senhores”. Iniciou-se a construção – no interior do inferno escravista – de um paraíso racial. Mais do que nunca, era preciso fazer a abolição gradual e segura para evitar que essa relação harmoniosa se tornasse um conflito aberto como ocorrera no Haiti e como ocorria nos Estados Unidos da América. Ressaltamos que essa ideia não tinha sustentação na realidade, tendo em vista as inúmeras revoltas, resistências e formação de quilombolas realizados pela população negra.  

É em virtude desse projeto burguês, que a abolição oficial em nada se preocupou com a situação da classe trabalhadora negra jogados, empurrados à marginalidade e à miséria social, por políticas públicas governamentais de recorte racial visando eliminá-lo no corpo e na cultura, sendo forçados – quando sobreviviam a projetos de extermínio e encarceramento – a conviver com os mitos da vadiagem, banditismo e preguiça, resultando em atos racistas que perduram até os dias atuais.  

Como destaca o Atlas da violência de 2023, entre 2011 e 2021 tivemos 445. 527 pessoas negras assassinadas, aumentando de 2,6 para 2,9 por cento, o risco de ser uma vítima letal entre 2019 e 2021. Entre 3.858 homicídios de mulheres, 2.601 eram mulheres negras em 2021. A violência letal mata 4,22 pessoas negras, por hora, no país em média. Quanto ao encarceramento, somos o terceiro país do mundo com o maior número de presos. De acordo com o IBGE, temos cerca de 830 mil pessoas privadas de liberdade, sendo a chamada Lei Antidrogas, aprovada no governo do PT, a que mais encarcera. Como mostra Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), 68,2% da população carcerária é negra. Como se observa, é um verdadeiro projeto de encarceramento e genocídio negro, que a chamada abolição não evitou, pelo contrário, impulsionou um projeto governamental e burguês de implementação dessa política. 

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Iniciativas governamentais como a Lei de Terras de 1850; a Abolição em 1888 sem indenização aos escravizados; a proibição de imigração africana para o país; o impedimento, que escravizados e seus filhos, frequentassem escolas; a política de imigração europeia subsidiada, e, sobretudo, uma série de medidas tomadas nas primeiras décadas do século XX, foram algumas ações estatais que marginalizaram a classe trabalhadora negra, em detrimento dos trabalhadores brancos, gerando informalidade, opressão e alocando, grosso modo, apenas serviços esporádicos e da pequena agricultura. Essa classe trabalhadora negra marginalizada, em regra, concorria com o exército industrial de reserva resultando na superexploração da classe trabalhadora como um todo.  

Simbolicamente, também, a partir daí, deu-se sustentação para um discurso que via o trabalhador(a) negro(a) liberto ou recém-saído da escravidão como inapto para o trabalho livre, disciplinado e assalariado. Junto com a abolição oficial do regime escravista e monárquico, bem como com a construção posterior do regime republicano, edificava-se o racismo como matriz de interpretação e horizonte de desenvolvimento da realidade nacional.  

Reafirmamos que, após a abolição oficial da escravidão, em 13 de maio de 1888, a classe trabalhadora negra foi conduzida, por meio de inúmeros mecanismos e políticas públicas governamentais, à marginalidade, ao subemprego e à diversificação das formas de exploração e opressão, que tem no racismo um de seus principais estruturantes.   

É por essa razão que questionamos: se é verdade que a abolição colocou a população negra em igualdade civil e política com os demais, por que parte do movimento negro ainda hoje fala em igualdade de oportunidades ou igualdade jurídica? Essa já não seria uma bandeira em muito superada, inclusive, pelas várias legislações constitucionais que incluíram a classe trabalhadora negra no corpo da cidadania brasileira, isto é: todos iguais perante a lei? Não seria adequado superar essa palavra de ordem e exigir igualdade social? Ou seja, não apenas possibilidades de inclusão, mas efetivamente o fim dos limites impostos pelo capital à plena igualdade da classe trabalhadora negra? 

Essa data não representou e não representa de fato a emancipação da classe trabalhadora negra, já que não tiveram indenização, direitos sociais e passaram a conviver com todas as formas brutais de discriminação em suas formas de viver e fazer cultura. É, sem dúvida, uma abolição sem Reparação aos negros e negras. Então, de um lado, denunciamos essa “abolição” e, de outro, o escancaramento da realidade explorada e oprimida que a maior parte da classe trabalhador negra passou a enfrentar no território nacional.  

Diante desse quadro utilizamos o 13 de maio para informar sobre a importância da luta da classe trabalhadora negra na conquista da emancipação política e de algumas políticas sociais, mas, sobretudo para denunciar o verdadeiro sentido da chamada “abolição da escravidão”, pois a emancipação – mesmo que formal e limitada – da classe trabalhadora negra no Brasil não foi uma dádiva da burguesia branca, mas sim um projeto reformista de salvação de suas “peles” diante da “onda negra” de luta e resistência.  

O que destacamos é que o 13 de maio, em verdade, foi o ponto culminante de todo um processo de luta de classes entre o grupo dominante – principalmente os latifundiários escravistas – e os trabalhadores escravizados. Não foi simplesmente uma dádiva e nem tão pouco um ato desesperado de uma classe agonizante. A data da abolição foi a consolidação de um projeto reformista que visava extinguir o trabalho escravizado e eliminar as tensões e conflitos de classe por meio do parlamento, evitando a convulsão das ruas e uma saída revolucionária para a questão negra. Como disse Emília Viotti da Costa “Entre a casa grande e a senzala houve sempre uma tensão permanente que os mecanismos de acomodação e controle social mal conseguiram disfarçar” (COSTA, 2010, p. 506) . 

É por essa razão que se tornaram proeminentes diversos abolicionistas, com projeto reformista, buscando retirar o protagonismo negro na luta por sua emancipação, e canalizar todo o processo de extinção da escravidão – já praticamente inevitável – no seio das políticas de Estado, mantendo a estrutura econômico-social dominante.  

Continua a tarefa estratégica de conquistarmos a emancipação real para a classe trabalhadora negra. Isto porque, como estamos buscando demonstrar, a emancipação jurídico-formal, abstrata, político parlamentar é insuficiente para garantir a igualdade social para a grande maioria da classe trabalhadora. 

Marcha da Periferia na Zona Sul de SP Foto Romerito Pontes

Em resumo, a data de 13 de maio de 1888 que representaria a emancipação da população negra foi resultado de uma luta de classes sem tréguas, empreendida pela classe trabalhadora negra, mas também foi um projeto reformista vencedor que visava conter a “onda negra” de revoltas e evitar a destruição da estrutura socioeconômica e política dominante. Por isso uma abolição sem Reparação que “[…] não significou a destruição imediata da ordem tradicional. O país continuou predominantemente agrário, apoiando-se na exportação de produtos tropicais. Manteve-se intato o sistema de propriedade” (COSTA, 2010, p. 513). Era a velha tática de “perder os anéis para não perder os dedos”. É nesse sentido que ainda falamos da necessidade de uma emancipação revolucionária e não apenas sentido jurídico-político, como limitadamente foi o 13 de maio.  

No lugar da vaga fraseologia […] – “pela eliminação de toda a desigualdade social e política” –, dever-se-ia dizer que, com a abolição das diferenças de classes, desaparece por si mesma toda a desigualdade social e política delas derivadas (MARX, 2012, p. 39). Nesse sentido, torna-se imprescindível, na passagem da emancipação negra para emancipação humana, afirmarmos a necessidade vital de aliarmos a luta anticapitalista com a luta antirracista .  

Como disse Marx, para conquistar a emancipação humana, necessitamos de uma revolução radical, e não apenas mudanças parciais ou políticas, deixando praticamente intactas as estruturas da sociedade capitalista. Os agentes históricos dessa mudança existem e devem se pôr em movimento. Com efeito, a construção de uma práxis negra revolucionária é condição para destruição do racismo, enquanto práxis de dominação. A luta pela eliminação do racismo, destruição do capitalismo, construção da emancipação humana com igualdade social, certamente passará pela construção da sociedade comunista como alternativa a miséria, destruição e violência da formação social capitalista. 

Nesse sentido, o 13 de maio é um dia de denúncia dessa farsa abolicionista , tendo em vista que a situação dos negros e negras neste país (a segunda maior população negra do mundo) continua sub-representada nas relações de trabalho, educação e fóruns de poder. É uma data para tomada de consciência da necessidade inevitável de construirmos uma revolução social colocando fim ao capitalismo, ao racismo e finalmente conquistando a emancipação que a classe trabalhadora negra tanto luta há séculos. 

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