Stalinismo, opressor de nacionalidades
No momento em que estamos publicando este artigo, as forças armadas da Rússia, sob as ordens de Vladimir Putin, mantêm há dois anos uma guerra de ocupação contra a Ucrânia, em uma clara violação da soberania do país. É uma brutal violência da segunda potência militar do planeta contra a autodeterminação de um país menor e muito mais fraco.
Apesar disso, partidos stalinistas do mundo inteiro, que continuam a se dizer comunistas, apoiam essa agressão militar e a ocupação da Ucrânia pela Rússia. O apoio dos stalinistas, mesmo aqueles que reconhecem que a Rússia é um país capitalista e Putin um governante burguês, tem uma lógica apoiada em dois pilares: a colaboração de classes com um campo burguês supostamente progressista e anti-imperialista (o de Putin) e o desconhecimento do direito à autodeterminação dos povos e nações.
Nos artigos anteriores vimos que o stalinismo não tem nada a ver com o verdadeiro comunismo. Acompanhamos a origem dessa monstruosa burocracia desde o seu nascimento. Vimos como o Estado operário soviético se degenerou e foi dominado por uma casta burocrática privilegiada.
Também vimos como essa burocracia reprimiu a classe operária soviética e massacrou mais de um milhão de comunistas de todos os setores de oposição dentro do Partido, executando toda a velha guarda bolchevique, inclusive os principais dirigentes da Revolução de Outubro de 1917.
Neste artigo vamos ver como, desde o seu surgimento, o stalinismo exerceu um papel opressor das nacionalidades da União Soviética e como a burocracia estendeu essa opressão tanto aos países que foram ocupados por suas tropas às vésperas da Segunda Guerra Mundial como aos países da Europa do Leste, ocupados pelo Exército Vermelho no fim da guerra.
Mas, antes, vamos entender como e por que a burocracia stalinista renegou a política do Partido Bolchevique de 1917 a 1923, sob a direção de Lênin, que era radicalmente contrária a qualquer tipo de opressão às nacionalidades oprimidas.
Lenin defendia o direito à autodeterminação das nacionalidades e sua opção pela independência
Quando o Partido Bolchevique tomou o poder, Lênin, o grande líder da Revolução Russa, já tinha elaborado suas posições sobre a questão nacional. Ele defendia a autodeterminação das diversas nacionalidades oprimidas pelo antigo Império Russo, que era conhecido por ser um “cárcere de povos”.
Lenin defendia inclusive o direito dos povos oprimidos de se separarem da União Soviética e optarem por sua independência, se assim decidissem. Quando tomaram o poder, os bolcheviques aplicaram essa política e garantiram a independência da Finlândia e dos países Bálticos que haviam optado pela separação.
Anos mais tarde, Trotsky, em uma série de artigos sobre a Ucrânia, lembrava a preocupação de Lênin com as nacionalidades oprimidas e como ele estendeu “o direito à autodeterminação, quer dizer, à separação, tanto para os poloneses como para os ucranianos”.
Trotsky explicava que para Lênin, “toda tentativa de evitar ou adiar o problema de uma nacionalidade oprimida era considerado como uma expressão do chauvinismo (ou seja, do nacionalismo extremado) grão-russo”, isso é, da nação opressora.
Segundo Trotsky, as propostas de Lênin refletiam a urgência de atender, na medida do possível, as reivindicações das nacionalidades que tinham sido oprimidas no passado pelo czarismo.
Stálin e a opressão da Geórgia
Stálin, ao contrário, usava o pretexto de garantir “necessidades administrativas” do Estado soviético, o que significava, na verdade, garantir os interesses da burocracia, para acusar de nacionalismo pequeno-burguês as mais legítimas reclamações das nacionalidades oprimidas.
Essa polêmica entre os dirigentes do partido bolchevique apareceu em 1922-1923, não por casualidade quando estava começando o processo de burocratização que criou uma camarilha de funcionários privilegiados dirigidos por Stálin.
Essa posição burocrática e opressora se expressou com toda força no caso da república soviética da Geórgia. Alguns membros da direção central do Partido comunista, entre eles Stálin e Ordjonikidze, atuaram com violência contra as reivindicações de autonomia do próprio governo soviético da Geórgia, em discussões autoritárias que chegaram até a violência física contra os bolcheviques georgianos.
Lênin atacou fortemente essa atitude, pedindo uma dura punição aos dirigentes que haviam protagonizado as atitudes opressoras e violentas e exigindo garantias para as nacionalidades oprimidas.
Em carta a Kamenev, um dos principais dirigentes do PC, Lênin dizia: “Declaro uma guerra de vida ou morte ao chauvinismo grão-russo”. E propunha: “insisto que o Comitê Executivo Central da União (Soviética) seja presidido em rodízio por um ucraniano, um russo, um georgiano, etc.”
Criticando o aparelho burocrático do estado soviético, herdado do velho estado czarista e burguês, Lênin afirmava: Nessas condições é muito natural que “a liberdade de se separar da união (que está na Constituição soviética) … seja um papel vazio, incapaz de defender os povos não-russos da invasão do russo genuíno, nacionalista grão-russo, no fundo um canalha e um agressor, como é o típico burocrata russo” (obviamente era um recado para Stalin e seus auxiliares).
Ele dizia ainda que é preciso “distinguir entre o nacionalismo da nação opressora do nacionalismo da nação oprimida, entre o nacionalismo da grande nação e o nacionalismo da nação pequena”. Infelizmente Lênin já estava doente. Sua enfermidade piorou e ele morreu em janeiro de 1924, antes de poder dar essa batalha até o fim.
Trotsky e a questão da Ucrânia na década de 1930
Anos mais tarde, em 1939, Trotsky dizia que desde a década de 20 a opressão nacional dentro da União Soviética havia tido “um crescimento monstruoso, levando a uma completa asfixia de qualquer tipo de desenvolvimento nacional independente dos povos que constituíam a Federação”.
Ele explicava por que isso era desastroso para a União Soviética e para o proletariado mundial. Trotsky dizia que: “O direito à autodeterminação nacional é, sem dúvida, um princípio democrático, não é um princípio socialista. Porém, na nossa época quem apoia e aplica os princípios genuinamente democráticos é o proletariado revolucionário; por esta razão as tarefas democráticas se entrelaçam com as socialistas.
A luta decidida do Partido Bolchevique pelo direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas pela Rússia facilitou muito a conquista do poder pelo proletariado. Foi como se a revolução proletária tivesse absorvido os problemas democráticos, sobretudo o agrário e o nacional, dando à Revolução Russa um caráter combinado”.
Por isso: “A estrutura federada da União Soviética foi fruto de um compromisso entre o centralismo que exige uma economia planificada e a descentralização necessária para o desenvolvimento das nações que no passado estavam oprimidas. ”
Ele concluía sua argumentação dizendo que: “A reação stalinista, coroada pela burocracia bonapartista, fez retroceder as massas também na esfera da questão nacional. As grandes massas do povo ucraniano estão insatisfeitas com a situação da nação e desejam mudá-la drasticamente”.
Por isso, Trotsky então defendia a palavra de ordem de uma Ucrânia soviética independente. Embora a situação fosse muito diferente da atual, é importante entender como Trotsky empregava o método marxista para abordar os problemas democráticos, entre os quais a questão das nacionalidades oprimidas.
Ele usava o mesmo critério para todas as reivindicações democráticas e de luta contra as opressões. Comparava, por exemplo, a luta democrática pelo direito das mulheres ao aborto com a questão nacional.
Trotsky dizia o seguinte: “A burocracia do Kremlin diz à mulher soviética o seguinte: como no nosso país há socialismo você deve ser feliz e não abortar (ou então sofrer o castigo que corresponde). Aos ucranianos a burocracia diz: como a revolução socialista resolveu a questão nacional é seu dever ser feliz na União Soviética e renunciar a qualquer ideia de separação (ou então aceitar o pelotão de fuzilamento). ”
Ele fazia então um contraponto com o que um revolucionário deveria dizer à mulher: “Deve ser você a decidir se quer um filho; eu defenderei o seu direito ao aborto contra a polícia do Kremlin. ”
E ao povo ucraniano um revolucionário deveria dizer: “O que me importa é a sua atitude sobre o seu destino nacional e não os sofismas pretensamente ‘socialistas’ da polícia do Kremlin; vou apoiar a sua luta pela independência com todas as minhas forças! ”.
Mais claro, impossível!
As deportações de nacionalidades oprimidas da União Soviética executadas pelo stalinismo
Mas a opressão das nacionalidades por parte do stalinismo se aprofundou ainda mais. A partir da década de 30, a burocracia stalinista começou o regime de terror em que centenas de milhares de comunistas de oposição foram perseguidos e executados por ordens de Stálin. Essa repressão também atingiu nacionalidades não-russas que viviam na União Soviética.
Por exemplo, em agosto de 1937, Yezhov, o chefe da NKVD, o organismo de repressão do Estado, assinou um Decreto que levou à prisão de 350 mil pessoas, 144 mil delas polonesas e inúmeros bálticos e finlandeses: 247.157 foram executados, dos quais 110.000 eram poloneses.
Uma parte importante e desconhecida da terrível repressão da burocracia stalinista foram as deportações forçadas de nacionalidades oprimidas inteiras do seu local de origem para regiões remotas da Sibéria e da Ásia Central, acusadas de inimigas do povo, sob suspeita de serem espiãs do nazismo ou de nações inimigas. A acusação e o castigo da deportação pesavam sobre toda a etnia: homens, mulheres e crianças.
No período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, várias nacionalidades foram deportadas para a Sibéria, Cazaquistão e Ásia Central, incluindo 170 mil coreanos que viviam na fronteira com a China, deportados para a Ásia Central, alemães do Volga, chechenos, inguches, os tártaros da Crimeia e turcos meskhetianos Entre elas, 600.000 tchecos deportados em apenas seis dias.
Cerca de quinze nacionalidades foram totalmente deportadas, mulheres, crianças, incluindo dirigentes comunistas e soldados, falsamente acusados de colaboração com os nazistas. Os crimes contra as nacionalidades autônomas foram tremendos. Centenas de milhares de pessoas morreram durante esses deslocamentos forçados por fome ou doenças. Alguns povos nunca foram devolvidos ás suas antigas regiões.
O stalinismo invadiu e ocupou países independentes e mais fracos
Além disso, o stalinismo nunca hesitou em invadir e ocupar militarmente os países do Leste europeu ou outros com os quais tinha fronteiras, violando a soberania dessas nações com a desculpa da “defesa da União Soviética”, que na verdade sempre foi a defesa dos interesses da burocracia de Moscou.
Já explicamos o caráter vergonhoso do pacto entre Hitler e Stálin, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, que incluía um pacto militar especial e secreto em que os dois governantes concordaram com a divisão da Polônia entre eles, ficando Stálin com a Polônia Oriental.
Hitler também concordou com a ocupação soviética da Letônia, Estônia, Lituânia e da Bessarábia (território que hoje pertence parte à Ucrânia e parte à Moldávia) e com a invasão e ocupação da Finlândia.
Já no fim da Segunda Guerra Mundial, o Exército Vermelho ocupou os países do Leste Europeu: a Alemanha Oriental, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Bulgária, e instalou governos stalinistas, fantoches de Moscou.
Apesar de que o stalinismo foi obrigado a expropriar a burguesia nesses países para poder governar, a outra cara da moeda foi a opressão exercida pela União Soviética sobre eles. Essa opressão foi ampla, abarcando entre outras coisas a transferência da indústria da Alemanha Oriental e da Tchecoslováquia para a União Soviética; relações comerciais desiguais que geraram uma dívida externa crescente desses países com Moscou e a subordinação política e militar destas nações à URSS através de “acordos” forçados como o Pacto de Varsóvia.
A opressão nacional foi mais evidente ainda com a invasão e a ocupação do Exército Vermelho para esmagar a revolução húngara de 1956 e a Primavera de Praga em 1968 sob o falso pretexto de que esses movimentos legítimos de revolução política contra o regime ditatorial da burocracia “serviam aos interesses do imperialismo”.
Por último, é importante lembrar a invasão soviética do Afeganistão, que foi acompanhada da sua ocupação por tropas russas. Foi outra violação da soberania de um país e que levou a uma guerra e ao desgaste das tropas soviéticas, que finalmente tiveram que se retirar derrotadas, constituindo um dos fatores da crise e da queda do regime stalinista.
A opressão nacional sempre constituiu um dos pilares do stalinismo
O capitalismo foi restaurado na União Soviética por Gorbachov e logo depois, já como um país capitalista, a Rússia assumiu o papel de uma submetrópole que exerce um papel imperialista sobre as nacionalidades oprimidas dentro do país e sobre os países mais fracos que o governo capitalista ultrarreacionário de Putin considera sua área de influência.
Assim como o antigo regime stalinista, Putin esmagou a Chechênia autônoma e massacrou o seu povo, fez a guerra contra a Geórgia, atacou a resistência síria para sustentar o ditador Assad, apoiou o ditador Lukashenko da Belarus e mandou tropas para o Quirquistão e o Cazaquistão para sufocar revoltas populares. São alguns dos muitos outros exemplos de repressão às nacionalidades e países.
Concluindo, não é casual que a maioria dos partidos stalinistas de todo o mundo apoie a invasão e a ocupação da Ucrânia pelas tropas do governo de Vladimir Putin. O stalinismo não vê nenhuma incompatibilidade com essa política já que manteve a mesma opressão do antigo Império czarista russo sobre as nacionalidades não-russas, para sustentar o domínio político e os privilégios da burocracia.
Por isso, os stalinistas do mundo inteiro não entram em contradição com as flagrantes violações da autodeterminação nacional e da soberania dos países e nacionalidades que Putin comete. Quando os partidos stalinistas governavam eles faziam o mesmo.
Antes a burocracia se justificava com a falsa teoria do “socialismo num só país” que subordinava os interesses dos países e povos oprimidos à defesa do Estado soviético, supostamente socialista, mas que encobria na verdade a defesa dos interesses materiais dessa burocracia.
Mas atualmente, Putin é declaradamente um anticomunista que quer acabar com qualquer vestígio do legado de Lênin. Mesmo assim alguns stalinistas, que admitem que a Rússia é um país capitalista e que o governo de Putin é burguês, argumentam que ele faria parte, junto com a China, Cuba, Coreia do Norte, Venezuela e Nicarágua, de um suposto “campo progressista” que enfrentaria os Estados Unidos. Não há um só exemplo de uma ação de Putin contra o imperialismo.
E, principalmente, seria preciso perguntar aos povos atacados e bombardeados por Putin, como é o caso dos chechenos, georgianos, sírios, quirguizes e ucranianos, o que pensam sobre esse suposto ditador “progressista”.
Assista a série: