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Para combater uma cidade desigual, é preciso enfrentar os bilionários

A gestão do democrata Bill de Blasio em Nova York e as referências de Boulos (PSOL)

Joana Salay, de Portugal

12 de abril de 2024
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Boulos com Bill de Blasio ex-prefeito de Nova Iorque. Foto: Leandro Paiva/Divulgação

Guilherme Boulos tem repetido diversas vezes a necessidade de São Paulo ter políticas inovadoras para a gestão da cidade. Cita como exemplo as cidades de Paris, Xangai e Nova York. Para demonstrar que está disposto a trazer “novos projetos” para São Paulo, o pré-candidato à prefeito pelo PSOL, esteve em viagem por estas cidades e até organizou, em São Paulo, um evento para debater os desafios das cidades globais. O evento contou com a presença de Bill de Blasio, ex-prefeito de Nova York, apresentado como um prefeito “progressista” que atacou o problema da especulação imobiliária e da moradia na cidade.

Quando tratamos de programa político, os referenciais importam. Por isso, fomos analisar o verdadeiro legado de Bill de Blasio, tendo como foco a questão da habitação e da violência policial racista, para compreendermos o modelo de gestão de cidade que defende Guilherme Boulos.

Quem é Bill de Blasio?

Membro do Partido Democrata, Bill de Blasio foi prefeito de Nova York entre os anos de 2014 e 2022. Depois de 20 anos, conseguiu fazer com que o Partido Democrata voltasse à prefeitura de Nova York, prometendo combater o “conto das duas cidades”. Em oposição à marcante desigualdade da cidade, Blasio defendia que “a cidade tem de ser coesa, do interesse de todos, dos ricos aos pobres”.

Um dos grandes eixos da campanha do democrata era o problema habitacional, prometendo uma grande virada na política da cidade. Perante a retórica de Bill de Blasio, a imprensa noticiava a ameaça de alguns empresários do setor imobiliário que diziam que, caso Blasio ganhasse as eleições, deixariam a cidade. Passados 10 anos, nenhum grande empresário teve de fugir de Nova York, pelo contrário, os dados demonstram que estes foram bastante beneficiados nos anos de gestão de Bill de Blasio.

O legado de Bill de Blasio na habitação

Centro do imperialismo, Nova York é uma cidade muito rica, mas profundamente desigual. Na década de 1980, sob a gestão do democrata Ed Koch, o objetivo da Prefeitura passou a ser recriar Nova York, tornando-a amigável para grandes empresas, turistas e grandes empresas do mercado imobiliário. Inaugurando o empreendedorismo urbano, termo cunhado por David Harvey, que consiste na competição com outras cidades por recursos humanos e capital externos, competição para a qual Nova York estaria muito bem posicionada. Na nova cidade competitiva, atrair turistas e empresas era (e ainda é) mais importante do que políticas sociais. Como sintetiza David Harvey, o empreendedorismo urbano contribui para aumentar as diferenças de riqueza e de renda, assim como para ampliar o empobrecimento urbano, o que se observa mesmo em Nova York “que apresenta grandes progressos”.

Por grandes progressos, Harvey referia-se à política compensatória inaugurada por Koch de um plano público que tinha como objetivo criar unidades habitacionais à preços acessíveis, que seriam inacessíveis para uma boa parte da população. Os prefeitos que o seguiram, democratas ou republicanos, mantiveram essa política. De início foram priorizadas as empresas imobiliárias sem fins lucrativos, mas depois as grandes empresas imobiliárias acabaram por serem as grandes beneficiadas. Os planos habitacionais consistem, essencialmente, na construção e conservação de casas em conjunto com parceiros privados, onde são destinadas verbas públicas para a garantia de uma porcentagem de casas a preços acessíveis.

Neste sentido, a grande promessa eleitoral de Bill de Blasio, de garantia de 200 mil unidades habitacionais a preços acessíveis, passando depois para 300 mil, não significou nenhuma grande virada no que já era a política adotada pelos prefeitos que o antecederam. Era exatamente a mesma receita. A diferença entre a retórica e a prática fez com que o primeiro plano habitacional “Housing New York” tivesse oposição na própria Câmara Municipal. Alguns membros do Conselho Municipal criticavam a “acessibilidade” das casas, pois o sistema de médias de rendimento utilizado pela proposta tinha uma grande defasagem com o rendimento médio real dos habitantes da cidade, fazendo com que não respondesse àqueles que mais precisavam de casas acessíveis. Não à toa, o plano de Blasio foi apoiado por figuras importantes do setor imobiliário, como Steven Spinola, então presidente do Conselho Imobiliário de Nova York, e Bill Rudin, da família bilionária Rudin.

O projeto de construção de quatro grandes prédios de luxo no bairro de Two Bridges, Manhattan, é exemplo do projeto de cidade a que serviu De Blasio. Aprovado pela Comissão de Planejamento da Cidade de Nova York, à revelia dos protestos da comunidade, o projeto afetaria um dos últimos lugares acessíveis à população de baixa renda em Manhattan. Mais uma vez, apesar de incluir promessas de unidades “acessíveis”, estas seriam inacessíveis para a maioria, servindo principalmente para dar mais lucro às grandes empresas imobiliárias. Por isso, o projeto sofreu forte contestação dos moradores da região, tendo sido alvo de ação judicial para o seu embargo.

Os dados sobre as habitações de Nova York do ano de 2021 mostram como Bill de Blasio não reverteu os rumos de encarecimento e especulação imobiliária. Entre 2002 e 2024, a cidade perdeu 47% das suas casas reservadas para rendimentos baixos, na gestão De Blasio (2014-2021) essa porcentagem diminui consideravelmente, mas perdeu mais 5%, ainda assim. O custo médio de um aluguel em Manhattan é hoje de cerca de 4000 dólares e no Brooklyn de 3250 dólares. Por isso, 55% dos nova-iorquinos estão sobrecarregados com os aluguéis e 84% das famílias abaixo do nível de pobreza dos EUA gastam mais de metade dos seus rendimentos em aluguel. A habitação está se tornando mais cara e mais degradada, sendo que são os residentes das habitações públicas que mais relatam deficiências nas construções. A propriedade de casas continua sendo mais acessível para brancos do que para pessoas negras ou asiáticas e a pandemia aumentou o risco de execução hipotecária para proprietários negros. Apesar disso, os imigrantes são sub-representados na habitação pública. E Brooklyn e Manhattan perderam mais de metade de suas unidades de renda baixa. Outros dados que são reveladores do balanço da gestão é que em 2019 havia 114.085 crianças em idade escolar em situação de rua. Mesmo estando vazios cerca de 30% dos novos apartamentos construídos entre 2013 e 2019 (4100 unidades, em sua maioria de luxo). Além disso, apenas no ano de 2018, a cidade de Nova York despejou cerca de 20.000 famílias de suas casas.

A administração de Blasio não conseguiu desafiar as desigualdades sociais, raciais e econômicas da cidade. A política habitacional de Nova York continuou a incentivar a produção de moradias de alto valor, respondendo melhor à demanda por investimentos especulativos e produtos de luxo do que à demanda por habitação acessível. Bill de Blasio não rompeu com a típica receita de gentrificação das cidades: promoção de grandes empreendimentos imobiliários privados em nome da “regeneração urbana” que tem como consequência o aumento do preço dos imóveis e a mudança do perfil demográfico da área atingida, levando ao encerramento do comércio local, o deslocamento dos mais pobres para as periferias, reforçando, assim, a segregação espacial.

O assassinato de Eric Garner e a defesa das práticas policiais racistas

O EUA viveu um processo de profundo questionamento ao racismo e à violência policial. Em 2014 o assassinato de Eric Garner por um policial em Nova York deu início ao movimento Black Lives Matter, e em 2020 o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, fez explodir uma rebelião social no país e fortes mobilizações no mundo, Nova York não ficou ilesa a este processo. Bill de Blasio era prefeito de Nova York, tanto quando Eric Garner foi assassinado, como na rebelião de 2020, e, durante os dois processos, esteve sempre em defesa da polícia e contra os manifestantes, contradizendo mais uma vez a retórica com a sua prática.

Já em 2014, a primeira demonstração de que Bill de Blasio não pretendia verdadeiramente combater a atuação racista da polícia, foi na escolha do comissário de polícia, Bill Bratton, envolvido em diversos escândalos racistas. Brantton era chefe da polícia quando ocorreu o assassinato de Eric Garner e teve de renunciar em 2016, ainda que De Blasio tenha negado que sua renúncia estivesse relacionada com o desgaste causado pelas fortes contestações à Bratton.

Em 2020, durante as fortes manifestações contra a violência policial e por justiça para George Floyd, Bill de Blasio instituiu um toque de recolher bastante rígido, como forma de conter os protestos. O toque de recolher foi garantido pela polícia com cassetetes, prisões em massa e impedimento dos manifestantes de voltarem para as suas casas no meio da noite. Blasio colocou-se abertamente em defesa da polícia afirmando que a Polícia de Nova York “está agindo de maneira esmagadora e apropriada. [Alguns desordeiros externos] estão aqui apenas, infelizmente, para agitar e atacar aqueles que nos protegem, os nossos policiais.

Quando Blasio retirou o polêmico toque de recolher, centenas de funcionários públicos assinaram uma carta aberta denunciando “a relutância da administração em desafiar os abusos da Polícia de Nova York – a recusa do Presidente da Câmara em despedir Daniel Pantaleo por sufocar a vida de Eric Garner, a continuação da estratégia fracassada de policiamento “Janelas Partidas” que criminaliza as nossas comunidades negras e pardas, a rejeição até mesmo de medidas básicas de responsabilização.

Orçamento de austeridade no pós-pandemia

Depois de uma conturbada gestão da pandemia, tendo obrigado a que fossem os trabalhadores da educação a imporem a quarentena nas escolas, o orçamento que Blasio propôs para o ano de 2020/2021 foi claramente um orçamento de austeridade com cortes drásticos nos serviços da cidade. O orçamento aprovado incluía um corte de quase um bilhão de dólares nas escolas, o carro chefe da gestão De Blasio.

O orçamento também trazia a ameaça de demissões e outros ataques à classe trabalhadora. O argumento era de que era necessário economizar “US$ 1 bilhão em custos de mão de obra ou enfrentar 22.000 demissões“. Para além da ameaça de demissão, o orçamento continha a obrigação de que os trabalhadores arcassem com os custos adicionais de saúde.

Não é possível acabar com o “conto das duas cidades” sem combater os bilionários

Mais uma vez, jogando com a retórica esquerdista, De Blasio, em entrevista de julho de 2020, afirmou que “há uma frase famosa que diz que ‘o Estado é o comitê executivo da burguesia’”, fazendo referência à frase cunhada por Marx e Engels no Manifesto Comunista. Contudo, De Blasio a refuta logo em seguida afirmando:

Na verdade, li isso quando era jovem e disse, bem, não é assim que deveria ser. A comunidade empresarial é importante. Precisamos trabalhar com a comunidade empresarial. Trabalharemos com a comunidade empresarial, mas o governo municipal representa o povo, representa os trabalhadores e, você sabe, os prefeitos não devem ser muito amigáveis ​​com a comunidade empresarial. Os governadores não devem ser muito amigáveis ​​com a comunidade empresarial. Respeite-os, ouça-os, às vezes eles têm ótimas ideias, às vezes oferecem uma ajuda real. Para ser justo, há cada vez mais pessoas na comunidade empresarial que estão a ver os problemas e as desigualdades e, na verdade, estão a começar a falar mais sobre isso. Mas eu quero que eles ajam.

Em sua afirmação, Blasio demonstra a essência da sua visão de gestão de cidade: governar para todos em parceria com os bilionários. Contudo, entre os bilionários capitalistas e a classe trabalhadora há um grande fosso de interesses irreconciliáveis. Em suma, para verdadeiramente combater as profundas disparidades sociais e econômicas presentes nas cidades como São Paulo e Nova York é imperativo enfrentar os interesses e o poder dos bilionários capitalistas.

Ao analisarmos o legado de Bill de Blasio, percebemos que suas políticas habitacionais não desafiaram efetivamente o “conta das duas cidades”. Como afirma David Harvey “mesmo o governo urbano mais progressista é incapaz de resistir às consequências da lógica do desenvolvimento espacial capitalista, no qual a competição parece funcionar não como uma mão oculta benéfica, mas sim como uma lei coerciva externa, impingindo o menor denominador comum relativo à responsabilidade social e à oferta de bem-estar num sistema urbano organizado de modo competitivo.”

As medidas compensatórias são insuficientes perante a força e poder da especulação imobiliária. Em São Paulo aplicou-se, no Plano Diretor de 2014, a chamada Cota de Solidariedade, que propõe que a cada 20 mil m² de área construída seja reservado 10% para habitação social. Contudo, a medida, ao ser flexibilizada e muito menos exigente do que se faz em cidades como Paris, acabou por ser letra morta. Mostrando outro limite fundamental: gerir cidades em países imperialistas é absolutamente distinto da gestão de uma cidade num país que é uma semicolônia como é o Brasil. Numa semicolônia, por mais rica que seja a cidade, estará ainda mais submetida ao poder das multinacionais imperialistas.

No coração do imperialismo, ao optar por governar com os bilionários de Nova York, a gestão de Bill de Blasio favoreceu os interesses das grandes empresas imobiliárias e contribuiu para a gentrificação, exacerbando as crises habitacionais e a marginalização os setores mais pobres, racializados e imigrantes. Além disso, sua abordagem autoritária e de apoio inabalável à polícia durante os protestos contra o racismo e a violência policial evidenciaram a incompatibilidade da gestão de uma cidade para todos.

Boulos está, à sua maneira, fazendo o mesmo caminho que Bill de Blasio, mas numa cidade com muito mais contradições, como é São Paulo. Quando faz um jantar sigiloso com investidores da Faria Lima, aponta para o diálogo com os grandes capitalistas da elite paulistana. Quando busca, a qualquer custo, construir uma Frente Ampla para conseguir vencer as eleições paulistanas, deixa cair diversas reivindicações e pautas necessárias ao povo pobre da cidade. Como Bill de Blasio, da retórica de combate à desigualdade, passa para uma política de conciliação que favorece aos grandes capitalistas. Demonstrando que a opção política de adotar como horizonte estratégico uma gestão para todos, até mesmo buscando alianças com partidos burgueses e empresários, não atende aos interesses dos trabalhadores e dos mais pobres.

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