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Estamos literalmente morrendo de calor…

“Parece a época do covid” dizia uma técnica de enfermagem olhando para dentro da sala vermelha superlotada e que, nos últimos dias dessa onda de calor, chegou a ter nove, em vez de quatro, pacientes graves internados, e por mais que se conseguisse transferir ou estabilizar alguns, sempre chegavam mais em estado grave.

Maria Costa, médica do SUS

23 de novembro de 2023
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Termômetro de rua na Tijuca registra a onda de calor que atinge a cidade do Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Quase todos os pacientes que superlotaram a emergência eram pessoas com alguma doença crônica que descompensaram com vários dias de temperatura superior a 40º e sensações térmicas superiores a 50º. O caso da criança esquecida na van escolar, ou da jovem que provavelmente morreu de insolação no show da Taylor Swift ganharam a mídia, por razões óbvias, à onda de calor se juntou a negligência por um lado e a sede esdrúxula de lucros por outro que levaram a que uma criança e uma jovem saudáveis morressem de calor e desidratação. No entanto, para além desses absurdos próprios de uma sociedade em que a barbárie avança galopante, a grande massa das mortes dos últimos dias não vai ser notificada como causada pelo calor, muitas serão apontadas como “causas naturais”… como se houvesse alguma coisa de natural em aguentar uma sensação térmica de 50º.

Como o calor mata?

A temperatura corporal normal é de 35,5-36,5ºC, a pele e os pelos nos permitem manter confortavelmente em temperaturas abaixo da temperatura corporal, normalmente entre 20-24ºC.
Mas quando temperatura ambiente supera a temperatura corporal interna o nosso corpo tem que entrar num esforço extra para nos “resfriar”. Por isso nos sentimos mais fracos e débeis, na prática é como e estivéssemos parados mas correndo uma maratona ao mesmo tempo. Uma pessoa jovem e saudável, que beba água suficiente pode conseguir tolerar esse esforço. Uma pessoa mais idosa e com doenças crônicas muito provavelmente vai descompensar e corre risco de vida. A exposição ao calor pode resultar em doenças diretamente relacionadas ao calor, como desidratação, mas também agravar doenças crônicas assim como gerar problemas de saúde mental e resultados adversos na gravidez, parto e aumento da mortalidade infantil no primeiro ano de vida.

Um recente relatório da OMS aponta que entre 2000 e 2019, o calor matou em média 489 mil pessoas por ano no mundo. Mas estas são mortes diretamente atribuídas às altas temperaturas, não contam quem teve doenças crônicas descompensadas pelo calor. Por isso o mesmo  relatório aponta que o número real de mortes é no mínimo 30 vezes maior.

Contagem regressiva

The Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas revistas científicas sobre medicina, lançou a plataforma The Lancet Countdown dedicada a estudar os impactos das mudanças climáticas e do aquecimento global na saúde. Segundo esta plataforma entre 2013-2022, as mortes relacionadas ao calor aumentaram 85% em comparação com 1991-2000. Mesmo que se consiga limitar o aumento da temperatura média global em 2ºC a mortalidade relacionada ao calor deve aumentar 370% nos próximos 20 anos.  

Por outro lado o aquecimento global também aumentou a área terrestre afetada pela seca extrema de 18% em 1951–60 para 47% em 2013–22 comprometendo o acesso à água, saneamento e alimentação, em comparação com 1981-2010, sendo por isso responsável pelo aumento em 127 milhões de pessoas experimentando insegurança alimentar moderada ou grave. Mais uma vez mesmo que se consiga limitar o aquecimento em 2º a perspectiva é que mais 525 milhões de pessoas sofram de insegurança alimentar nos próximos 20 anos, por causa do calor.

O aumento da temperatura também cria condições mais favoráveis à disseminação de inúmeras doenças infecto-contagiosas, como diarreias, particularmente a cólera, malária, febre amarela, zika, chikungunya e dengue.

Dengue agora é o ano todo

A Dengue era conhecida por ser uma doença sazonal, ocorrendo principalmente nos meses de Verão, devido ao aumento da temperatura e também das chuvas que propiciavam as condições mais favoráveis à disseminação do mosquito Aedes aegypti.

No entanto 2023, para quem trabalha na saúde pública no Rio de Janeiro, foi particularmente diferente, não só por que foi notório um aumento de casos em relação aos anos anteriores mas também porque passou a ser comum diagnosticar Dengue mesmo nos meses que seriam de Inverno, como Julho e Agosto. Os dados do Infodengue corroboram essa mudança, até  final de Outubro tinham sido registrados 39.369 casos em todo o estado, em 2022, tinham sido 9.926 casos para o mesmo período. 

Segundo plataforma Lancet Countdown os casos de Dengue dobraram a cada década desde 1960, e atualmente metade da população mundial vive em regiões sob risco de desenvolver a doença. A taxa de transmissão do vírus da Dengue aumentou 28,6% entre 2013 e 2022 em relação a 1951-1960 e a duração da época de maior transmissão também aumentou entre 13-15% nesse período. A perspectiva é que mesmo limitando o aquecimento global em 2ºC a taxa de transmissão deste viu aumente 20% nos próximos 20 anos.

No caso do Brasil temos uma ameaça imediata maior, recentemente foi registrado o ressurgimento do do sorotipo 3 da doença, que estava inativo desde 2006. Esse longo pedido de inatividade leva a que haja um maior número de pessoas sem contato prévio com esse sorotipo e por isso mais suscetíveis a desenvolver Dengue. Consequentemente são grandes as chances de haver uma epidemia de Dengue de grandes dimensões. Enquanto isso já há duas vacinas para a dengue no mercado, sendo pelo menos uma delas com perfil claramente adequado a ser incluído no plano nacional de vacinação. O governo Lula respeitando religiosamente o limite de gastos e as patentes das farmacêuticas, segue deixando essa importante vacina fora do acesso da população vais vulnerável.

O sucateamento do SUS contribui para o desastre humanitário

As mudança climáticas já estão a ter impactos relevantes na saúde da população e uma certeza que podemos ter hoje é que esses impactos vão ser substancialmente maiores a cada ano que passa. A isso soma-se a probabilidade de uma nova pandemia de dimensões semelhantes à de COVID-19. A outra certeza é que nas atuais condições o SUS não sustenta o aumento de demanda associado ao aquecimento global. Já não sustenta hoje e com políticas com as do arcabouço fiscal que limitam os investimentos na saúde pública a situação só pode piorar exponencialmente. Isto significa que as pessoas que mais vão ser afetadas pelo aumento de temperatura, as que têm acesso precário a alimentação adequada, água, saneamento básico, eletricidade (quem dirá ar condicionado) são também as que vão estar mais desassistidas quando ficarem doentes.

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