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Os crimes de Stálin

Entenda como a casta burocrática stalinista passou de um setor social privilegiado a um aparelho contrarrevolucionário no interior da URSS

Bernardo Cerdeira

9 de novembro de 2023
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No artigo anterior, nós analisamos o retrocesso da luta de classes nacional e internacional que deu origem ao stalinismo. Vimos também que a burocracia stalinista, desde o seu nascimento, destruiu todas as tradições do partido bolchevique e pisoteou os princípios do marxismo e do leninismo.

Mas resta entender como essa casta burocrática passou de um setor social privilegiado a um aparelho contrarrevolucionário no interior da URSS que massacrou centenas de milhares de revolucionários.

Esse processo não se deu de uma hora para outra. Durou mais de dez anos, de 1921 a 1934. E, a partir de 1934, começou o massacre dos oposicionistas, que durou até 1938, pouco antes de começar a Segunda Guerra Mundial.

Como explicamos também no artigo anterior, esse processo de burocratização começou quando Lênin ainda era vivo e seu último combate foi contra a burocracia. Quando Lenin adoeceu, um trio de dirigentes assumiu a direção do partido: Zinoviev, Kamenev e Stalin. Era a chamada “troika”. Stálin, como secretário-geral, controlava o aparelho do partido. A partir de 1923, quando a Oposição de Esquerda trotskista se organizou, os revolucionários foram perseguidos permanentemente e de forma crescente por essa “troika”.

Mas, em 1925, Zinoviev e Kamenev romperam com Stálin, passaram à oposição e chegaram a um acordo com Trotsky para constituir a chamada Oposição Unida.

Expulsões do partido, prisões, deportações, campos de trabalhos forçados

Stálin se aliou então com Bukharin e incrementou fortemente a repressão à Oposição. Entre 1926 e 27, vieram as expulsões do partido, as prisões e as deportações em massa para a Sibéria e outras regiões. Trotsky foi expulso do partido e deportado para Alma Ata, no Cazaquistão. Pouco depois, Zinoviev, Kamenev e seus seguidores capitularam e renegaram suas posições oposicionistas.

Em 1928, os camponeses ricos, os “kulaks”, que se sentiam fortalecidos começaram a exigir um aumento dos preços dos produtos agrícolas. Stálin reagiu e os atacou preparando-se para a coletivização forçada do campo, que viria logo depois e que provocou a morte de milhões de camponeses. Para isso, rompeu com a ala “direita” do partido, dirigida por seus antigos aliados Bukharin, Rykov e Tomsky, que defendiam os camponeses. Essa ala foi derrotada.

Finalmente, em fevereiro de 1929, Trotsky foi expulso da União Soviética e deportado para a Turquia. Nesse mesmo ano, Stalin conseguiu também a capitulação de vários dos dirigentes e quadros da Oposição de Esquerda como Radek, Preobrazhensky, Piatakov, Smirnov e outros que abandonaram a Oposição para serem reintegrados ao Partido.

Mas, apesar de sua vitória parcial, a burocracia stalinista estava longe de ter consolidado seu poder. Sua situação era muito instável. No campo, a coletivização forçada da terra tinha aberto uma enorme crise da agricultura, com a fome e a morte de milhões de camponeses. A aceleração da industrialização se fazia à custa do aumento da jornada de trabalho e dos baixos salários.

No partido, havia uma insatisfação de distintas alas contra o regime. Não só dos trotskistas, mas também dos capituladores, zinovievistas, bukharinistas e até de setores da própria burocracia stalinista.

Por outro lado, a vitória do nazismo na Alemanha em 1933 colocava de imediato o perigo de uma guerra deste país contra a União Soviética. Stálin já estudava a possibilidade de um Pacto com Hitler, que foi firmado mais tarde, em agosto de 1939.

Stálin precisava consolidar seu poder e destruir a Oposição antes que começasse a guerra. Para isso era preciso eliminar fisicamente não só todos os opositores, mas também a velha guarda bolchevique, inclusive aqueles que haviam capitulado.

O principal objetivo de Stálin era eliminar a Oposição de Esquerda trotskista, o único setor que tinha um programa alternativo à burocracia e que defendia o fim dos privilégios dos burocratas, a democracia operária no Estado e a democracia interna no partido. A única maneira de acabar com essa Oposição, que se recusava a capitular, era matando todos os seus militantes. Foi o que Stálin fez.

O massacre da oposição

O pretexto para o começo desse extermínio foi o assassinato de Serguei Kirov, principal dirigente do Partido Comunista em Leningrado, em dezembro de 1934. Kirov foi morto por um jovem militante, Nikolaiev, revoltado com a opressão da burocracia soviética.

Vinte anos depois, em 1956, Kruschev, que havia passado a dirigir o partido depois da morte de Stálin em 1953, em seu discurso ao XXII Congresso do PCUS, admitiu que o assassinato de Kirov havia sido planejado pelo então chefe da GPU (o serviço secreto), Yagoda, a mando de Stálin. Agentes da GPU incentivaram e armaram Nikolaiev.

Com isso Stálin também se livrava de Kirov, um dirigente de prestígio que ameaçava sua liderança e que havia obtido mais votos que ele para a eleição do Comitê Central no XVII Congresso do Partido Comunista da União Soviética.

Nos anos seguintes a 1934, a repressão aumentou brutalmente, as deportações foram sendo substituídas pelos campos de concentração, as torturas e fuzilamentos em massa. Finalmente, entre os anos de 1936 e 1938, Stálin lançou uma campanha de Terror, chamado o Grande Expurgo, que assassinou centenas de milhares de oposicionistas.

Os processos forjados de Moscou

Essa campanha de extermínio foi acompanhada pelo julgamento e execução dos principais líderes da Revolução de Outubro de 1917 e antigos dirigentes das correntes que se haviam oposto a Stálin, mesmo que houvessem renunciado à oposição.

Esses julgamentos ficaram conhecidos como os Processos de Moscou. Trotsky, mesmo no exílio, foi o principal acusado em todos os processos, sendo julgado e condenado à revelia.

Os julgamentos foram totalmente forjados. As acusações eram espantosas e absurdas. Todos esses velhos revolucionários e ex-dirigentes do Estado soviético eram falsamente acusados de terroristas, de haver praticado ou planejado atos de sabotagem às indústrias e ao sistema de transporte; de planejar atentados e o assassinato de Stálin e de outros dirigentes soviéticos, de traição e espionagem a serviço de Hitler e do imperador japonês.

No primeiro julgamento, em Agosto de 1936, foram julgados e executados Zinoviev, que tinha presidido a Internacional Comunista nos seus primeiros anos, Kamenev e outros 14 acusados.

No segundo julgamento, em Janeiro de 1937, foram condenados e executados Piatakov, Muralov e mais 16 dirigentes soviéticos.

No terceiro julgamento, em Março de 1938, 19 acusados foram levados ao tribunal, incluindo Bukharin, Rikov, condenados e executados, e Tomsky, que se suicidou na prisão. Todos eram da antiga ala “direita” do PC. Mas, também foi condenado Rakovsky, ex-trotskysta que havia capitulado

Em nenhum dos julgamentos foram apresentadas provas contra os réus. As únicas evidências eram as “confissões” de vários acusados, como Zinoviev, Kamenev, Piatakov, Bukharin e Rakovsky. Eles admitiram ter cometido todos os crimes de que eram acusados. As “confissões” eram parte essencial desse espetáculo tenebroso.

20 anos depois, no XX e no XXII congresso do PC da URSS, Kruschev reconheceu a falsidade das acusações contra os réus dos Processos de Moscou e explicou como as confissões foram arrancadas sob terríveis torturas e ameaças de fuzilamento dos seus familiares. No entanto, a burocracia nunca reconheceu que as acusações contra Trotsky eram falsas e caluniosas.

Os Processos de Moscou foram apenas a parte visível da maior repressão que o movimento operário sofreu em sua história, uma verdadeira guerra civil contra a vanguarda do proletariado soviético. Mas, a repressão atingiu até a própria burocracia. Basta ver seus resultados no interior do Partido Comunista da URSS.

A execuções no Partido e no Exército Vermelho

Dos membros do Comitê Central que dirigiu o partido Bolchevique durante a Revolução de Outubro de 1917, Stálin foi o único sobrevivente. A maioria foi executada por suas ordens. Essa mesma lógica o obrigou a eliminar também a segunda geração de revolucionários que havia surgido com a Revolução de Outubro e lutado na Guerra Civil.

Mas isso não bastava: também exterminou grande parte da própria burocracia stalinista, que ele não considerava confiável. Por isso, dos 139 membros do CC do Partido Comunista da União Soviética eleitos no XVII Congresso em 1934, 98 foram executados. E isso, quando o Partido já estava totalmente “stalinizado” e toda a Oposição já estava em campos de concentração.

Dos 1996 delegados a esse Congresso, 1108 foram presos e dois terços deles executados. A imprensa oficial stalinista da época nomeou este o “Congresso dos Vitoriosos”, mas esse evento ficou conhecido depois como o “Congresso dos fuzilados”.

Também houve um julgamento militar secreto em junho de 1937 contra vários altos oficiais das forças armadas soviéticas. O marechal Tukachevsky, herói da guerra civil, assim como três dos cinco marechais da União Soviética foram julgados e condenados.

No total, 45 mil oficiais do Exército Vermelho e das outras forças foram presos e 15 mil deles foram executados. Entre os oficiais superiores foram condenados 13 dos 15 comandantes de exércitos, 8 de 9 almirantes, 50 dos 57 generais dos corpos do exército, 154 dos 186 generais de divisão, todos os comissários do exército e 25 dos 28 comissários dos corpos do exército da União Soviética.

Esse expurgo enfraqueceu terrivelmente as forças armadas soviéticas e facilitou a invasão da URSS pela Alemanha nazista cinco anos depois.

Execuções em massa de comunistas

De acordo com os arquivos soviéticos, durante 1937 e 1938, a polícia política prendeu 1 milhão e 548 mil pessoas, das quais mais de 680 mil foram executadas. Mas historiadores calculam que na verdade mais de 800 mil pessoas foram executadas. Isso sem contar centenas de milhares que morreram de fome, frio e doenças nos campos de concentração na Sibéria, chamados de gulags, e que desapareceram sem registro.

Por fim, Stálin mandou matar os próprios verdugos. Os ex-chefes da polícia política, a GPU, depois NKVD, Yagoda e Yezhov, responsáveis pelas prisões, torturas e assassinatos foram também executados em uma clara “queima de arquivos”.

Mas, a sanha assassina de Stálin se concentrou especialmente em eliminar os mais de 30 mil trotskistas. A ordem era matar a todos. Os últimos foram fuzilados nos campos gelados de Vorkuta e Kolyma no círculo Polar Ártico. E, finalmente, Stálin conseguiu assassinar a Trotsky em seu exílio na cidade do México, por meio de um agente soviético chamado Ramón Mercader.

Ao contrário do que dizia e ainda diz a propaganda stalinista, Stalin não executou traidores, terroristas e agentes do nazismo, e sim comunistas que se opunham ao stalinismo. Seu objetivo não era defender a União Soviética, mas sim defender seu poder e as regalias da casta de funcionários privilegiados que lhe era fiel. Esses crimes monstruosos criaram as condições para a restauração do capitalismo algumas décadas depois, levada a cabo pela própria burocracia.

Até hoje os stalinistas dizem que não havia outra alternativa diante das difíceis condições da URSS. Mas, como justificar o extermínio de centenas de milhares de prisioneiros, as torturas e os atentados contra opositores fora da União Soviética? Para responder a isso, vamos falar, no próximo artigo, sobre a Escola stalinista de falsificações, fraudes, calúnias e toda a degeneração moral que é uma das marcas do stalinismo. E vamos contar também a luta de Trotsky contra essa campanha de difamações.

Este artigo está dedicado aos milhares de trotskistas que resistiram nas prisões e campos de concentração em terríveis condições até serem executados.

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