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PEC das Drogas é mais um ataque à juventude negra e pobre

Emenda aprovada pelo Senado mantém a criminalização dos usuários prevista na atual Lei de Drogas, criada pelo governo Lula

Maria Costa, médica do SUS

3 de maio de 2024
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Lei está ligada ao encarceramento em massa da juventude negra e pobre | Foto: Raphael Alves/Fotos Públicas

No dia 16 de abril, o Senado aprovou o Projeto de Emenda Constitucional n° 45, de 2023, ou “PEC 45” ou “das Drogas”, com 53 votos a favor e nove contra. Com a medida, foi adicionado o seguinte parágrafo no Artigo 5º da Constituição:

A lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência.

A PEC surge no contexto do julgamento que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do porte de drogas. O objetivo é bloquear alterações na atual de Lei de Drogas que possam caminhar no sentido da descriminalização do uso de drogas. Mas, a sua motivação é mais profunda que uma mera rixa com o STF. Está ligada à necessidade de manter uma legislação que criminaliza e encarcera massivamente a juventude negra e pobre das periferias.

Proibição das drogas não diminui o seu consumo

Em 1961, aconteceu a “Convenção Única sobre Drogas da Organização das Nações Unidas (ONU)”, que foi um marco no estabelecimento da proibição do uso de drogas psicoativas em nível global.

No entanto, todos os relatórios da própria ONU são categóricos em afirmar que, desde então, o consumo de drogas não só não diminui como aumentou exponencialmente: “Em 2020, estima-se que 284 milhões de pessoas no mundo, com idades entre 15 e 64 anos (…), usaram algum tipo de droga nos últimos 12 meses (…) representa um aumento de 26% em relação à 2010, quando o número estimado de pessoas que usaram drogas foi de 226 milhões”, explica o “Relatório Mundial Sobre Drogas 2022”, da ONU.

Desde então, assistimos à expansão meteórica do mercado mundial de drogas, um dos mais lucrativos do mundo. Aliás, é tão lucrativo também graças à proibição, que faz elevar os preços e, ainda, permite que não se pague impostos sobre os lucros astronómicos deste negócio.

UM NEGÓCIO LUCRATIVO

Proibição não acaba com o tráfico de drogas

O tráfico de drogas é um dos negócios mais rentáveis do mundo e segue em franca expansão, independentemente das leis que criminalizam as drogas. Segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da ONU, os lucro gerados pelo narcotráfico equivalem, aproximadamente, a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Ou seja, em 2022, isso equivalia a cerca de 1,5 trilhão de dólares, ou R$ 7,8 trilhões.

Essa quantidade astronômica de dinheiro não fica escondida nas favelas! Os mesmos estudos estimam que cerca de 75% dos lucros do tráfico são lavados nos grandes bancos, vão para a “economia legal” e, assim, garantem a fortuna de muitos bilionários que nunca viram uma favela.

Esses bilionários, sim, têm muito interesse em manter a criminalização das drogas, que lhes garante bilhões de lucro, sem pagar um centavo de imposto.

BALANÇO DO GOVERNO LULA “1”

A atual Lei de Drogas criminaliza o usuário

Quando Lula assumiu o primeiro mandato, em 2002, os movimentos sociais aumentaram a pressão para a revogação da “Lei de Tóxicos”, editada pela ditadura, que criminalizava, igualmente, usuários e traficantes. As principais reivindicações eram a descriminalização do consumo e a retirada do tráfico de drogas, especialmente o tráfico de pequena monta, da lei dos crimes hediondos.

Já no apagar das luzes do primeiro mandato de Lula, foi aprovada a Lei 11.343/2006, que ficou conhecida como “Lei de Drogas”, um projeto de autoria do próprio governo Lula.

Pela atual Lei de Drogas, o usuário não pode ser preso, mas deve ser conduzido à delegacia, depois a um Juizado Especial Criminal, onde poderá receber advertência verbal, pena de prestação de serviço à comunidade, medida de comparecimento obrigatório a algum programa educativo ou multa. O consumo ainda é considerado crime.

Sob medida para criminalizar pretos, pobres e periféricos

Sobre a distinção entre usuário e traficante a lei diz o seguinte: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Ou seja, não é definindo nenhum critério objetivo. Assim, a diferenciação vai depender dos critérios subjetivos do policial que prende em flagrante e do juiz que condena. Na prática os negros jovens e pobres são enquadrados com traficantes, e os brancos de classe media como usuários. A lei endureceu a penalização do tráfico e passou a determinar que a pena seja sempre inicialmente cumprida em regime fechado, mantendo a tipificação de crime hediondo.

RACISMO

Lei está ligada ao encarceramento em massa da juventude negra e pobre

Após a aprovação da Lei de Drogas, em 2006, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a população carcerária aumentou 178%, de 361mil para cerca de 644 mil presos, no final de 2023. Esse aumento se deu fundamentalmente à custa dos presos por tráfico de drogas: em dezembro de 2005, os presos por tráfico eram 8% da população carcerária, 31mil pessoas; no final de 2023, eram aproximadamente 200mil, 31% do total, um aumento de 388%.

Em outubro de 2023, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou uma nota técnica sobre a questão racial nos processos criminais por tráfico de drogas em São Paulo, decorridos no primeiro semestre de 2019. As conclusões são bastante categóricas:

1) Quando comparados aos brancos, negros são duas vezes mais processados por tráfico de droga quando trazem consigo pequenas quantidades de maconha ou cocaína (gráfico);

2) Pessoas negras têm maior probabilidade que as brancas de terem suas casas invadidas por policiais sem mandado judicial de busca e apreensão;

3) Há significativa redução na representação de réus negros nos casos em que a abertura do inquérito policial foi motivada por achados de investigações anteriores. Ou seja, negros têm maior probabilidade de serem abordados em patrulhamentos e presos em flagrante do que brancos.

LIMITES

“Não está em discussão no STF a questão da legalização de drogas”

Essa foi a frase proferida por Barroso, presidente do STF, na abertura de uma sessão do julgamento, deixando nítido que uma resolução, a fundo, do problema da “guerra às drogas” não vai partir da Suprema Corte.

O julgamento, que começou há quase 10 anos, versava inicialmente sobre a descriminalização do porte de drogas. No entanto, com o passar do tempo, e dos votos de vários ministros, acabou por retroceder apenas para a descriminalização do porte de maconha, e pode fixar uma quantidade máxima para distinguir entre usuários e traficantes.

Em suma, ao longo do tempo, não só tem havido um retrocesso no alcance prático deste julgamento, como o próprio STF não está muito empenhado em acelerar essa votação, que é suspensa quase toda a vez que recomeça e recorrentemente adiada.

Em relação ao momento atual, em que o porte de quantidades mínimas de maconha tem levado milhares de jovens negros e pobres à prisão, a fixação de um critério objetivo é, sim, um avanço. Mas é um avanço muito limitado, que não vai resolver o problema do encarceramento da juventude negra a fundo. Inclusive porque o porte de cocaína seguirá sendo crime, não vai diminuir o consumo de drogas nem combater o tráfico de drogas.

Para além disso, qualquer conquista que se tenha no STF pode ser revertida pela aprovação de uma lei ou emenda constitucional que retrocedam ainda mais na criminalização das drogas.

Legalizar as drogas para combater o tráfico, o genocídio e a violência | Foto Paulo Pinto/Agência Brasil

PROGRAMA

Para combater o tráfico é preciso legalizar

A legalização das drogas é o primeiro passo para diminuir o consumo e combater o tráfico

Tal como o álcool e o tabaco, as drogas, como a maconha, a cocaína ou o crack, são um problema de Saúde Pública. Não passa pela cabeça de ninguém proibir o uso de tabaco por conta dos enormes problemas de Saúde que este causa. O que se tem feito são campanhas de consciencialização sobre os problemas do seu uso, alta taxação de impostos sobre a sua comercialização e restrição dos locais de uso. O mesmo pode ser feito para o uso recreativo de outras substâncias.

A atual situação é mais grave ainda no caso da maconha, já que cada vez mais estudos demonstram as propriedades terapêuticas da cannabis em doenças como epilepsia ou doenças neuro-degenerativas. A criminalização dificulta o acesso de pessoas doentes a um tratamento que poderia melhorar, em muito, a qualidade de suas vidas.

Perseguição e prisão da população negra

Mas, há algo em que, no Brasil, desde 1830 (leia abaixo), a proibição das drogas provou ser eficaz: a perseguição, criminalização e encarceramento dos negros e pobres.

Por isso, defendemos a legalização da produção, comercialização e consumo das drogas, sob controle do Estado. Os lucros das vendas devem ser colocados a serviço dos interesses da classe trabalhadora, em serviços públicos, transporte e moradia, em especial das periferias. Para além disso, devem ser investidos em campanhas de conscientização sobre o uso de drogas psicoativas e serviços de tratamento de usuários com problemas de adição.

SAIBA MAIS

Criminalização das drogas está historicamente ligada à perseguição dos negros

A primeira lei no mundo que proibiu a produção, comércio e consumo de maconha  foi aprovada em 1830, pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro: “É proibida a venda e o uso do Pito do Pango, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em três dias de cadeia” , dizia uma lei da época.

No inicio do século passado, um dos grandes impulsos dados à criminalização do uso de drogas foi garantido pela Medicina Higienista brasileira, que produzia inúmeros livros e conferências  associando o consumo de maconha aos “vícios da raça negra”: “De fato, ninguém melhor que o negro, na sua natural indolência, para se habituar ao fumo de uma droga nativa, de fácil plantio e que lhe dava aspectos enganadores de coragem e de uma vida melhor.” (Maconha, coletânea de trabalhos brasileiros, Serviço Nacional de Educação Sanitária, Ministério da Saúde, 1958)

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