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A origem do stalinismo

Bernardo Cerdeira

8 de novembro de 2023
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Neste segundo artigo da série vamos explicar como surgiu o stalinismo e como o estado operário que surgiu da Revolução de Outubro se degenerou e se transformou em um Estado dirigido por uma burocracia contrarrevolucionária.

A maioria dos ideólogos do capitalismo e outros inimigos liberais do comunismo afirmam que o stalinismo foi consequência direta da Revolução de Outubro de 1917 e que foi uma mera continuidade do Partido Bolchevique dirigido por Lênin.

Essas afirmações são totalmente falsas. Deixam de lado os fatos históricos e a intensa luta que se deu, depois da Guerra Civil, na sociedade soviética, no interior do Partido Bolchevique e do Estado. O processo que deu origem à burocracia stalinista foi um processo objetivo e está ligado ao desenvolvimento da luta de classes internacional e nacional.

No panorama internacional, houve um retrocesso da onda revolucionária que se seguiu ao fim da Primeira Guerra Mundial. A revolução foi derrotada na Hungria e principalmente na Alemanha, entre 1919 e 1923. Em outros grandes enfrentamentos de classe como na Itália, o proletariado também foi derrotado. O declínio da revolução europeia levou ao isolamento da URSS, único estado operário do mundo cercado por potências imperialistas que não a reconheciam e a boicotavam.

A Guerra Civil devasta a URSS e traz fome e miséria

Internamente, o Exército Vermelho havia vencido a Guerra Civil contra os Exércitos Brancos, derrotando também os exércitos de 14 países capitalistas. Mas, a Primeira Guerra Mundial e a Guerra Civil tinham destruído o país e enfraquecido a classe operária. Um milhão de operários, um terço do proletariado russo, perdeu a vida defendendo heroicamente a revolução.

Mesmo antes da guerra, o desenvolvimento das forças produtivas na URSS era precário. O império russo era o país mais atrasado da Europa. A I Guerra Mundial e a Guerra Civil terminaram de destruir a estrutura produtiva do país: meios de transporte, fábricas e minas. Também esgotaram a produção agrícola. Ao fim da guerra civil, a miséria e a fome grassaram por toda a sociedade. A revolução na URSS também estava em retrocesso.

A Nova Política Econômica (NEP) e o processo de burocratização do Estado

Os bolcheviques foram forçados a adotar a chamada Nova Política Econômica, a NEP, que permitia aos camponeses negociar o excedente da colheita no mercado para incentivar a produção de alimentos.

Essa política salvou o país da fome e permitiu o começo da reconstrução dos meios de produção e transporte, mas continha uma contradição perigosa: fortaleceu os camponeses ricos e produziu novos comerciantes e artesãos. Isso é, fortaleceu a pequena-burguesia proprietária e as tendências e pressões pela restauração capitalista.

Por outro lado, o Partido Bolchevique herdou do czarismo um aparelho de Estado extremamente burocrático que ele foi obrigado a aproveitar por falta de quadros técnicos. As exigências militares da guerra civil também fortaleceram as tendências burocráticas. Por isso, o próprio Lênin dizia que a URSS era um “estado operário com deformações burocráticas”.

A pequena burguesia, os burocratas do antigo aparelho do estado czarista e os técnicos entraram no Partido Bolchevique, buscaram ser representados politicamente e exerceram pressões sobre ele. Por sua vez, um setor dos quadros do partido começou a adquirir privilégios diante da penúria da sociedade soviética.

Essa combinação de elementos constituíram a base social e o processo objetivo pelo qual se formou uma burocracia, isso é, uma casta burocrática de funcionários privilegiados. O stalinismo foi a expressão política dessa burocracia no Partido Comunista e no Estado. Portanto, o surgimento do stalinismo não é produto do processo e dos ideais da Revolução de Outubro, mas sim do retrocesso da revolução russa e mundial.

Havia uma alternativa ao stalinismo?

Mas, existe uma pergunta que se impõe: o triunfo do stalinismo era inevitável? A resposta é não. Houve uma luta que durou anos e o stalinismo só pode triunfar, eliminando toda a vanguarda revolucionária que resistiu e se aproveitando de novas derrotas da revolução mundial, que ele mesmo ajudou a produzir.

O stalinismo não é uma continuidade da política do Partido Bolchevique sob a direção de Lênin, mas sim uma ruptura com essa orientação. É uma corrente que atuou contra a política e os princípios leninistas até modificar totalmente o caráter do partido e do Estado degenerando-os. Vamos ver como isso se deu.

Havia uma alternativa à burocracia. A política de Lênin e Trotsky era combater o processo de burocratização do Estado soviético e do partido; começar a industrializar o país para reerguer a economia e ganhar tempo até que uma nova onda da revolução internacional rompesse o isolamento da URSS. Lênin expressa bem essa orientação num dos últimos artigos que escreveu, intitulado “É melhor menos, mas melhor”.

Lênin e Trotsky depositavam suas esperanças na Revolução Alemã e, depois de sua derrota, pensaram que o polo revolucionário poderia se deslocar para a Ásia. Não estavam errados. Em 1927 explodiu a Revolução chinesa.

O último combate de Lênin: contra a burocracia

Antes de morrer Lênin deu seu último. combate contra a burocracia no Estado e no Partido. Por exemplo, lutando contra as ações repressivas de Stalin e seus aliados contra as nacionalidades oprimidas, principalmente no caso da Geórgia, e contra a tentativa de abandonar o monopólio do comércio exterior.

O ponto máximo dessa luta foi uma carta ao Comitê Central que é considerada o testamento de Lênin. Neste documento, a principal recomendação à direção do partido é que removesse Stálin do posto de secretário-geral por seus métodos grosseiros e burocráticos. No entanto, a direção do partido, já burocratizada, decidiu ocultar o Testamento dos delegados do Congresso e do partido.

Trotsky e a Oposição de Esquerda lutam contra a burocracia

Em 1923, a Oposição de Esquerda se lançou na luta contra a burocratização enviando ao Comitê Central, e fazendo circular, o documento que ficou conhecido como a Declaração dos 46, firmada por importantes dirigentes do partido.

A Oposição de Esquerda tinha uma estratégia e um programa alternativo global ao stalinismo, baseado na experiência da Revolução de Outubro. Esse programa se apoiava no marxismo e na confiança no proletariado mundial. Era oposto pelo vértice ao programa da burocracia. Em que consistiam seus pontos principais?

Revolução socialista mundial x “Socialismo em um só país”

A Oposição de Esquerda defendia que o único futuro possível para a União Soviética era romper o seu isolamento com o desenvolvimento da Revolução Mundial. Por isso, combateu duramente a falsa teoria do “Socialismo em um só país”, inventada por Stalin e Bukharin, que afirmava que a URSS por suas particularidades, extensão territorial e riquezas nacionais, podia alcançar o socialismo isoladamente.

Trotsky denunciava que isso era uma falácia, contrária aos princípios elementares do marxismo que sempre postulou que o socialismo só pode ser construído como um sistema internacional. Isso é, ainda que a revolução começasse em um país atrasado, o socialismo só poderia ser alcançado em âmbito mundial, abarcando principalmente os países avançados.

A pretensa “teoria” do Socialismo em um só país também defendia que era possível a “neutralização” da burguesia mundial” e conduziu, mais tarde, à política da “coexistência pacífica” com o imperialismo, ao Pacto Stálin-Hitler e aos acordos contrarrevolucionários de Yalta e Potsdam, o que vamos explicar nos próximos artigos.

Trotsky e a Oposição de Esquerda também se opuseram à política da revolução por etapas e o apoio político à burguesia nacional que a Internacional Comunista, já dominada por Stálin e Bukharin, aplicou na Revolução chinesa de 1927. Essa orientação levou à derrota de Revolução na China e ao massacre do proletariado chinês.

A teoria da Revolução Permanente em todo o mundo era e é a única teoria que se opõe a ideologia do “Socialismo em um só país” e constitui, ao mesmo tempo, uma estratégia e um programa coerente que poderiam ter impedido a degeneração do Estado Soviético.

No terreno nacional, o programa da Oposição propunha uma política de industrialização da URSS que abastecesse os camponeses com bens de consumo. Defendia também que o Estado soviético enfrentasse e limitasse o poder dos camponeses ricos, os chamados “kulaks”, com impostos para impedir que esses se fortalecessem como classe exploradora.

Mas, ao mesmo tempo, a Oposição de Esquerda se opôs à coletivização forçada do campo, adotada pela burocracia soviética quando os “kulaks” fortalecidos por anos de concessões, começaram a boicotar o abastecimento das cidades, política que provocou milhões de mortos e fome generalizada. A Oposição de Esquerda, defendia uma política de coletivização gradativa e cuidadosa com os camponeses, incluindo os kulaks e os camponeses pequenos e médios.

A luta pela democracia operária no partido e nos Soviets

Mas, o ponto mais importante do programa da Oposição era o retorno da plena democracia no partido e nos Soviets, incluindo a permissão para a organização de agrupamentos internos no partido para o debate das suas principais políticas, que havia sido suspensa no momento das maiores dificuldades para a Revolução.

A reivindicação da Oposição, partia da constatação que era necessário um debate aberto das alternativas para a União Soviética e para o movimento comunista mundial que provocasse a regeneração do partido e da Internacional e permitisse encontrar uma orientação correta para os rumos do Estado operário e do proletariado mundial.

Stálin e a burocracia eram conscientes que a democracia soviética e partidária era mortal para seus privilégios. Por isso, defenderam com unhas e dentes o regime de partido único e a supressão definitiva da democracia interna no partido comunista e na Internacional.

Atacaram duramente Trotsky e a Oposição de Esquerda, primeiro através de uma campanha contra o “trotskismo”, depois por meio de fraudes nas eleições partidárias, demissões de funções no Estado, expulsões, prisões, deportações para a Sibéria e finalmente com execuções em massas dos oposicionistas.

 

Nos próximos artigos veremos como a burocracia stalinista se consolidou na direção do Estado soviético, como e porque desencadeou uma operação de extermínio de toda a velha guarda bolchevique, matando centenas de milhares de revolucionários comunistas oposicionistas e perseguindo especialmente os trotskistas.

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