Remédio para louco é um louco e meio
Nem toda dor é doença, nem toda diferença é desvio. Mas excesso de medicalização acaba reproduzindo padrões de opressão.

Na semana passada, escrevi sobre os bebês reborns e a discussão de gênero. Afinal, como mencionou Ianna Villela em um post, a mulher é sempre a maluca, a histérica. O homem nunca é patologizado, a menos que o crime seja hediondo. Aí é um maluco mesmo, no sentido de negar as suas responsabilidades enquanto homem. A maluquice feminina é um julgamento, enquanto a maluquice masculina é um livramento. Achei que era um bom tema pra trazer hoje, 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
O que quero dizer aqui, e que muitos já disseram antes, é que a loucura não é apenas um fenômeno de bases biopsíquicas. A loucura é uma marcação social historicamente determinada. É a maneira como a sociedade enquadra e pune aqueles que recusam suas determinações.
Frantz Fanon defendia que era impossível pensar a psiquiatria separada da sociedade. Nas sociedades coloniais, onde parcelas inteiras da população são tratadas como objetos, há um completo esmagamento da subjetividade. A terapêutica que procura reintegrar o sujeito nessa estrutura traz nas entrelinhas a aceitação da opressão. Nas colônias, o hospital psiquiátrico é apenas uma extensão do colonialismo. Política e psiquiatria andam juntas. Antecipando a reforma psiquiátrica, Fanon apontava que o caminho para a desalienação passava pela ruptura das instituições e pela transformação revolucionária da sociedade colonial.
Lima Barreto, um dos maiores escritores que este país já teve, autor de O triste fim de Policarpo Quaresma (1911) passou por algumas internações. Barreto, que teve uma infância difícil em um lar de um operário gráfico, sofria de um quadro depressivo combinado com alcoolismo. O inquietante é que na primeiras internação, Lima, que se declarava nego, foi registrado como branco. Em sua última, já como indigente, foi registrado pardo.

Lima Barreto, internado primeiro como branco, depois como pardo
Ou seja, as relações de opressão que atravessam o diagnóstico de Lima Barreto não nos deixam saber se ele foi diagnosticado como insano porque era negro, ou se virou negro porque estava insano, ou se era indigente porque era negro e insano, ou se era negro e insano pela indigência. Mas nos dá a certeza de que as opressões aí se combinam. Lima Barreto foi racializado de acordo com sua condição social, e a loucura, antes de ser um diagnóstico biomédico, está estreitamente relacionada às formas de opressão.
Para que não reste dúvida na relação entre colonialismo, opressão e loucura, recomendo o excelente trabalho O Holocausto Brasileiro, sobre o hospital psiquiátrico de Barbacena (MG), feito pela jornalista Daniela Arbex (e disponível no YouTube).
Os projetos de enclausuramento nunca foram, na verdade, projetos de tratamento da loucura. Ao contrário, nunca passaram da mais simples eugenia e higienização moral da sociedade. Não por acaso o projeto nazista, em seus primórdios apontava para os sanatórios e doentes mentais. A arte moderna, com suas experimentações de perspectiva e desconstrução dos objetos, foi chamada de degenerada pelos nazistas, pois rompia com os ideais classicistas de beleza e representava “gente deformada” (moral e fisicamente).
É contra esse trancafiamento que a Reforma Psiquiátrica se volta, entre outras coisas. “É necessário devolver a chave do manicômio aos loucos”, diz uma frase supostamente atribuída a Franco Basaglia, expoente da reforma. Independentemente, uma coisa é certa: não se combate alienação com mais alienação. Os ditos “loucos” precisam ser mais integrados na sua diversidade, não excluídos em sua diferença.
Esse foi um enorme e necessário passo. Mas ainda estamos longe de dar a questão como resolvida. Os ideais de controle, eugenia e higienização da sociedade continuam aí e se manifestam de muitas formas. De maneira mais óbvia e gritante, no retorno de instituições como comunidades terapêuticas – que colecionam escândalos de tortura e violência. Também na volta à pauta de temas como a internação compulsória.
Mas também de formas sutis, embora não menos agressivas. A começar pela indústria do diagnóstico. Indústria não só porque movimenta muito dinheiro mas sobretudo porque produz em série. Qualquer mínimo comportamento desviante parece receber uma explicação biomédica. E isso tem implicações terríveis. Há até uma discussão para enquadrar o “vício” em redes sociais como uma doença. Poderíamos discutir a falta de espaços públicos seguros e áreas de lazer? Poderíamos discutir a erosão da sociabilidade e a desumanização sob o capitalismo? Até poderíamos, mas isso não vende remédio.
Assim, quem lucra é a grande indústria farmacêutica e nossas angústias nunca são politizadas. Ficam sempre no campo da responsabilidade moral individual de cada um, aumentando a carga psíquica de quem já sofre. O neoliberalismo nos cobra índices altíssimos de produtividade, ao mesmo tempo que sofremos um processo brutal de alienação e negação de nós mesmos. Nesse cenário, muitas vezes nosso último resquício de humanidade é ostentar um diagnóstico como lastro para algum tipo de identidade: “Oi, eu sou fulano e esse é meu diagnóstico“.
Mas, mais uma vez: coincidência que todos os que não se enquadram nesse quadro de alta performance exigido atualmente pelo capitalismo sejam taxados de doentes mentais? Nem um pouco. A verdade é que a medicalização é tanto maior quanto é também a opressão sobre o setor social. Se você não é um homem-branco-hétero-produtivo, tem uma grande chance de ser medicalizado. A última tendência é medicalizar as crianças.
Diz o dito popular que remédio para louco é um louco e meio. Faz sentido. Porque, se o que chamam de normalidade é essa barbárie, a exigência de uma produtividade ininterrupta atravessada por toda sorte de opressões, ser chamado de louco é um atestado de sanidade. Às vezes, é melhor ser o doido mesmo do que concordar com tamanha injustiça.
É preciso reconhecer as conquistas mas também lembrar que há muito pela frente se quisermos construir uma sociedade verdadeiramente livre e desalienada.